Tem uma pizzaria na
esquina de casa pela qual passo com alguma frequência, e toda vez me surge a
mesma pergunta: como ela sempre tem movimento? Não vou mentir, faz mais de uma
década que comi alguma coisa feita lá e seria desonesto fazer qualquer
afirmação, mas tendo aquela experiência como parâmetro, poderia dizer sem
pensar muito que, depois desse tempo todo, nem aberta ela deveria estar. Por
quê, então, continua bombando?
Sendo sincero, essa
é uma pergunta que passa pela minha cabeça quando olho pro cenário gastronômico
santista como um todo, e naturalmente não sou o primeiro e nem serei o último a
constatar esse fato, mas considero de suma importância que qualquer pessoa com
um pingo de consciência sobre a questão se manifeste. O centro desse debate, a
meu ver, está intimamente ligado com uma coisa que eu já levantei um bom tempo
atrás, quando falei sobre a experiência gastronômica, essa ideia tosca de criar
toda uma narrativa mequetrefe pra servir ao cliente exatamente o que ele quer e
espera.
Partindo desse
pressuposto, será que o que o cliente quer é, de fato, o que ele quer? Quais
são os parâmetros construídos no gosto dessa pessoa, ditando suas escolhas, e
quem os estabeleceu? Eis aqui um ponto crucial. A indústria alimentar vem
modulando nosso gosto desde sempre e interfere até em coisas que parecem
simples,
Traçada essa pequena
introdução sobre gosto, qualidade e o que buscam as pessoas quando vão a um
restaurante ou pedem um delivery, convoco o André-ranzinza, o mesmo que
já destilou muita raiva e estresse com QR codes e ciclistas - percebam o
padrão, talvez a maresia esteja corroendo minha paciência - pra fazer um
pequeno retrato do que é tentar comer nessa cidade, uma tarefa árdua.
Não tô falando de
ingerir alimento, se empanturrar, deglutir massa orgânica, minha referência é
sobre botar pra dentro alguma coisa que te faça pensar, e pensar se realmente é
possível fazer aquilo com comida. Particularmente só conheço três lugares e meio
que conseguem plenamente essa proeza. Antes que me esqueça, não pretendo citar
nomes. Se quiser saber quais são, pode entrar em contato com o SAC - que no
caso sou eu mesmo - e uma lista de recomendações será gentil e alegremente
compartilhada com você. Prossigamos.
De forma geral, além
de meio covarde, as opções são limitadíssimas. Não em números, já que sequer é
necessário rodar pela cidade pra constatar esse fato, basta entrar no Ifood pra
ver uma lista desproporcionalmente grande de estabelecimentos em relação ao
tamanho de Santos. Não seria problema se essa lista não se limitasse a cinco
opções: hamburguerias, pizzarias/esfiharias, restaurantes
japoneses/temakerias/lugares que fazem poke, restaurantes italianos e
bares/ locais focados em porções. Óbvio, tô exagerando um pouco, existem outras
coisas, mas em números muito mais tímidos.
Não acho que seria
propriamente um problema essa falta de variedade se fosse possível encontrar um
número razoável de lugares que entregasse alguma coisa diferente, mas não.
Todos são uma metralhadora de cópias toscas de alguma coisa que nem sequer
existe mais aqui, e tenho dúvidas se algum dia existiu. Vá nesses tipos e
encontrará praticamente a mesma coisa, tanto em variedade quanto em qualidade,
com uma ou outra especificidade, mas nada que seja digno de destaque, uma
horizontalidade insana de medianidade.
O maior pecado nesse
quesito, a meu ver, é o que acontece com os restaurantes japoneses ou qualquer
lugar que sirva pescados no geral. Como diabos uma cidade costeira, com um
mercado de peixes bastante estruturado e com uma variedade razoável de bichos frescos
e encontrados na nossa costa consegue ter tantos restaurantes que ficam
restritos quase que exclusivamente a salmão, tilápia e outros pescados de
qualidade duvidosa, que viajam milhares de quilômetros, são criados à base de
ração vagabunda em condições questionáveis e passam meses sendo congelados e
descongelados? Eis uma das provas de que a indústria de alimentos empurra
qualquer merda goela abaixo da galera sob uma camadinha boa de verniz.
Outra questão de
altíssima relevância pra esse debate é o custo. Cacete, como é caro comer em
Santos. Voltando em outro tópico já abordado anteriormente, resgato minha
colocação sobre a padaria que ficava próxima à faculdade onde estava estudando.
Aquele lugar é horrível, mas não finge ser o que não é, se dá por satisfeito em
ser uma tranqueira e tudo certo. Acho que de alguma forma não seria problema se
ao menos fosse barato, mas não. Continuo vendo certa dignidade nessa auto
aceitação, mas é quase impossível sair de lá sem se sentir muito otário, porque
sim, você vai pagar caro e vai se arrepender de comer.
Contudo, veja só. Na
esquina seguinte, infelizmente fechando às 19h, o que não me permitia fazer um
lanche nos intervalos de aula, durante a semana, fica um “bar&lanches” bastante
conhecido que faz coisas infinitamente melhores com um preço muito parecido.
Colocados em perspectiva, fica fácil sacar que, indo no segundo, não fica a
sensação de que foi caro. Existe uma explicação histórica - que eu considero
bastante plausível, ainda que nunca tenha me debruçado sobre o tema com a
devida atenção - pro custo das coisas aqui.
Consta que com a
crescente força dos movimentos sociais e trabalhistas/sindicais na Baixada,
principalmente ligados ao porto, por volta dos anos 60, a burguesia local achou
de bom tom se movimentar pra ferrar com a vida dos trabalhadores - ora ora, que
novidade - e coibir o avanço da organização dos mesmos. Como isso foi feito?
Regulando preços de forma a aumentar o custo de vida da população pra que o
receio de não conseguir manter o básico de suas vidas fosse maior que a coragem
de lutar por melhores dias, e cá estamos, décadas depois ainda sofrendo os
efeitos dessa canalhice, ainda mais afundados nesse lamaçal.
Um outro fator que
adiciona complexidade na situação é a famigerada arrogância da classe média
santista. Lembra que eu falei lá em cima de como o conceito de experiência
impulsiona a ideia de entregar o que o cliente quer ou, como dizem por aí,
“encantar o cliente”? Se tem uma coisa que o santista clássico gosta, quase
clama, é ser servido quando e como ele quer, como se fosse detentor de um lugar
fixo na fila de prioridade do Universo, implorando por ser adulado como uma
criança sem freio pros seus impulsos.
Esse é um fato
bastante fácil de ser constatado, já que basta um tempinho sentado numa mesa de
um estabelecimento qualquer pra ouvir meia dúzia de histórias ao redor sobre a
gloriosa e singular existência de alguém. Acredito que não seja necessário
dizer que isso é uma generalização funcional, que serve apenas ao propósito de
elencar os porquês, mas nunca é demais reforçar. Além do mais, o que digo dos
clientes se reflete no empresariado, num ciclo de retroalimentação ególatra que
também limita qualquer impulso de que algo novo surja.
Eis então que chego
à algumas respostas. A falta de parâmetro leva embora com ela a possibilidade
de que se crie até um senso mais apurado da relação entre custo e benefício,
que fica quase exclusivamente atrelado ao “mais por menos”. Ao longo do meu caminho
gastronômico, tanto profissional quanto acadêmico, vi isso acontecer de
diversas formas, mas poucos lugares conseguem acentuar essa discrepância como
Santos, especialmente por saber que é possível fazer melhor.
Existe, na contramão
de todos esses fatores que levantei aqui, um movimento sério pra que se
estabeleça uma gastronomia respeitável na cidade. Ainda que tímido, dá sinais
de que o futuro é promissor. Espero sinceramente que as pessoas estejam
abraçando quem está conduzindo esse processo como eu acredito que estão, porque
essa galera tá operando em nível altíssimo. Meu sonho é que essa qualidade se
capilarize, não só horizontalmente, já que esses lugares ainda são caros e
atendem um público restrito, mas que locais com propostas mais simples e
despretensiosas entendam que é possível fazer comida barata e com qualidade. E
mais, que entendam que fazer isso acontecer também passa por apoiar ideais e
políticas que lutem pra que quem produz alimento real, fresco e desvencilhado
da lógica insana de produção irrefreada e hiperprocessamento da grande
indústria seja devidamente valorizado, já que são essas pessoas que produzem
75% do que chega nas nossas mesas, caseiras ou não.
Depois de 12 anos
pensando e fazendo comida, não acho que nenhuma das duas tarefas se tornou mais
simples. A complexificação do processo, porém, me trouxe também bagagem o
bastante pra não só entender meu processo e apurar minha cozinha, como também
pra ao menos identificar com alguma clareza as virtudes e falhas na panela
alheia. Não sou nenhuma sumidade e tenho total consciência de que pra tudo que
eu sei, existe uma infinidade de entendimentos que me escapam, especialmente
pela minha deserção da profissionalidade do ofício alguns anos atrás.
Tudo isso ao menos
me deu alguma credibilidade pra que as pessoas ao meu redor tenham abraçado o
que tenho pra dizer e começam elas também a espalhar as ideias aqui contidas.
Comecei escrevendo com a pretensão de que isso aqui fosse uma espécie de anti-guia
gastronômico santista e acabei divagando um pouco, mas não importa. Como
sempre, acho que me fiz claro. Penso que mais importante do que te dizer onde
comer ou não, minha busca é incentivar que as pessoas entendam o que estão
comendo. Talvez um dia eu desenvolva algo mais objetivo sobre essa questão,
acho que as pessoas merecem esse suporte. Como já disse anteriormente, é
péssimo se sentir otário com comida, e isso é fácil demais por aqui.
Até a próxima.
Nenhum comentário:
Postar um comentário