terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Papai Noel Velho Batuta

 

Estávamos algumas semanas atrás eu e meu pai assistindo o jornal local no horário do almoço. Como nunca acontece nada de relevante por aqui - a não ser, claro, quando mais uma criança preta e periférica é assassinada pela polícia - as notícias costumam girar em torno de coisas inócuas pra deixar a população santista feliz e alegre na cidade com - consta, sabe-se lá que recorte e parâmetros foram usados pra isso - um dos melhores índices de qualidade de vida do país. ÊÊÊÊÊÊÊ. Chegando ao fim do ano, obviamente, o tema da vez é Natal.

Chegou o momento de Papais e Mamães Noéis, duendes, renas, pinheiros e caminhões cafonas de marca de refrigerante começarem a tomar conta de tudo, e as pessoas se aglomeram em qualquer lugar onde anunciem que vai ter uma chegada do bom velhinho. Vendo aquelas cenas de absoluto deslumbramento de gente de todas as idades com o clima de inverno fake, entramos no seguinte debate: será que uma criança que cresce imersa num ambiente excessivamente fantasioso vai se tornar um adulto capaz de compreender a realidade de forma aprofundada, considerando que a chance de ela virar uma pessoa muito alienada é grande, se o ambiente e a cultura familiar não a levarem a refletir sobre as coisas que ela vivencia? Adiantando minha conclusão, digo que depende, porém explico.

Recentemente vi a participação do Guilherme Terreri, professor e produtor de conteúdo que dá vida à drag queen Rita Von Hunty, falando em um podcast sobre cinema como a indústria cultural ocidental criou um fenômeno psicológico assustador, em que as pessoas não conseguem pensar o futuro do mundo que não seja um em que, inexoravelmente, sejamos jogados num apocalipse absoluto, pensamento elaborado de forma mais complexa pelo teórico britânico Mark Fisher, em seu livro “Realismo Capitalista”, condensado no questionamento “é mais fácil imaginar o fim do mundo que o fim do capitalismo?”.

Essa conversa no podcast me fez lembrar de dois filmes lançados em datas aproximadas, se me recordo bem, durante os momentos finais da pandemia: “Terra à Deriva”, produção chinesa, e “Destruição Final: o último refúgio”, filme estadunidense. Antes de mais nada, os dois são bem medianos, com “Destruição Final” sendo um tanto pior, mas segue um sinopse rápida de cada um.

“Terra à Deriva” se desenrola num hipotético ano 2500 em que o Sol, na iminência de se tornar uma gigante vermelha, ameaça a existência da Terra e, obviamente, de tudo que tem nela. O mundo então se une pra desenvolver um sistema show de propulsores que vão levar o planeta pra órbita de outra estrela, e o filme acompanha um grupo de pessoas que precisa garantir que o sistema funcione pra salvar todo mundo e garantir nosso futuro. Pelo menos uma dezena de problemas relativos à física e astrofísica à parte, rola bem numa sessão de “filmes pra não realizar uma única sinapse por pelo menos 1h30”.

“Destruição Final”, por sua vez, mostra a viagem de uma família em busca de refúgio numa Terra relativamente contemporânea, ameaçada pelo possível impacto de um cometa. Ao longo do caminho se deparam com uma série de atribulações ao lidar com uma humanidade já sem qualquer esperança de sobrevivência ao cataclisma que se aproxima. Particularmente acho meio sofrível, mas considerando que meu filme preferido de apocalipse é “The Omega Code 2: Megiddo”, minha avaliação sobre a qualidade aqui é completamente irrelevante.

O ponto a ser observado e que coloca os dois filmes em direções opostas, ainda que tenham temáticas relativamente parecidas, é a visão do possível que cada um projeta. O filme estadunidense lida com a proximidade do fim partindo do pressuposto de que a maior parte da sociedade simplesmente abandonaria qualquer resquício de civilidade e sucumbiria à barbárie sem pensar duas vezes, enquanto alguns poucos selecionados - vide gente rica, militares ou que apresentem alguma habilidade técnica específica - teriam a possibilidade de se refugiarem em bunkers ultra seguros, claramente construídos há muito tempo pra lidar com uma eventualidade como essa.

Filmes hollywoodianos de fim do mundo, de modo geral, só caminham em duas direções possíveis: dor, trevas e o absoluto colapso da sociedade ou, o que eu acho ainda pior, um único guerreirinho escolhido pelo motivo mais esdrúxulo possível pra salvar a humanidade, com a narrativa tentando te empurrar goela abaixo o tempo todo que ele resolve tudo sozinho porque sim. Eu poderia citar vários - inclusive o próprio Megiddo - mas acho que você consegue lembrar de algum que bate com uma dessas descrições com certa facilidade.

O filmes chinês, por sua vez, aponta na direção completamente oposta. O mundo inteiro, sabendo que a ameaça era real e não demoraria muito pra acontecer, se junta e desempenha um esforço coletivo pra criar um sistema global capaz de impedir o fim. Pela sinopse, acho que ficou claro que não acho um grande filme, mas nem é isso que é relevante. Perceba aqui o ponto a que quero chegar: a visão dos realizadores é de que dá sim pra imaginar um futuro e um mundo onde o coletivo empenha esforços pra garantir nossa sobrevivência.

Volto então ao questionamento inicial. Acho que o fator determinante pra que uma criança, ao crescer, desenvolva uma visão limitada de mundo não é estar imersa demais em estímulos fantasiosos, mas como esses estímulos são direcionados e apresentados pra ela e, ainda mais importante, que haja cuidado para que eles não se tornem mais do que boas lembranças e essa criança não se torne o adulto que as transforma em traço de personalidade - vide minha crônica “A Vida, o Universo e Só Mais Umas Coisinhas” - passa horas defendendo empresa bilionária na internet por causa de filme de super-herói - os também chamados “filmes de hominho”.

A fantasia é necessária pra que a criança seja capaz de imaginar e vislumbrar um futuro que, pra maioria das pessoas, é constantemente negado, algo inclusive abordado na conversa os escritores - respectivamente angolano e moçambicano - José Eduardo Agualusa e Mia Couto que ocorreu pouco mais de um mês atrás na Tarrafa Literária. É necessário que sejamos capazes de sonhar com um mundo pra além da violência, medo e desesperança que nos empurram goela abaixo diariamente em cada noticiário transmitido em um canal de TV. É necessário que sejamos capazes de sonhar com o fim de um sistema que se fortalece com nosso esgotamento. Sendo então capazes de sonhar, que estejamos preparados pra atuar na construção desse mundo, pra que no futuro, mesmo que não o vejamos, nenhuma outra criança vire notícia por causa da bala que atravessou suas costas.

Até a próxima.

 


quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Flip-se

 


Estive na Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, pela primeira vez em 2017, com alguns textos não acadêmicos já escritos, mas absolutamente sem nenhuma pretensão de me tornar um escritor. Sendo sincero, em 2017 eu não fazia ideia do caminho a seguir, mas deixo esse assunto pra outra hora, já que falar sobre isso requereria um tempo considerável, então voltemos.

Relatei muitas vezes meu amor pela leitura, então não é difícil imaginar que estar imerso num ambiente onde - quase - tudo gira em torno da literatura me causa uma comoção enorme, assim como o fim do evento gera uma certa melancolia, quase na mesma proporção. Quase porque esse não é o tipo de coisa que se vivencia e logo se esquece, e hoje, aos 30, muito mais maduro e compartilhando do ofício literário, o retorno à Flip ganhou uma outra dimensão: ouvir tantas pessoas que fazem da palavra sua ferramenta reafirmou minha vontade de continuar e me trouxe novas perspectivas sobre o escrever.

Esse, inclusive, foi o grande tópico informal dessa edição, recorrente em quase todas as mesas e debates que assisti, o fazer literário. Algo bastante natural, diga-se de passagem, considerando que a obra é, de formas variadas, uma extensão do artista e seu jeito de organizar a realidade, tanto pelo que se registra quanto pelo que se omite. Como dizem na música, o silêncio também é parte da composição.

Poder ver ao vivo alguns de meus autores e autoras favoritos da atualidade, como Carla Madeira, Jefferson Tenório, Socorro Acioli e Mohammed Sarr falando sobre seus processos criativos, o que move suas escritas, referências e, acima de tudo, de sua paixão pelos livros não foi apenas combustível pro eu-presente, escritor, mas também um aceno pro Andrézinho que se refugiava em livros incansavelmente, ainda sem saber que aquilo tudo serviria de base pro que estava por vir, mas sempre ávido por transitar entre páginas e palavras, imaginando como seria o mundo se elas transbordassem pro real.

Eis aqui a dimensão da literatura que mais conversa com a pessoa que me tornei. O imaginar não se restringe apenas ao exercício de abstração sobre outras realidades, mas acreditar que a realidade pode ser outra. Não vejo nada como utópico, apenas colossalmente difícil, em muitos casos, e exatamente por isso requer que nos empenhemos, na medida e da forma que forem possíveis a cada um, em construir as condições que propiciem a mudança. Estar lá só reafirmou minhas convicções e, como sempre, reiterou o quanto a literatura pode ser transformadora.

Seria atestar o óbvio, contudo, dizer que nada é perfeito, e a Flip também carrega suas contradições. Já que é um evento literário, começo falando exatamente sobre os protagonistas: os livros. Sabemos que os comprar nunca foi exatamente barato, mas o que se espera de um espaço que visa debate-los e incentivar seu consumo é que estejam disponíveis, ao menos, com valores mais convidativos, e o que se viu foi exatamente o contrário.

Paraty é uma cidade turística e sofre com as mesmas coisas que qualquer outra cidade que carregue esse fardo sofre, então quem vai até lá já espera que os custos sejam singulares, sendo bastante gentil. Existe, no entanto, uma característica muito própria da Flip que é a grande presença de pessoas - turistas ou locais - que trabalham com arte e educação. É certo que existem exceções, mas em ambas as categorias a realidade é a de que, no geral, docentes e artistas não levam uma vida de abundância e grande estabilidade financeira. Participar de um evento como esse, em muitos casos, exige muito planejamento e antecipação, reserva de estadia muitos meses antes, pra pagar em suaves prestações e algum estudo da cidade pra saber onde comer e o que fazer sem comprometer economicamente sua vida depois de voltar pra ela.

Ao menos no centro histórico da cidade, onde ocorrem a maior parte das atividades da festa, cria-se uma bolha de quase absoluto isolamento da realidade social de Paraty como, novamente, em boa parte das cidades que dependem do turismo pra sobreviver. Vi por muitos anos essa mesma discrepância em Campos do Jordão, em que assim como lá não é necessário se afastar muito do epicentro turístico pra começar a se deparar com a materialidade que rege a vida das pessoas naquele espaço. A inacessibilidade do que move a cidade pra quem sustenta essa dinâmica é de uma crueldade assustadoramente recorrente.

Falando em inacessível, essa é uma questão ambígua. É difícil falar sobre acessibilidade quando a própria constituição física e arquitetônica da cidade não proporciona condições pra que ocorram mudanças significativas na estrutura de acesso de pessoas com mobilidade reduzida, seja por portarem alguma deficiência física ou em função da idade, por exemplo. Caso essa informação lhe escape, o centro da cidade é tombado como patrimônio histórico pelo IPHAN, o que não permite obras que a descaracterizem, como a pavimentação de vias que permitissem e facilitassem o acesso.

Vejo algumas iniciativas ocorrendo pra que isso seja sanado, como o projeto de uma rota de acessibilidade de um aluno de mestrado do IPHAN ou a expansão de atividades e eventos ocorrendo em pontos fora do centro histórico, mas ainda é muito pouco. São 22 edições e 21 anos de existência, me parece tempo o suficiente pra que soluções fossem pensadas.

Enquanto pensava sobre como relatar o que vivi nos 4 dias de evento, li alguns textos sobre a FLIP. Todos são muito bem escritos, flutuando entre elogios e figuras de linguagem num mar de exaltações às virtudes da festa. Não os nego, claro, acho que já deixei bem claro o quanto acho importante que eventos como esse existam, mas me incomoda o pouco que se fala sobre suas contradições. Escolhi deliberadamente não falar sobre a programação em si porque disso se encontra artigos aos montes pelas vielas esburacadas da internet, muito mais competentes em analisar as obras de palestrantes e entrevistados do que eu.

Tento me ater à ideia de que ressaltar essas contradições adiciona uma outra camada ao que é vivenciar um evento como a Flip. Às vezes nos foge o fato de que momentos como esse são reflexos e parte constituinte do tempo em que se inserem, e para entender seu impacto - não só da literatura, objeto central da feira - se faz necessário olhar pra suas contradições e colocá-las em perspectiva, à fim de entender por quê e pra quem são realizados. Se as reflexões e impactos de uma festa literária se dissolvem com seu fim ou nas mentes de uma classe que pouco se importa que cheguem em quem mais poderia se beneficiar de sua realização, que diferença faz existir?

 

Até a próxima.

 

terça-feira, 1 de outubro de 2024

Guia Abstrato da Gastronomia Santista

 


Tem uma pizzaria na esquina de casa pela qual passo com alguma frequência, e toda vez me surge a mesma pergunta: como ela sempre tem movimento? Não vou mentir, faz mais de uma década que comi alguma coisa feita lá e seria desonesto fazer qualquer afirmação, mas tendo aquela experiência como parâmetro, poderia dizer sem pensar muito que, depois desse tempo todo, nem aberta ela deveria estar. Por quê, então, continua bombando?

Sendo sincero, essa é uma pergunta que passa pela minha cabeça quando olho pro cenário gastronômico santista como um todo, e naturalmente não sou o primeiro e nem serei o último a constatar esse fato, mas considero de suma importância que qualquer pessoa com um pingo de consciência sobre a questão se manifeste. O centro desse debate, a meu ver, está intimamente ligado com uma coisa que eu já levantei um bom tempo atrás, quando falei sobre a experiência gastronômica, essa ideia tosca de criar toda uma narrativa mequetrefe pra servir ao cliente exatamente o que ele quer e espera.

Partindo desse pressuposto, será que o que o cliente quer é, de fato, o que ele quer? Quais são os parâmetros construídos no gosto dessa pessoa, ditando suas escolhas, e quem os estabeleceu? Eis aqui um ponto crucial. A indústria alimentar vem modulando nosso gosto desde sempre e interfere até em coisas que parecem simples,

Traçada essa pequena introdução sobre gosto, qualidade e o que buscam as pessoas quando vão a um restaurante ou pedem um delivery, convoco o André-ranzinza, o mesmo que já destilou muita raiva e estresse com QR codes e ciclistas - percebam o padrão, talvez a maresia esteja corroendo minha paciência - pra fazer um pequeno retrato do que é tentar comer nessa cidade, uma tarefa árdua.

Não tô falando de ingerir alimento, se empanturrar, deglutir massa orgânica, minha referência é sobre botar pra dentro alguma coisa que te faça pensar, e pensar se realmente é possível fazer aquilo com comida. Particularmente só conheço três lugares e meio que conseguem plenamente essa proeza. Antes que me esqueça, não pretendo citar nomes. Se quiser saber quais são, pode entrar em contato com o SAC - que no caso sou eu mesmo - e uma lista de recomendações será gentil e alegremente compartilhada com você. Prossigamos.

De forma geral, além de meio covarde, as opções são limitadíssimas. Não em números, já que sequer é necessário rodar pela cidade pra constatar esse fato, basta entrar no Ifood pra ver uma lista desproporcionalmente grande de estabelecimentos em relação ao tamanho de Santos. Não seria problema se essa lista não se limitasse a cinco opções: hamburguerias, pizzarias/esfiharias, restaurantes japoneses/temakerias/lugares que fazem poke, restaurantes italianos e bares/ locais focados em porções. Óbvio, tô exagerando um pouco, existem outras coisas, mas em números muito mais tímidos.

Não acho que seria propriamente um problema essa falta de variedade se fosse possível encontrar um número razoável de lugares que entregasse alguma coisa diferente, mas não. Todos são uma metralhadora de cópias toscas de alguma coisa que nem sequer existe mais aqui, e tenho dúvidas se algum dia existiu. Vá nesses tipos e encontrará praticamente a mesma coisa, tanto em variedade quanto em qualidade, com uma ou outra especificidade, mas nada que seja digno de destaque, uma horizontalidade insana de medianidade.

O maior pecado nesse quesito, a meu ver, é o que acontece com os restaurantes japoneses ou qualquer lugar que sirva pescados no geral. Como diabos uma cidade costeira, com um mercado de peixes bastante estruturado e com uma variedade razoável de bichos frescos e encontrados na nossa costa consegue ter tantos restaurantes que ficam restritos quase que exclusivamente a salmão, tilápia e outros pescados de qualidade duvidosa, que viajam milhares de quilômetros, são criados à base de ração vagabunda em condições questionáveis e passam meses sendo congelados e descongelados? Eis uma das provas de que a indústria de alimentos empurra qualquer merda goela abaixo da galera sob uma camadinha boa de verniz.

Outra questão de altíssima relevância pra esse debate é o custo. Cacete, como é caro comer em Santos. Voltando em outro tópico já abordado anteriormente, resgato minha colocação sobre a padaria que ficava próxima à faculdade onde estava estudando. Aquele lugar é horrível, mas não finge ser o que não é, se dá por satisfeito em ser uma tranqueira e tudo certo. Acho que de alguma forma não seria problema se ao menos fosse barato, mas não. Continuo vendo certa dignidade nessa auto aceitação, mas é quase impossível sair de lá sem se sentir muito otário, porque sim, você vai pagar caro e vai se arrepender de comer.

Contudo, veja só. Na esquina seguinte, infelizmente fechando às 19h, o que não me permitia fazer um lanche nos intervalos de aula, durante a semana, fica um “bar&lanches” bastante conhecido que faz coisas infinitamente melhores com um preço muito parecido. Colocados em perspectiva, fica fácil sacar que, indo no segundo, não fica a sensação de que foi caro. Existe uma explicação histórica - que eu considero bastante plausível, ainda que nunca tenha me debruçado sobre o tema com a devida atenção - pro custo das coisas aqui.

Consta que com a crescente força dos movimentos sociais e trabalhistas/sindicais na Baixada, principalmente ligados ao porto, por volta dos anos 60, a burguesia local achou de bom tom se movimentar pra ferrar com a vida dos trabalhadores - ora ora, que novidade - e coibir o avanço da organização dos mesmos. Como isso foi feito? Regulando preços de forma a aumentar o custo de vida da população pra que o receio de não conseguir manter o básico de suas vidas fosse maior que a coragem de lutar por melhores dias, e cá estamos, décadas depois ainda sofrendo os efeitos dessa canalhice, ainda mais afundados nesse lamaçal.

Um outro fator que adiciona complexidade na situação é a famigerada arrogância da classe média santista. Lembra que eu falei lá em cima de como o conceito de experiência impulsiona a ideia de entregar o que o cliente quer ou, como dizem por aí, “encantar o cliente”? Se tem uma coisa que o santista clássico gosta, quase clama, é ser servido quando e como ele quer, como se fosse detentor de um lugar fixo na fila de prioridade do Universo, implorando por ser adulado como uma criança sem freio pros seus impulsos.

Esse é um fato bastante fácil de ser constatado, já que basta um tempinho sentado numa mesa de um estabelecimento qualquer pra ouvir meia dúzia de histórias ao redor sobre a gloriosa e singular existência de alguém. Acredito que não seja necessário dizer que isso é uma generalização funcional, que serve apenas ao propósito de elencar os porquês, mas nunca é demais reforçar. Além do mais, o que digo dos clientes se reflete no empresariado, num ciclo de retroalimentação ególatra que também limita qualquer impulso de que algo novo surja.

Eis então que chego à algumas respostas. A falta de parâmetro leva embora com ela a possibilidade de que se crie até um senso mais apurado da relação entre custo e benefício, que fica quase exclusivamente atrelado ao “mais por menos”. Ao longo do meu caminho gastronômico, tanto profissional quanto acadêmico, vi isso acontecer de diversas formas, mas poucos lugares conseguem acentuar essa discrepância como Santos, especialmente por saber que é possível fazer melhor.

Existe, na contramão de todos esses fatores que levantei aqui, um movimento sério pra que se estabeleça uma gastronomia respeitável na cidade. Ainda que tímido, dá sinais de que o futuro é promissor. Espero sinceramente que as pessoas estejam abraçando quem está conduzindo esse processo como eu acredito que estão, porque essa galera tá operando em nível altíssimo. Meu sonho é que essa qualidade se capilarize, não só horizontalmente, já que esses lugares ainda são caros e atendem um público restrito, mas que locais com propostas mais simples e despretensiosas entendam que é possível fazer comida barata e com qualidade. E mais, que entendam que fazer isso acontecer também passa por apoiar ideais e políticas que lutem pra que quem produz alimento real, fresco e desvencilhado da lógica insana de produção irrefreada e hiperprocessamento da grande indústria seja devidamente valorizado, já que são essas pessoas que produzem 75% do que chega nas nossas mesas, caseiras ou não.

Depois de 12 anos pensando e fazendo comida, não acho que nenhuma das duas tarefas se tornou mais simples. A complexificação do processo, porém, me trouxe também bagagem o bastante pra não só entender meu processo e apurar minha cozinha, como também pra ao menos identificar com alguma clareza as virtudes e falhas na panela alheia. Não sou nenhuma sumidade e tenho total consciência de que pra tudo que eu sei, existe uma infinidade de entendimentos que me escapam, especialmente pela minha deserção da profissionalidade do ofício alguns anos atrás.

Tudo isso ao menos me deu alguma credibilidade pra que as pessoas ao meu redor tenham abraçado o que tenho pra dizer e começam elas também a espalhar as ideias aqui contidas. Comecei escrevendo com a pretensão de que isso aqui fosse uma espécie de anti-guia gastronômico santista e acabei divagando um pouco, mas não importa. Como sempre, acho que me fiz claro. Penso que mais importante do que te dizer onde comer ou não, minha busca é incentivar que as pessoas entendam o que estão comendo. Talvez um dia eu desenvolva algo mais objetivo sobre essa questão, acho que as pessoas merecem esse suporte. Como já disse anteriormente, é péssimo se sentir otário com comida, e isso é fácil demais por aqui.

Até a próxima.

segunda-feira, 23 de setembro de 2024

Quem Se Lê - Comentários Sobre “A Mais Recôndita Memória dos Homens”

 




Semanas atrás, por ocasião da comemoração número 2 do aniversário de um grande amigo, estive em São Paulo. Já mencionei diversas vezes o quanto odeio aquilo tudo, o barulho, o ar, a indiferença, a velocidade, os abismos, São Paulo é atroz em cada esquina. Contudo, algumas pessoas que amo muito - e meu ganha-pão, diga-se de passagem - estão lá, então como um bom adulto funcional numa sociedade esquisita como a nossa, engulo meu choro e subo no ônibus pra encarar meu desdém metropolitano em prol das coisas boas da minha vida.

Nesses momentos de alienação do caos surgem boas surpresas, e entre elas está uma das livrarias que eu mais gosto, a Megafauna, no meio da galeria interna do Copan, da qual sempre que entro saio com um ou dois livros. Foi lá que encontrei sem querer meu queridíssimo “Como Escrever Bem”, citado mais de uma vez em textos anteriores. Nessa última ida estive lá novamente e mais uma vez trouxe livros comigo. Um deles é Uma Noite com Sabrina Love, do autor argentino Pedro Mairal, do qual já li outros dois romances, A Uruguaia e Salvatierra, ambos muito bem escritos, além de razoavelmente curtos - fica a sugestão pra você que não tem muita paciência pra histórias enormes e prolixas como eu.

O outro, recém terminado, é A Mais Recôndita Memória dos Homens, do senegalês Mohamed Mbougar Sarr, vencedor do prêmio Goncourt, o mais importante da língua francesa, exatamente por esse livro. Poderia passar vários parágrafos discorrendo sobre suas diversas temáticas, contando sobre a história, mas como já mencionei anteriormente não me dou com a tarefa de resenhista - ao menos não escrita - então serei o mais breve possível sobre a narrativa.

O romance narra, sob diversos pontos de vista, o impacto causado no meio literário francês por um livro escrito por T. C. Elimane, autor elusivo e recluso do qual pouco se sabe pra além do fato de ser africano, palavra escolhida pelo autor pra indicar que 1º: por boa parte da história sequer sabemos qual a sua nacionalidade e 2º: deixar claro que muitos dos personagens que se referem à Elimane, sendo europeus, ainda que se vejam progressistas, têm um olhar carregado de preconceitos, ainda mais típico do período em que se passa parte da narrativa, no pré-Segunda Guerra.

Não vou falar muito mais porque recomendo a leitura. Infelizmente não é um livro barato, então vale ficar de olho em promoções, ainda mais agora que estamos nos aproximando da Black Friday, mas caso a curiosidade fale mais alto, prometo que é um gasto que não vai causar arrependimentos. Voltemos ao que importa e o porquê de eu estar escrevendo esse texto.

Ainda que o foco narrativo seja em Elimane e seu livro O Labirinto do Inumano, tão elusivo quanto o próprio criador, o olhar que conduz a narrativa e nos leva para outros personagens e situações é o de Diégane, jovem autor senegalês expatriado na França - e nosso contemporâneo - que busca reconstruir a história de T. C. em busca de sua própria, não só no sentido pessoal como também no literário, tentando descobrir o que escrever em seu próximo livro. Sua jornada cruza a de outros expatriados, migrantes, escritoras e escritores do presente e do passado que de alguma forma também tiveram suas vidas atravessadas pelo autor.

Todos esses olhares dentro da trama são tão bem desenvolvidos que não seria exagero afirmar que cada personagem poderia ter um livro inteiro pra chamar de seu, e poderia passar mais um tempão aqui falando sobre cada um, mas de novo, o objetivo é outro. Fiz essa introdução gigantesca e esqueci de dizer sobre o que eu vim falar aqui: leitura e escrita.

Durante boa parte do texto 3 perguntas surgiam recorrentemente nas entrelinhas: o quê, por quê e para que escrever. Muitos dos dilemas e angústias das personagens, ligadas em maior ou menor grau com a literatura, orbitavam em torno desses questionamentos, não necessariamente porque escreviam ou escreveriam, mas porque o ato de registrar está intimamente ligado com a memória e esse sim é o grande pilar da obra.

Se por um lado escrever é não esquecer e não se deixar ser esquecido, a leitura surge como a porta pra memória do outro. Obviamente essa não é uma análise inédita e A Mais Recôndita Memória dos Homens não será a última obra a tratar de memória nesses termos, mas existe algo mais, aqui. Diégane busca o tempo todo remontar a história de Elimane não só pra entender o quanto do autor é a obra e vice-versa, mas porque precisa entendê-lo para entender a si mesmo.

Ler O Labirinto do Inumano é acessar uma dimensão de si que, mesmo que acredite estar bem resolvida internamente, o arrasta pra um sentimento comum dos expatriados, que é a falta de certeza. O quanto de si e sua obra é sua terra-mãe, sua cultura natal e seus parentes e amigos conterrâneos e o quanto é dos que colonizaram seu povo, desse país pra onde tantos como ele se deslocaram na tentativa de registrarem sua obra-memória em um lugar que os espalhe? Ou será ainda que isso tudo só serve de sustentação pra algo totalmente novo, e essas pessoas serão sempre a dialética entre esses dois lugares que ciclicamente os acolhe e rejeita?

A escrita e a leitura se tornam então a forma como não só Diégane, mas boa parte das pessoas que cruzam seu caminho, encontram pra tentar organizar todas essas dimensões do ser. O que importa, contudo, não é a organização, ou as respostas em si, mas essa busca. Sem ser claro pra não dar spoilers, o final do livro diz, ao não dizer muito, exatamente isso. Nosso narrador encontra algumas respostas, mas elas geram ainda mais dúvidas que provavelmente nunca serão respondidas, e Sarr faz isso com a gente assim como Elimane fez com Diégane.

Não sei se, de forma generalizada, quem escreve o faz com esse intuito, mas à medida que a narrativa avançava, me senti mais e mais conectado com esse sentimento. Por diversas vezes ao longo da leitura pensei nos motivos que me levaram a iniciar essa empreitada literária, e sempre que acreditava chegar numa possível resposta, outro pedaço da narrativa me conduzia pra um novo questionamento, e as reflexões reiniciavam e se retroalimentavam.

Tive muita dificuldade pra escrever esse texto, em grande parte porque ainda não consegui elaborar completamente todos os sentimentos que me transpassaram ao longo da leitura, mas precisava escrever. Talvez esse fosse o objetivo, estabelecer a ideia de movimento ininterrupto dentro e fora da narrativa. Não vou abstrair pra muito além disso, acredito que toquei nos assuntos e abri as discussões que pretendia. Espero encarecidamente que essa leitura possa te levar ao livro como ele me trouxe até aqui e que te permita tantas reflexões quanto me permitiu. Talvez retorne a ele em outro momento, pois sem dúvida, tendo novos questionamentos, é quase inevitável encontrar novas respostas.

 

Até a próxima.

 


quinta-feira, 29 de agosto de 2024

Retratos do Tempo Presente

 


Em 2023 me deu na telha começar um hobby novo. Temos há alguns anos uma câmera digital bastante robusta que meu pai comprou usada de um amigo fotógrafo, que um tempo depois inclusive se ofereceu pra comprar de volta, caso pensássemos em nos desfazer dela. Não só não pensamos como continuamos usando com bastante frequência, então resolvi explorar os recursos disponíveis e quem sabe, de repente, aprender um pouco sobre fotografia.

Como os algoritmos não estão pra brincadeira, mal comecei a buscar vídeos sobre iluminação, velocidade de obturador, ISO e outras particularidades desse mundo e uma enxurrada de conteúdo relacionado começou a brotar em todos os meios possíveis. Curiosamente, o que acabou por ficar mais em evidência no meio disso tudo foi um volume considerável de páginas e perfis de rede social voltados pra fotografia analógica.

Lembro que até meus 11 ou 12 anos tínhamos uma máquina cinza-prateada que nos acompanhou por anos. Não me recordo de marca ou modelo, mas praticamente toda a minha infância foi registrada através dela. Que privilégio é ter registros da própria vida. Não só as paredes de casa sustentam quadros com fotos de diversas fases do pequeno André e companhia limitada como temos uma gavetona numa estante de livros cheia de outros registros ainda mais velhos do que eu.

Pouco tempo depois migramos pras digitais, e vejam só que curioso: entre defeitos e trocas de computadores, acabamos perdendo uma quantidade considerável de imagens feitas com elas. Muita coisa ainda sobrevive num HD externo que resiste ao teste do tempo, mas muito menos do que havia antes. As fotografias reveladas, por sua vez, não, continuam aqui, com um pouco menos de nitidez do que um dia tiveram, mas ainda claras o bastante pra quase nos sentirmos novamente nos “quandos” e “ondes” registrados.

No fim das contas, até as digitais acabaram sendo aposentadas, e os telefones se prontificaram a ocupar o espaço vazio. Aí se criou, então, ou ao menos assim considero, o declínio não só do sentido do registro, mas do nosso próprio olhar sobre as pessoas, coisas, situações e paisagens. Tô falando de uma coisa geral, um blackout em massa, provocado em favor da tão desejada praticidade. Ao longo dos anos a qualidade das câmeras telefônicas evoluiu consideravelmente, e hoje não só é possível como bastante palpável a ideia de trabalhar com fotografia usando telefones, ao menos em um nível mais básico.

A transformação, no entanto, já se instalou, e com mais ou menos qualidade as pessoas se sentem quase compelidas a registrar qualquer merdinha possível. Não tô tirando o corpo fora, não, também fui pego nesse movimento, mas sempre coloquei pra mim mesmo um certo limite, na tentativa de manter o olhar menos afetado e viver com os sentidos mediados por si mesmos e não por uma máquina. Gosto muito de tecnologia, mas com todos os resguardos sobre os quais já falei - e provavelmente ainda vou falar. Me incomoda muito a ideia, por exemplo, de passar boa parte de um show com o braço travado numa posição desconfortável pra filmá-lo e poder “ver depois”. Cacete, pra quê então você pagou pra estar ali se não tá se permitindo ficar imerso na experiência?

As pessoas vão num restaurante e a primeira coisa que elas fazem? Foto da comida. Vão pro rolê e passam mais tempo tirando e postando fotos e vídeos do que interagindo com as pessoas ao redor. Poderia usar muito mais linhas pra citar exemplos que corroborem meu ponto, mas acho que já me fiz entendido. Entramos mais recentemente numa onda ainda mais estúpida de encantamento com efeitos e imagens criadas por inteligência artificial. Vou falar das IAs em outro momento, com todo o rancinho que eu guardo nesse coração direcionado pra elas, mas o ponto é que eis aí mais uma ferramenta tosca distorcendo nossa visão sobre o mundo. Óbvio, não existe visão pura, tudo na nossa percepção é moldado por diversos fatores, mas quando você a entrega pra ser filtrada por uma máquina, acho que se abre mão também da sua própria capacidade de estabelecer uma relação de troca entre o mundo e sua subjetividade.

Disse tudo isso pra, enfim, retornar ao ponto inicial. O hobby, no final das contas, não foi a câmera digital. Ela deu um piripaque e parou de funcionar no começo de 23, e só consegui alguém pra consertar recentemente. Pouquíssimo tempo antes, porém, impulsionado pelo monte de coisa que me apareceu sobre fotografia analógica, comprei uma câmera “point-and-shoot”, a famigerada “saboneteira”, simplona, sem recursos, perfeita pra um iniciante. Acho que não preciso citar todas as limitações que uma máquina movida à filme tem, mas só na eventualidade de você ter nascido num período em que analógicas já eram uma não-coisa, explico.

Você insere o filme, tira uma foto e avança até ele acabar. Se a câmera for eletrônica, com avanço e rebobinagem automática, ou totalmente manual, tanto faz, o princípio é mesmo. Será que a foto ficou ruim? Será que deu certo? A luz ficou boa? Queimou o filme? Todas essas perguntas só são respondidas depois do rolo revelado, o que te leva a tomar algum tempo pra entender os fatores que fazem ou não o filme render o máximo possível.

Eis o xis da questão. Todo esse processo, que parece contraproducente e nada intuitivo, te força a estabelecer uma nova forma não só de lidar com o equipamento na sua mão, mas também com o seu olhar pro mundo ao redor. O que vale a pena ser fotografado, registrado e ainda por cima atacar sua ansiedade com o tempo que leva entre todo esse processo e, por fim, a revelação? Acho que nisso tudo a palavra que me vem à mente é desacelerar. Diminuir o ritmo, esperar o momento certo, a melhor luz, o prédio mais bonito, o ângulo mais apropriado.

Já não tenho mais a câmera que comprei no ano passado. Depois dos primeiros 4 ou 5 filmes me senti confiante pra dar um passo a mais, descolei uma câmera com mais recursos, testei filmes diferentes e a coisa chegou num ponto em que meus amigos compraram a ideia e me agraciaram com mais câmeras, cada uma com as suas peculiaridades e possibilidades, incluída entre elas a máquina que eu tenho tatuada no braço direito. Eu tô cercado de gente incrível.

Desde que comecei, de fato muita coisa mudou. Mesmo quando uso o celular pra fotografar, a preocupação que tenho de entender o melhor possível o que quer que eu vá registrar se mantém, então em última instância acho que posso afirmar sem ressalvas que meu objetivo foi alcançado. Num dos meus livros favoritos, Como Escrever Bem, citado no texto “Cada Página Lida”, o escritor William Zinsser diz o seguinte: “Não sei quais maravilhas virão nos próximos trinta anos para tornar duas vezes mais fácil o ato de escrever, mas sei que elas não tornarão a escrita duas vezes melhor. Isso ainda exigirá o velho hábito de pensar […] e o manejo das velhas ferramentas da língua”.

Esse livro foi escrito em 1976. Passado todo esse tempo, a afirmação de Zinsser pode se traduzir quase universalmente, incluso meu objeto desse texto. Equipamentos muito mais avançados surgiram, tanto especializados quanto embarcados em outros dispositivos, o que não fez a fotografia necessariamente melhor, e afetou inclusive nosso senso de registro e memória. Me refiro, claro, ao mundano, corriqueiro e “universal”, já que prefiro acreditar que os usos artístico e profissional da fotografia se resguardam do nosso condicionado desapego às velhas formas de registro.

Também não sei o que vem por aí, mas sinto um crescimento no movimento da fotografia analógica. Se isso vai se manter já são outros quinhentos, mas independente disso espero ao menos que o cuidado com o olhar e o pé no freio pra que apreciemos o mundo com mais calma - enquanto ele ainda não foi consumido pelo fogo - continuem. Se nada disso rolar, que pelo menos sirva pra baixar o preço dos filmes. Essa merda tá cara pra cacete.

Até a próxima.


segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Cada Página Lida

 


Seguindo na onda de mudanças deste último ano, me coloquei um objetivo claro e irrevogável, retomar o hábito de leitura. Quem me conhece há mais tempo sabe que desde a infância consumir literatura é minha maior habilidade e meu maior gosto, além de ser também meu grande refúgio.

Em não raras ocasiões passava 6, 7 horas lendo ininterruptamente. Fui uma criança e um adolescente - não que hoje seja muito diferente - pouco social, por uma série de fatores que me reservo o direito de não falar sobre, só porque sim. Apesar das muitas possibilidades de entretenimento individual pra uma criança do início do século XXI - ainda que não tantas quanto hoje - foram as páginas e páginas de papel Pólen preenchidas com fonte Register que mais ocuparam meu tempo e meu imaginário até a faculdade.

Quando iniciei a graduação, vivendo numa nova cidade com todo um novo mundo de sociabilidades se abrindo, minhas atividades solitárias foram ficando cada vez mais de lado - vide “Hoje Eu Quero Sair Só” - e os livros, que até então eram de tudo quanto é tipo, foram aos poucos se convertendo em receituários, volumes sobre administração de restaurantes e calhamaços enormes sobre História da Alimentação, dos quais boa parte ainda mantenho na minha biblioteca pessoal, apesar de não atuar mais profissionalmente como cozinheiro.

Não que a temática da alimentação já não me interessasse antes, mas era natural que estudando Gastronomia o interesse aumentasse e ocupasse um espaço quase absoluto na minha vida. Uma das coisas que falo pouco sobre esse período é que a cozinha, pra além de um gosto, beirou uma certa obsessão, e o afastamento no fim das contas foi bom, já que permitiu recriar minha relação com a cozinha, ainda que continue sendo excessivamente rigoroso comigo mesmo. Enfim, a literatura.

Muitos livros me marcaram em diferentes momentos da vida, mas quatro obras tiveram um impacto considerável na forma que penso e vejo o mundo, aqui dispostos numa linha mais ou menos temporal de leitura: “O Guia do Mochileiro das Galáxias”, “A Divina Comédia”, “O Manifesto do Partido Comunista” e “Como Escrever Bem”. Vamos a eles.

O Guia, como já mencionei no “A Vida, O Universo e Só Mais Umas Coisinhas”, título inclusive inspirado na obra deste autor, é uma série de ficção científica escrita por Douglas Adams, responsável também pela bilogia do detetive Dirk Gently e o já citado “O Salmão da Dúvida”, além de ter colaborado consistentemente com a produção da - excessivamente, desculpem-me os fãs - longeva série Doctor Who e com o grupo britânico Monty Python, alicerce de muito do que se entende hoje como humor.

Apesar de fã de seu estilo humorístico, carregado de sarcasmo e nonsense, o que mais me marcou foi a forma como Adams construiu seus universos literários. Ainda que cientificamente ficcionais, tudo é muito real, na dimensão de que, se algum absurdo envolvendo burocracia entre civilizações interplanetárias ou a revelação cósmica de que de fato as perguntas sobre o sentido da vida fazem tão pouco sentido quanto as respostas, não nos espantaríamos completamente se qualquer dessas coisas acontecesse numa tardezinha gelada de domingo como a de hoje. Convenhamos, tem muita coisa pior acontecendo nesse exato momento e o mundo continua assistindo imóvel. Poderia escrever um texto exclusivamente sobre ele e sua obra, mas hoje meu intuito é ressaltar aquilo que mais me marcou em cada livro, então prossigamos.

“A Divina Comédia” foi um caso curioso. Fiz o ensino médio em uma escola construtivista, que ao longo do processo de ensino-aprendizagem desenvolvia diversos projetos com os alunos, entre eles a escrita de uma monografia. O objetivo era que estivéssemos preparados pra pesquisa e escrita científica quando seguíssemos para nossas graduações. A maioria dos meus coleguinhas - alguns deles talvez estejam lendo esse texto, então olá coleguinhas - escolheram temas bastante coerentes pra quem tem 16 anos, mas eu não. Talvez já tenha mencionado esse fato, mas fui um jovem vaidoso com a imagem que tinha da minha própria inteligência. Deus do céu, como eu era arrogante.

Essa peculiaridade colocou na minha cabeça que seria sensato, no segundo ano do ensino médio, escrever uma monografia sobre uma das obras mais complexas da história da literatura. Não tenho qualquer lembrança do trabalho em si, ainda que me recorde de ter tido certo êxito no resultado final, dadas as proporções do que um adolescente comum seria capaz de produzir. Independente disso, o ponto foi que Dante Alighieri me marcou.

Existe uma profundidade de referências e debates contidos n’A Divina Comédia que talvez, na literatura, só se encontre paralelo de relevância quando colocada frente a frente com a Bíblia. Pode ser forte fazer essa afirmação, mas a faço sem medo. Considere ainda que Dante escreveu boa parte da obra vivendo em exílio, participando ativamente das intensas movimentações políticas do que veio a se tornar o Estado italiano, em meados do séc. XIV, com poucos recursos e acesso à materiais referências, e a coisa se torna ainda mais impressionante.

Em contraste a centena de “cantos” da Comédia, por sua vez, o Manifesto do Partido Comunista me deixou uma marca pelo poder de síntese de Marx e Engels. Goste ou não dos dois, seja ou não de esquerda, o impacto causado por uma obra tão diminuta em extensão é estarrecedor e inegável. Li pela primeira vez por volta dos 14 anos a mesma cópia que ainda ocupa um espaço na minha estante de livros. Não que eu precisasse ser convencido de nada, considerando o contexto em que fui criado, mas foi meu primeiro contato com uma obra de teoria social e a porta de entrada pra busca por mais conhecimentos sobre os “comos” e “por quês” da vida em sociedade.

Torço pelo dia em que ninguém mais dirá “nossa, esse livro é tão atual”, já que o grande ponto e problema não é a atualidade do texto, mas a compreensão de que pouca coisa mudou do séc. XIX pra cá. Troque tecnologias digitais por manuais, mecânicas e analógicas e voilà, nós, proletários e pobres mortais, continuamos empurrados pelas mesmas mãos que ditavam as regras para os trabalhadores com quem Karl e Friedrich militavam, conversavam e debatiam.

Chego, por fim, ao livro que virou a chave não só na minha percepção sobre o fazer da escrita, mas também sobre como olhar o mundo e encontrar relevância no que parece ordinário. Lançado originalmente em 1976, “Como Escrever Bem” não é só um manual de redação. Como o próprio autor, o estadunidense William Zinsser, comenta em diversos momentos ao longo do texto, seu objetivo não é só levar a quem lê um conjunto de regras a serem seguidas, mas é proporcionar reflexões sobre como encontrar sua própria voz e estilo e construir uma narrativa que seja capaz de tornar até o tema mais corriqueiro em algo com o qual o leitor consiga se conectar.

Não sei exatamente com quais palavras explicar muito além disso, mas cada página lida me impulsionava ainda mais a olhar pro que eu havia produzido até então e as diversas melhorias que poderia fazer não só no material, mas na própria visão das coisas sobre as quais escrevi. Esse é um livro tanto pra quem produz literatura, seja ela do tipo e com o intuito que for, quanto pra qualquer pessoa que busque minimamente se manter atualizada e em movimento diante de suas próprias percepções frente a vida. Se puder, leia.

Outros muitos livros me marcaram, obviamente, mas os maiores impactos sem dúvida foram desses. Como falei sobre “O Guia”, não seria nenhuma provação escrever textos únicos sobre cada um, mas não me dou com a ideia de virar um resenhista ou ensaísta. Prefiro manter a vocação de palpiteiro semi-profissional e entregar impressões sucintas e nada modestas sobre o que eu entendo como bom. Seguirei lendo e acreditando que talvez, um dia, esses livros mudem. Até lá continuarei espalhando as palavras contidas aqui, dividindo um pouquinho das inspirações que me trouxeram até esse momento.

Até a próxima.

 

terça-feira, 11 de junho de 2024

Hoje Eu Quero Sair Só

 


Estou, no momento em que inicio esse texto, sentado sozinho na mesa de um restaurante. É segunda e acabei de sair da sessão das 19 de Furiosa, em que mais uma vez George Miller opera acima dos 142% pra produzir algo grandiosamente minimalista. Como eu amo Mad Max. Apesar disso, meu foco aqui vai todo pra parte de estar sozinho.

Me lembro de um ritual razoavelmente comum nos meus anos mantiqueiros. Morar sozinho não cria, necessariamente, solidão. No tempo da graduação raramente ficava desacompanhado, e nossa galera amava passar tempo junta. Na verdade, era mais provável que estivesse com outras pessoas do que só, e não apenas no sentido físico, pois havia um senso genuíno de coletividade e apoio entre nós. Nos fins de semana, no entanto, era quase inevitável que não ficasse ninguém conhecido na cidade, até porque pouca gente, como eu, morava consideravelmente longe. Foi aí que o hábito surgiu.

Chegava a noite, eu botava uma roupa quente, pegava meu falecido iPod - companheiro inseparável de todas as horas - e caminhava ouvindo música até um restaurante japonês que fica escondido no primeiro andar de um prédio no Capivari, quase alheio à profusão de lugares genéricos que tomam conta do centro turístico jordanense. Subia as escadas, sentava numa mesa na sacada e comia observando o movimento na rua. Levou algum tempo até que o dono do restaurante não estranhasse minhas refeições solitárias, e por um período considerável, assim que eu chegava, perguntava se era “mesa só pra um, mesmo”.

Ao longo dos anos acabei estendendo essa rotina pra outros lugares da cidade, que se tornou ela mesma minha companhia. Vi muita gente chegar e ir embora, e no fim a solidão era sempre inevitável, mesmo que temporária (para mais sobre esse tempo, leia “O Som das Araucárias”). Quando chegou a minha vez de deixar a serra, um tanto dela veio comigo. Nos curtos intervalos que fiquei na Baixada mantive o hábito de sair sozinho, e o costume instaura a normalidade. Ao longo desse tempo a solitude me propiciou entrar em contato com aspectos de mim mesmo que por muito tempo ignorei, e aprendi a ficar em paz com a minha própria companhia. Eis que chega 2020.

A transição entre as décadas gerou uma ruptura nunca antes vista na normalidade. Pra além do impacto objetivo de milhões de mortes que a pandemia causou, se estabeleceu desde então um senso geral de que existe alguma coisa que quebrou e não se conserta mais, ou que ao menos se arrasta desde então sem uma remediação completa. No meio disso tudo, minha relação com o estar só também mudou.

Uma pandemia, um relacionamento e um burnout depois, me vi num estado de profunda ambiguidade. Momentos de crise, em maior ou menor escala, sempre deixam suas impressões espalhadas por aí. E, sendo como sou, como poderia querer facilitar a situação? Se de alguma forma sinto o peso da solidão, confesso que cada vez mais as pessoas soam irritantes e/ou desinteressantes, e não parece um esforço muito grande manter certa distância. Eu que lute com a minha dialética autoimposta.

Valter Hugo Mãe, escritor angolano dos melhores que eu já tive o prazer de ler, abre seu magistral “O Filho de Mil Homens” narrando a vida de um homem solitário. Cito aqui algumas de suas palavras:

“Estava sozinho, os seus amores haviam falhado e sentia que tudo lhe faltava pela metade, como se tivesse apenas metade dos olhos, metade do peito e metade das pernas, metade da casa e dos talheres, metade dos dias, metade das palavras para se explicar às pessoas.

Via-se metade ao espelho e achava tudo demasiado breve, precipitado, como se as coisas lhe fugissem, a esconderem-se para evitar a sua companhia. Via-se metade ao espelho porque se via sem mais ninguém, carregado de ausências e de silêncios como os precipícios ou poços fundos. Para dentro do homem era um sem fim, e pouco ou nada do que continha lhe servia de felicidade. Para dentro do homem o homem caía”.

O tempo aos poucos dilui o limiar entre a solitude e a solidão, e fica cada vez mais difícil saber quando é bom e ou não estar só. Chegando aos 30 em poucas semanas me peguei ligeiramente aflito pela questão. Talvez a leitura recente do livro tenha remexido coisas nos compartimentos internos desse estranho e excessivamente movimentado ambiente que chamo de minha mente, mas ao mesmo tempo, estando numa fase da vida em que finalmente detenho certo nível de autonomia, começo de novo a enxergar no meu tempo só o momento para me conectar comigo mesmo, sem deixar de refletir sobre como lidar de forma menos tensa com os outros. Escrever é um aspecto disso e me ajuda nessa mediação.

Fato é que, invariavelmente, nunca vai ser 100%, e tudo bem. Aos poucos restabeleço minha relação com os mundos interno e externo, e volto a dar espaço pra mim. Às vezes a gente se põe pressão demais por coisas que não estão totalmente no nosso controle e nem nos damos conta.

Curiosamente estou sentado na mesma mesa do mesmo restaurante que costumava vir nas minhas folgas, às segundas, do meu primeiro emprego como cozinheiro em Santos. Duas outras mesas estão ocupadas e, ainda mais curiosamente, mesmo que seja o único exercendo minha solitude, pareço ser o único desfrutando de algum lampejo de alegria. São tempos estranhos pra estar acompanhado.

 

Até a próxima.


quarta-feira, 1 de maio de 2024

A Guerra Somos Nós - Comentários sobre “Guerra Civil”



Esse vai ser um texto um pouco mais curto que o comum, já que, apesar de algumas rápidas reflexões, o foco vai ser indicar uma coisa. Nesse caso, um filme: Guerra Civil. Pra quem ainda não viu nada sobre ele, uma sinopse rápida. Em um futuro não muito distante uma guerra civil (ora, ora) tomou conta dos Estados Unidos, e o enredo acompanha três fotojornalistas de zonas de conflito viajando de Nova York até a capital estadunidense, Washington, acompanhados ainda de uma jovem fotógrafa que almeja seguir seus passos na cobertura de guerras.

O filme, porém, não é sobre a guerra em si, mas sobre os “microimpactos” de seus diversos aspectos, além de, ainda que de forma menos direta, sobre fotografia. Não vou ficar destrinchando demais, falando sobre atuações, montagem e outros aspectos técnicos. Como mencionado anteriormente, não entendo quase nada de teoria do cinema, logo não vou ficar inventando moda. O foco é no que senti e minhas percepções sobre algumas questões que me saltaram mais aos olhos. Vamos então ao que interessa.

Pra falar sobre os diferentes impactos que o conflito tem em uma sociedade, começo falando sobre os dois personagens principais, interpretados por Kirsten Dunst e Wagner Moura. Em Guerra Civil, Lee, personagem de Kirsten, funciona como um retrato da própria narrativa, relativamente apática e distante mesmo nos momentos mais tensos. A quebra desse comportamento, no entanto, ocorre quase como um prenúncio do fim, tanto seu quanto da própria narrativa, quando toda a tristeza que só a guerra é capaz de gerar em alguém se abate sobre ela.

A morte de Sammy, personagem vivido pelo Stephen McKinley Henderson, jornalista veterano e mentor de ambos, causa uma ruptura da barreira que ela construiu em volta de si pra não ter que lidar com toda o peso das coisas que ela viu ao longo dos anos que cobriu zonas de conflito. A partir desse ponto, enquanto registram a ofensiva final contra a Casa Branca, todo o medo e tristeza a soterram, ficando quase imóvel diante da ação.

É só nos momentos finais, com o ataque praticamente concluído, que ela se recompõe, num ato que serve como um momento simbólico pra ela, que já tendo realizado quase tudo que poderia querer, profissionalmente, morre ao salvar a vida da personagem de Cailee Spaeny, Jessie, a aspirante, entregando a ela o “fardo” que viveu ao longo de seu trabalho na forma de uma foto incrível e uma “micro revolução” paradigmática para a jovem.

O personagem do Wagner Moura, Joel, representa uma outra face do lidar com todo esse contexto. Enquanto Lee é tomada pela apatia, ele age quase com euforia ao vivenciar momentos de ação, enquanto estava “distante” dos impactos da guerra. Em diversos momentos se comporta como se aquilo impulsionasse sua existência, vivendo por mais uma dose da adrenalina. Sua conduta, como a de Lee, só se altera frente à violência quando vê seus amigos próximos, dois jornalistas chineses, serem executados por um grupo de civis armados que, se aproveitando do caos gerado pela guerra em andamento, passam seus dias executando pessoas que não consideram “verdadeiros americanos”.

Essa cena, inclusive - com destaque pra atuação insana do Jesse Plemons - poderia facilmente ser recortada e vendida como um curta, e convenceria qualquer um que a assistisse de que foi pensada com esse objetivo, sem, em nenhum momento, parecer deslocada do resto da história ou da ambientação. As ações do grupo racista são de uma crueza quase corriqueira, como se não estivessem fazendo nada diferente de lavar uma louça ou calçar um tênis, e isso é o bastante pra gerar um nível de tensão tão denso que dá quase pra pegar com a mão.

Outros dois momentos marcantes, que também servem como reflexões distorcidas um do outro, são as paradas que o grupo faz. A primeira se passa no posto de gasolina que encontram pouco depois de saírem de Nova York, em que habitantes da cidade amarraram pelos pulsos e torturam dois homens que tentaram saquear o lugar, com um deles constatando, sem nenhum incomodo aparente, que havia estudado com um dos homens pendurados, posando tranquilamente pra uma foto ao lado dele. Em contraste, mais ao final da viagem, passam por uma cidade em que as pessoas continuam vivendo como se nada estivesse acontecendo no resto do país, num único lapso do que poderia restar de normalidade naquele cenário.

Um último aspecto notável, que se faz presente ao longo de toda narrativa, é que a todo momento as cenas são filmadas propositadamente de perspectivas pensadas para compor fotografias, servindo como uma metanarrativa, um filme de si mesmo, como um documentário sobre a obra que está inserido na própria narrativa. Aos amantes da fotografia, especialmente da analógica, como este que lhes fala, é um detalhe que enriquece muito a narrativa.

Enfim, acho que já falei o que tinha que falar. Guerra Civil está longe de ser um dos meus filmes preferidos, mas sem dúvida é um filme que vale a pena ser assistido, especialmente no cinema. Se puderem, vejam.

Ah, esqueci de avisar, têm spoilers no texto.

Até a próxima.

segunda-feira, 29 de abril de 2024

Da Originalidade

 


Aos poucos que ainda não sabem, já que tive muito afinco na divulgação, co-criei, apresentei e vez ou outra editei um maravilhoso podcast sobre cinema de baixíssimo orçamento, discutindo filmes de qualidade quase sempre condizente com suas restrições orçamentárias e que, em alguns casos, esculpiram marcas indeléveis no meu ser e nos de todos que participaram, fixa ou esporadicamente, dos 30 episódios lançados.

Apesar dos vários chutes e voadoras de vacilo que nos atingiram em cheio, em especial ao já não tão jovem Gabriel - o Guedo, Guedollas, Gabigollum e tantos outros apelidos fofos que eu cunhei ao longo dos nossos quase 10 anos de amizade - que teve a tarefa hercúlea de editar e ajustar as trocentas horas de material que gravamos, guardamos com muito carinho todo o riso, de alegria ou nervoso, que o melhor do pior do cinema poderia nos ter proporcionado. Agora, pra surpresa de todos, não vim aqui hoje pra falar sobre o Cinemasso, mas sim das tranqueiras às quais a gente se submeteu e sobre criatividade e originalidade.

Acredito que não precise nem dar exemplos quando relembro aqui que nos últimos anos tivemos uma enxurrada de remakes e tentativas de trazer de volta franquias há muito esquecidas ou que sequer precisavam ser refeitas e continuadas, e tenho certeza de que só de ter lido isso pelo menos uns três exemplos tenham vindo à sua mente. A Disney, especialmente, em sua incansável busca pelo monopólio absoluto do entretenimento, se vale muito dessa prática, retroalimentada por uma demanda que ela mesma, junto com outros grandes bastiões da indústria - no pior sentido possível - ajudou a criar, na tentativa de manter quem consome seus produtos incessantemente engajados.

Por que não, então, unir o útil ao agradável e só requentar infinitamente o que já deu certo, correndo riscos mínimos, ao mesmo tempo que fisga a audiência com facilidade ao alimentar os anseios de afirmação de seus gostos e de pertencimento ligado ao passado, se escorando na nostalgia mais tosca possível? Eis o entretenimento no século 21. Agora, antes de continuar, quero deixar bem claro que de forma alguma eu julgo quem consome essas coisas, até porque seria de uma hipocrisia sem tamanho. Minha crítica é direcionada à quem produz. Por que isso, então, tem a ver com o Cinemasso? Explico.

Se você entrar na nossa página no seu streaming ou rede social preferida - que nesse caso só pode ser o Instagram, já que é único lugar com um perfil do podcast - não tenho dúvida de que vai lhe ocorrer algo como “meu Deus, que filmes ridículos são esses”? Não discordo, ao menos na maioria dos casos, mas existe uma coisa que os une e que, mesmo te causando estranheza, há de se concordar: são ideias muito originais.

A década de 80 talvez seja a mais frutífera nesse sentido, um período histórico em que, sim, muitas ideias eram ruins ou imbecis, mas nunca o suficiente pra serem ignoradas. Os gêneros que mais se beneficiaram disso foram a ação, a comédia e o terror, e ainda que muita gente tenha vergonha de admitir, com certeza tem um filme xodó que se enquadra em um deles e que, se fosse feito hoje, estaria relegado ao mais absoluto fracasso. Me ponho como exemplo quando afirmo, sem medo de ser feliz, que Stallone Cobra é um dos meus filmes preferidos. Se não viu, veja, pois é uma obra que exemplifica muito bem meu ponto.

Pensando seu conceito, nada muito fora do tradicional filme de ação policial estadunidense. Mocinha perseguida por um bandido implacável e protegida pelo herói improvável, renegado por grande parte de seus pares, mas que carrega consigo a chama da justiça. O que diferencia Cobra dos outros é que, apesar da ideia entregar que vai ser só mais um filme genérico e previsível - e não deixa de ser, apesar dos pesares - existe uma tentativa genuína de inserir elementos que construam aquele mundo de forma diferente do que se encontra por aí. O que começa como uma narrativa um tanto comum se torna um festival de “mas de onde veio isso?” e “por que diabos esse cara fez aquilo?”, entre outros questionamentos que tem fazem duvidar se aquele filme é o mesmo que você começou a assistir. Mas agora você precisa de mais.

Entre as muitas maluquices, as minhas preferidas são, sem dúvida, o bizarríssimo ensaio fotográfico de Brigitte Nielsen com robôs de borracharia do interior, o carro velho e pesado do Stallone, completamente deslocado daquele universo como seu próprio protagonista, seus hábitos peculiares como cortar pizzas com tesoura, mascar palito de fósforo e fazer ele mesmo o retrato-falado do vilão. É tudo fora do tom e sem sentido, mas ainda assim quanto mais a história avança, mais a sensação de estranhamento diminui, porque naquele microcosmo de policiais de sobretudo num calor de 40 graus, como tudo é exagero, nada fica realmente fora do tom.

Agora, que lugar teria um filme como Stallone Cobra em 2024? É altamente improvável que um estúdio com alguma capacidade financeira tivesse qualquer impulso de injetar dinheiro na produção de algo parecido, como a Warner fez em 86 com o roteiro co-escrito pelo próprio Sly. É aí que mora a morte da expressão artística. Definir o que é ou não arte é um debate complexo e que requer cuidado e profundidade aos quais não me proponho nesse momento, o elemento dessa discussão que quero levantar aqui é o da construção de referências. A expressão artística, mesmo quando não mediada por um ferramentário técnico complexo, pode ter um alto grau de complexidade no seu resultado, mas pra que isso ocorra é necessário que o autor tenha uma considerável bagagem referencial.

Como essa bagagem se constrói, então? A resposta mais do que óbvia é consumir cada vez mais coisas, das mais variadas perspectivas, pra que seu referencial se complexifique e a criticidade do olhar se aprofunde. Qual é o efeito, então, de estarmos num momento de produção como o atual? As mídias de massa despejam tanto conteúdo homogêneo que existe pouquíssimo espaço pra que a criatividade respire, e quem busca criar algo com algum nível de originalidade fica relegado aos espaços “underground”. E aqui não me refiro apenas ao cinema, mas a todo tipo de expressão, artística ou não.

Transporte agora esse preceito pra outro campo. Pensemos no caso da ciência política. Quanto exatamente você conhece do referencial teórico que constrói o pensamento ao redor das coisas que você critica? Extrapolando ainda mais, o quanto você tem de embasamento pra defender sua própria visão de mundo? Se todo debate ou temática está sujeito ao processo de homogeneização, não estaria então todo o referencial sujeito também ao mesmo processo?

É claro que se pode argumentar que tudo, ou ao menos parte considerável, do que foi produzido ao redor desse processo, no passado ou no presente, continua disponível, mas em quantos espaços é possível se ter acesso à essas coisas? Quando você vai a uma livraria, quais são os primeiros títulos que você encontra próximos à entrada? Quantos filmes de produtoras pequenas ou independentes estão passando no cinema mais próximo da sua casa? Que shows são divulgados nos principais veículos de mídia que você acessa? Você sequer busca transpor a barreira da produção industrial de gostos pra descobrir o que se faz além dela?

Essas são apenas algumas das perguntas que se pode levantar, e como sempre meu papel é tentar te oferecer um espaço pra se questionar. Tenho minhas respostas e convicções sobre o tema, e algumas estão contidas nas entrelinhas desse texto. Ser original ou produzir originalidade num mundo com o tanto que já foi feito não é tarefa simples, mas nunca foi, especialmente quando não havia nada sobre o que refletir ou referenciar, então, apesar de quem lucra forte com essa régua média querer estabelecer algum tipo de limite pro que é relevante ou merece atenção, acho que pra gente a coisa quase chegou de bandeja.

Tem uma frase, que provavelmente ouvi no Choque de Cultura, apesar de não lembrar em qual episódio e sequer estar disposto a procurar, que diz que se tudo fosse genial, tudo seria medíocre - aqui com seu significado correto, de mediano - e que a gente precisa das coisas que são ruins pra ter parâmetro sobre o que é bom. Mas como pode haver o ruim sem experimentação, se tudo já é produzido sob parâmetros formuláicos? O que eu quero dizer é que a gente precisa estar aberto pra todo tipo de coisa. A gente só tem certeza se é bom ou não se estiver disposto a consumir ou produzir algo sem ficar criando expectativas abstratas. Se for bom, ótimo, aquilo te entregou uma nova referência positiva. Agora, caso contrário, paciência, a vida também tá cheia de momentos de merda que a gente não pode evitar. Nessas horas é que eu costumo tirar as melhores ideias pra textos. A vida entrega originalidade o tempo todo e a gente nem se dá conta.

Até a próxima.

quarta-feira, 20 de março de 2024

Notas Complementares para “A Pobre Criatura Chamada Subjetividade”

 

O que faz de você, você? Melhor dizendo, você seria capaz de responder, de forma direta e objetiva, quem é você? Faça essa reflexão agora sem pensar no que você faz profissionalmente, ou no que você estudou, ou numa coisa que você gosta. Remova todas as coisas que compõe o seu eu exposto ao mundo exterior e tente responder essa pergunta como se falasse consigo mesmo.

Eu, particularmente, não tenho a mais remota ideia do que responderia. E depois de finalmente assistir e sim, por meios totalmente legais, pode ter certeza, Pobres Criaturas, esse questionamento ficou ainda mais complexo, quase beirando o cômico - é meio engraçado se sentir completamente burro, incapaz de responder uma pergunta que, penso eu, implica certa trivialidade.

Pontuo, antes de mais nada, que a questão do cérebro de criança no filme não é apenas uma analogia. Bella Baxter de fato recebe, recém falecida, o cérebro do bebê que gestava. No entanto, quando pensamos no conceito “cérebro de criança” estamos imputando conceitos apoiados no que se construiu socialmente sobre infância, o que é ser criança e todo o escopo de décadas de pesquisa sobre fases do desenvolvimento e blá blá blá. Lembremos que há não muito tempo atrás nada disso existia, então sem anacronismos.

Poderia passar um tempão mergulhando nesse ponto específico - ao menos sob a ótica da educação e da sociologia - mas esse não é o motivo de ter querido escrever um texto complementar, até porque a interpretação clara desde o início do filme se mantém exatamente a mesma que coloquei em “A Pobre Criatura Chamada Subjetividade”. Caso não tenha lido, volte duas casas.

O motivo de estar falando sobre o assunto novamente mistura o texto anterior com os questionamentos apontados aqui, nos primeiros parágrafos. Quando não se possui nenhuma referência sobre nada, como estabelecer uma relação dialética com o mundo e confrontar toda a miríade de conceitos e convenções já estabelecidas, mesmo tendo a capacidade cognitiva para tal? Cognição desenvolvida é suficiente pra mediar um mundo quando há ausência de entendimento dos símbolos sociais?

O filme não tenta responder, mas carrega o debate através das ações de Bella sendo dotadas de profunda objetividade, ultrapassando com força pro lado de uma simulação do que seria o estabelecimento de uma relação puramente metodológica com o mundo. As coisas, após determinado ponto, abandonam o caráter de descoberta, que remeteria ao fluxo comum do desenvolvimento do “eu”, e passam a ser experienciadas analiticamente, a aproximando de se tornar cada vez mais um reflexo do dr. Godwin Baxter, seu “criador”.

Adentrando esse pressuposto, o questionamento que se formula, e que talvez ambas as personagens, de formas diferentes, tentem responder, ou ao menos traçar uma linha lógica - não eles em si, mas suas trajetórias durante a narrativa - é: não possuir subjetividade construída de forma natural, dentro do tempo entendido como adequado para tal e passando pelas diversas fases do desenvolvimento da mente, possibilitaria algum nível de neutralidade real ao se analisar um objeto?

O tempo todo, ao longo do filme, o dr. Godwin relata as mais diversas atrocidades que o próprio pai cometeu com ele, mutilações diversas em prol de um senso deturpado de avanço científico e compreensão do corpo humano, o que o próprio defende com a mesma frequência como sendo os atos corajosos de alguém capaz de tudo pelo avanço técnico, como se tivesse experienciado uma espécie de dissociação do próprio sofrimento como forma de suportá-lo, estabelecendo um significado lógico, afastado de qualquer noção movida por sentimentos, para tudo que passou.

Se a objetividade seria para o dr. uma forma de fuga da própria subjetividade, de um elemento constituinte do seu “eu” - o sofrimento físico e o ódio pelo mesmo ter sido causado pelo próprio pai - para Bella esse mesmo traço anda em contraste constante com o fato de que, por não ter se desenvolvido numa temporalidade natural, todas as suas reações ao mundo, mesmo quando demonstra profunda inteligência e capacidade analítica, são precedidas por atitudes totalmente instintivas.

Quando entende sua sexualidade, quando come um doce pela primeira vez, quando ouve um bebê chorando, suas reações sempre são as que qualquer um tomaria se não estivesse sociabilizado - buscaria estímulo sexual continuamente, comeria um doce atrás do outro, reagiria com violência ao incômodo causado pelo choro. A quebra desse padrão só ocorre a partir do momento que ela é confrontada com duas coisas: a filosofia, que estabelece novas formas de percepção sobre o mundo, não objetivas e conflitantes com o que parece óbvio, e o choque de se deparar com a miséria, que desfaz sua noção de que o atendimento de seus prazeres é natural e está disponível para todos.

Sua resposta aos dois, sem possuir nenhum campo referencial prévio sobre ambos, também parte de reações de certa forma lógicas: o desespero e tristeza profunda com a filosofia implicando que nem tudo é claro como ela entendia, até então, o que acaba por estabelecer uma ruptura paradigmática, e a tentativa de sanar a pobreza suprindo àquelas pessoas o objeto que, em sua falta, a causaria, o dinheiro.

Existe espaço pra discutir uma série de outras questões sobre o filme, mas acho que, com relação ao meu objetivo central, me fiz entender. E isso porque a ideia era só complementar o que eu já tinha escrito. Talvez, no fim, o texto anterior seja um complemento desse. Seria possível complementar uma ideia antes mesmo de ela existir? Confesso que às vezes tenho medo de ser taxado de prolixo, então chega de divagação por hoje.

Não tenho total certeza se gostei do filme - imaginem se tivesse - mas posso afirmar que ele me deixou intrigado. Ao longo da história fui puxado pra fora diversas vezes, não por estar desinteressado, mas pra tentar organizar um pensamento que me ocorria sobre algo específico e anotar pra escrever esse texto. O ritmo da narrativa quase não te dá espaços pra sair dela, e tudo ocorre de forma tão intensa - talvez numa tentativa de nos conectar com a protagonista - que 2h20 parecem 3.

No fim das contas, acho que não respondi a pergunta que levantei lá no meio, e sendo bem sincero não sei se queria responder. O filme também não entrega nada de bandeja e eu tive que lidar com um pouco de insônia pra organizar e escrever o início das ideias contidas nesse texto. Talvez tenha escrito um monte de bobajada e você perdeu um tempo tremendo pra chegar até aqui, ou então tudo fez muito sentido e agora você deve estar se fazendo um monte de questionamentos. Em ambos os cenários, considero que atingi meus objetivos. Se é uma derrota, que seja compartilhada.

Até a próxima.