segunda-feira, 23 de setembro de 2024

Quem Se Lê - Comentários Sobre “A Mais Recôndita Memória dos Homens”

 




Semanas atrás, por ocasião da comemoração número 2 do aniversário de um grande amigo, estive em São Paulo. Já mencionei diversas vezes o quanto odeio aquilo tudo, o barulho, o ar, a indiferença, a velocidade, os abismos, São Paulo é atroz em cada esquina. Contudo, algumas pessoas que amo muito - e meu ganha-pão, diga-se de passagem - estão lá, então como um bom adulto funcional numa sociedade esquisita como a nossa, engulo meu choro e subo no ônibus pra encarar meu desdém metropolitano em prol das coisas boas da minha vida.

Nesses momentos de alienação do caos surgem boas surpresas, e entre elas está uma das livrarias que eu mais gosto, a Megafauna, no meio da galeria interna do Copan, da qual sempre que entro saio com um ou dois livros. Foi lá que encontrei sem querer meu queridíssimo “Como Escrever Bem”, citado mais de uma vez em textos anteriores. Nessa última ida estive lá novamente e mais uma vez trouxe livros comigo. Um deles é Uma Noite com Sabrina Love, do autor argentino Pedro Mairal, do qual já li outros dois romances, A Uruguaia e Salvatierra, ambos muito bem escritos, além de razoavelmente curtos - fica a sugestão pra você que não tem muita paciência pra histórias enormes e prolixas como eu.

O outro, recém terminado, é A Mais Recôndita Memória dos Homens, do senegalês Mohamed Mbougar Sarr, vencedor do prêmio Goncourt, o mais importante da língua francesa, exatamente por esse livro. Poderia passar vários parágrafos discorrendo sobre suas diversas temáticas, contando sobre a história, mas como já mencionei anteriormente não me dou com a tarefa de resenhista - ao menos não escrita - então serei o mais breve possível sobre a narrativa.

O romance narra, sob diversos pontos de vista, o impacto causado no meio literário francês por um livro escrito por T. C. Elimane, autor elusivo e recluso do qual pouco se sabe pra além do fato de ser africano, palavra escolhida pelo autor pra indicar que 1º: por boa parte da história sequer sabemos qual a sua nacionalidade e 2º: deixar claro que muitos dos personagens que se referem à Elimane, sendo europeus, ainda que se vejam progressistas, têm um olhar carregado de preconceitos, ainda mais típico do período em que se passa parte da narrativa, no pré-Segunda Guerra.

Não vou falar muito mais porque recomendo a leitura. Infelizmente não é um livro barato, então vale ficar de olho em promoções, ainda mais agora que estamos nos aproximando da Black Friday, mas caso a curiosidade fale mais alto, prometo que é um gasto que não vai causar arrependimentos. Voltemos ao que importa e o porquê de eu estar escrevendo esse texto.

Ainda que o foco narrativo seja em Elimane e seu livro O Labirinto do Inumano, tão elusivo quanto o próprio criador, o olhar que conduz a narrativa e nos leva para outros personagens e situações é o de Diégane, jovem autor senegalês expatriado na França - e nosso contemporâneo - que busca reconstruir a história de T. C. em busca de sua própria, não só no sentido pessoal como também no literário, tentando descobrir o que escrever em seu próximo livro. Sua jornada cruza a de outros expatriados, migrantes, escritoras e escritores do presente e do passado que de alguma forma também tiveram suas vidas atravessadas pelo autor.

Todos esses olhares dentro da trama são tão bem desenvolvidos que não seria exagero afirmar que cada personagem poderia ter um livro inteiro pra chamar de seu, e poderia passar mais um tempão aqui falando sobre cada um, mas de novo, o objetivo é outro. Fiz essa introdução gigantesca e esqueci de dizer sobre o que eu vim falar aqui: leitura e escrita.

Durante boa parte do texto 3 perguntas surgiam recorrentemente nas entrelinhas: o quê, por quê e para que escrever. Muitos dos dilemas e angústias das personagens, ligadas em maior ou menor grau com a literatura, orbitavam em torno desses questionamentos, não necessariamente porque escreviam ou escreveriam, mas porque o ato de registrar está intimamente ligado com a memória e esse sim é o grande pilar da obra.

Se por um lado escrever é não esquecer e não se deixar ser esquecido, a leitura surge como a porta pra memória do outro. Obviamente essa não é uma análise inédita e A Mais Recôndita Memória dos Homens não será a última obra a tratar de memória nesses termos, mas existe algo mais, aqui. Diégane busca o tempo todo remontar a história de Elimane não só pra entender o quanto do autor é a obra e vice-versa, mas porque precisa entendê-lo para entender a si mesmo.

Ler O Labirinto do Inumano é acessar uma dimensão de si que, mesmo que acredite estar bem resolvida internamente, o arrasta pra um sentimento comum dos expatriados, que é a falta de certeza. O quanto de si e sua obra é sua terra-mãe, sua cultura natal e seus parentes e amigos conterrâneos e o quanto é dos que colonizaram seu povo, desse país pra onde tantos como ele se deslocaram na tentativa de registrarem sua obra-memória em um lugar que os espalhe? Ou será ainda que isso tudo só serve de sustentação pra algo totalmente novo, e essas pessoas serão sempre a dialética entre esses dois lugares que ciclicamente os acolhe e rejeita?

A escrita e a leitura se tornam então a forma como não só Diégane, mas boa parte das pessoas que cruzam seu caminho, encontram pra tentar organizar todas essas dimensões do ser. O que importa, contudo, não é a organização, ou as respostas em si, mas essa busca. Sem ser claro pra não dar spoilers, o final do livro diz, ao não dizer muito, exatamente isso. Nosso narrador encontra algumas respostas, mas elas geram ainda mais dúvidas que provavelmente nunca serão respondidas, e Sarr faz isso com a gente assim como Elimane fez com Diégane.

Não sei se, de forma generalizada, quem escreve o faz com esse intuito, mas à medida que a narrativa avançava, me senti mais e mais conectado com esse sentimento. Por diversas vezes ao longo da leitura pensei nos motivos que me levaram a iniciar essa empreitada literária, e sempre que acreditava chegar numa possível resposta, outro pedaço da narrativa me conduzia pra um novo questionamento, e as reflexões reiniciavam e se retroalimentavam.

Tive muita dificuldade pra escrever esse texto, em grande parte porque ainda não consegui elaborar completamente todos os sentimentos que me transpassaram ao longo da leitura, mas precisava escrever. Talvez esse fosse o objetivo, estabelecer a ideia de movimento ininterrupto dentro e fora da narrativa. Não vou abstrair pra muito além disso, acredito que toquei nos assuntos e abri as discussões que pretendia. Espero encarecidamente que essa leitura possa te levar ao livro como ele me trouxe até aqui e que te permita tantas reflexões quanto me permitiu. Talvez retorne a ele em outro momento, pois sem dúvida, tendo novos questionamentos, é quase inevitável encontrar novas respostas.

 

Até a próxima.

 


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