Semanas atrás, por
ocasião da comemoração número 2 do aniversário de um grande amigo, estive em
São Paulo. Já mencionei diversas vezes o quanto odeio aquilo tudo, o barulho, o
ar, a indiferença, a velocidade, os abismos, São Paulo é atroz em cada esquina.
Contudo, algumas pessoas que amo muito - e meu ganha-pão, diga-se de passagem -
estão lá, então como um bom adulto funcional numa sociedade esquisita como a
nossa, engulo meu choro e subo no ônibus pra encarar meu desdém metropolitano
em prol das coisas boas da minha vida.
Nesses momentos de
alienação do caos surgem boas surpresas, e entre elas está uma das livrarias
que eu mais gosto, a Megafauna, no meio da galeria interna do Copan, da qual
sempre que entro saio com um ou dois livros. Foi lá que encontrei sem querer
meu queridíssimo “Como Escrever Bem”, citado mais de uma vez em textos
anteriores. Nessa última ida estive lá novamente e mais uma vez trouxe livros
comigo. Um deles é Uma Noite com Sabrina Love, do autor argentino Pedro
Mairal, do qual já li outros dois romances, A Uruguaia e Salvatierra,
ambos muito bem escritos, além de razoavelmente curtos - fica a sugestão pra
você que não tem muita paciência pra histórias enormes e prolixas como eu.
O outro, recém
terminado, é A Mais Recôndita Memória dos Homens, do senegalês Mohamed
Mbougar Sarr, vencedor do prêmio Goncourt, o mais importante da língua
francesa, exatamente por esse livro. Poderia passar vários parágrafos
discorrendo sobre suas diversas temáticas, contando sobre a história, mas como
já mencionei anteriormente não me dou com a tarefa de resenhista - ao menos não
escrita - então serei o mais breve possível sobre a narrativa.
O romance narra, sob
diversos pontos de vista, o impacto causado no meio literário francês por um
livro escrito por T. C. Elimane, autor elusivo e recluso do qual pouco se sabe
pra além do fato de ser africano, palavra escolhida pelo autor pra indicar que
1º: por boa parte da história sequer sabemos qual a sua nacionalidade e 2º:
deixar claro que muitos dos personagens que se referem à Elimane, sendo
europeus, ainda que se vejam progressistas, têm um olhar carregado de
preconceitos, ainda mais típico do período em que se passa parte da narrativa,
no pré-Segunda Guerra.
Não vou falar muito
mais porque recomendo a leitura. Infelizmente não é um livro barato, então vale
ficar de olho em promoções, ainda mais agora que estamos nos aproximando da
Black Friday, mas caso a curiosidade fale mais alto, prometo que é um gasto que
não vai causar arrependimentos. Voltemos ao que importa e o porquê de eu estar
escrevendo esse texto.
Ainda que o foco
narrativo seja em Elimane e seu livro O Labirinto do Inumano, tão
elusivo quanto o próprio criador, o olhar que conduz a narrativa e nos leva
para outros personagens e situações é o de Diégane, jovem autor senegalês
expatriado na França - e nosso contemporâneo - que busca reconstruir a história
de T. C. em busca de sua própria, não só no sentido pessoal como também no
literário, tentando descobrir o que escrever em seu próximo livro. Sua jornada
cruza a de outros expatriados, migrantes, escritoras e escritores do presente e
do passado que de alguma forma também tiveram suas vidas atravessadas pelo
autor.
Todos esses olhares
dentro da trama são tão bem desenvolvidos que não seria exagero afirmar que
cada personagem poderia ter um livro inteiro pra chamar de seu, e poderia
passar mais um tempão aqui falando sobre cada um, mas de novo, o objetivo é
outro. Fiz essa introdução gigantesca e esqueci de dizer sobre o que eu vim
falar aqui: leitura e escrita.
Durante boa parte do
texto 3 perguntas surgiam recorrentemente nas entrelinhas: o quê, por quê e
para que escrever. Muitos dos dilemas e angústias das personagens, ligadas em
maior ou menor grau com a literatura, orbitavam em torno desses questionamentos,
não necessariamente porque escreviam ou escreveriam, mas porque o ato de
registrar está intimamente ligado com a memória e esse sim é o grande pilar da
obra.
Se por um lado
escrever é não esquecer e não se deixar ser esquecido, a leitura surge como a
porta pra memória do outro. Obviamente essa não é uma análise inédita e A
Mais Recôndita Memória dos Homens não será a última obra a tratar de
memória nesses termos, mas existe algo mais, aqui. Diégane busca o tempo todo
remontar a história de Elimane não só pra entender o quanto do autor é a obra e
vice-versa, mas porque precisa entendê-lo para entender a si mesmo.
Ler O Labirinto
do Inumano é acessar uma dimensão de si que, mesmo que acredite estar bem
resolvida internamente, o arrasta pra um sentimento comum dos expatriados, que
é a falta de certeza. O quanto de si e sua obra é sua terra-mãe, sua cultura
natal e seus parentes e amigos conterrâneos e o quanto é dos que colonizaram
seu povo, desse país pra onde tantos como ele se deslocaram na tentativa de
registrarem sua obra-memória em um lugar que os espalhe? Ou será ainda que isso
tudo só serve de sustentação pra algo totalmente novo, e essas pessoas serão
sempre a dialética entre esses dois lugares que ciclicamente os acolhe e
rejeita?
A escrita e a
leitura se tornam então a forma como não só Diégane, mas boa parte das pessoas
que cruzam seu caminho, encontram pra tentar organizar todas essas dimensões do
ser. O que importa, contudo, não é a organização, ou as respostas em si, mas
essa busca. Sem ser claro pra não dar spoilers, o final do livro diz, ao não
dizer muito, exatamente isso. Nosso narrador encontra algumas respostas, mas
elas geram ainda mais dúvidas que provavelmente nunca serão respondidas, e Sarr
faz isso com a gente assim como Elimane fez com Diégane.
Não sei se, de forma
generalizada, quem escreve o faz com esse intuito, mas à medida que a narrativa
avançava, me senti mais e mais conectado com esse sentimento. Por diversas
vezes ao longo da leitura pensei nos motivos que me levaram a iniciar essa empreitada
literária, e sempre que acreditava chegar numa possível resposta, outro pedaço
da narrativa me conduzia pra um novo questionamento, e as reflexões reiniciavam
e se retroalimentavam.
Tive muita
dificuldade pra escrever esse texto, em grande parte porque ainda não consegui
elaborar completamente todos os sentimentos que me transpassaram ao longo da
leitura, mas precisava escrever. Talvez esse fosse o objetivo, estabelecer a
ideia de movimento ininterrupto dentro e fora da narrativa. Não vou abstrair
pra muito além disso, acredito que toquei nos assuntos e abri as discussões que
pretendia. Espero encarecidamente que essa leitura possa te levar ao livro como
ele me trouxe até aqui e que te permita tantas reflexões quanto me permitiu.
Talvez retorne a ele em outro momento, pois sem dúvida, tendo novos
questionamentos, é quase inevitável encontrar novas respostas.
Até a próxima.
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