quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Flip-se

 


Estive na Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, pela primeira vez em 2017, com alguns textos não acadêmicos já escritos, mas absolutamente sem nenhuma pretensão de me tornar um escritor. Sendo sincero, em 2017 eu não fazia ideia do caminho a seguir, mas deixo esse assunto pra outra hora, já que falar sobre isso requereria um tempo considerável, então voltemos.

Relatei muitas vezes meu amor pela leitura, então não é difícil imaginar que estar imerso num ambiente onde - quase - tudo gira em torno da literatura me causa uma comoção enorme, assim como o fim do evento gera uma certa melancolia, quase na mesma proporção. Quase porque esse não é o tipo de coisa que se vivencia e logo se esquece, e hoje, aos 30, muito mais maduro e compartilhando do ofício literário, o retorno à Flip ganhou uma outra dimensão: ouvir tantas pessoas que fazem da palavra sua ferramenta reafirmou minha vontade de continuar e me trouxe novas perspectivas sobre o escrever.

Esse, inclusive, foi o grande tópico informal dessa edição, recorrente em quase todas as mesas e debates que assisti, o fazer literário. Algo bastante natural, diga-se de passagem, considerando que a obra é, de formas variadas, uma extensão do artista e seu jeito de organizar a realidade, tanto pelo que se registra quanto pelo que se omite. Como dizem na música, o silêncio também é parte da composição.

Poder ver ao vivo alguns de meus autores e autoras favoritos da atualidade, como Carla Madeira, Jefferson Tenório, Socorro Acioli e Mohammed Sarr falando sobre seus processos criativos, o que move suas escritas, referências e, acima de tudo, de sua paixão pelos livros não foi apenas combustível pro eu-presente, escritor, mas também um aceno pro Andrézinho que se refugiava em livros incansavelmente, ainda sem saber que aquilo tudo serviria de base pro que estava por vir, mas sempre ávido por transitar entre páginas e palavras, imaginando como seria o mundo se elas transbordassem pro real.

Eis aqui a dimensão da literatura que mais conversa com a pessoa que me tornei. O imaginar não se restringe apenas ao exercício de abstração sobre outras realidades, mas acreditar que a realidade pode ser outra. Não vejo nada como utópico, apenas colossalmente difícil, em muitos casos, e exatamente por isso requer que nos empenhemos, na medida e da forma que forem possíveis a cada um, em construir as condições que propiciem a mudança. Estar lá só reafirmou minhas convicções e, como sempre, reiterou o quanto a literatura pode ser transformadora.

Seria atestar o óbvio, contudo, dizer que nada é perfeito, e a Flip também carrega suas contradições. Já que é um evento literário, começo falando exatamente sobre os protagonistas: os livros. Sabemos que os comprar nunca foi exatamente barato, mas o que se espera de um espaço que visa debate-los e incentivar seu consumo é que estejam disponíveis, ao menos, com valores mais convidativos, e o que se viu foi exatamente o contrário.

Paraty é uma cidade turística e sofre com as mesmas coisas que qualquer outra cidade que carregue esse fardo sofre, então quem vai até lá já espera que os custos sejam singulares, sendo bastante gentil. Existe, no entanto, uma característica muito própria da Flip que é a grande presença de pessoas - turistas ou locais - que trabalham com arte e educação. É certo que existem exceções, mas em ambas as categorias a realidade é a de que, no geral, docentes e artistas não levam uma vida de abundância e grande estabilidade financeira. Participar de um evento como esse, em muitos casos, exige muito planejamento e antecipação, reserva de estadia muitos meses antes, pra pagar em suaves prestações e algum estudo da cidade pra saber onde comer e o que fazer sem comprometer economicamente sua vida depois de voltar pra ela.

Ao menos no centro histórico da cidade, onde ocorrem a maior parte das atividades da festa, cria-se uma bolha de quase absoluto isolamento da realidade social de Paraty como, novamente, em boa parte das cidades que dependem do turismo pra sobreviver. Vi por muitos anos essa mesma discrepância em Campos do Jordão, em que assim como lá não é necessário se afastar muito do epicentro turístico pra começar a se deparar com a materialidade que rege a vida das pessoas naquele espaço. A inacessibilidade do que move a cidade pra quem sustenta essa dinâmica é de uma crueldade assustadoramente recorrente.

Falando em inacessível, essa é uma questão ambígua. É difícil falar sobre acessibilidade quando a própria constituição física e arquitetônica da cidade não proporciona condições pra que ocorram mudanças significativas na estrutura de acesso de pessoas com mobilidade reduzida, seja por portarem alguma deficiência física ou em função da idade, por exemplo. Caso essa informação lhe escape, o centro da cidade é tombado como patrimônio histórico pelo IPHAN, o que não permite obras que a descaracterizem, como a pavimentação de vias que permitissem e facilitassem o acesso.

Vejo algumas iniciativas ocorrendo pra que isso seja sanado, como o projeto de uma rota de acessibilidade de um aluno de mestrado do IPHAN ou a expansão de atividades e eventos ocorrendo em pontos fora do centro histórico, mas ainda é muito pouco. São 22 edições e 21 anos de existência, me parece tempo o suficiente pra que soluções fossem pensadas.

Enquanto pensava sobre como relatar o que vivi nos 4 dias de evento, li alguns textos sobre a FLIP. Todos são muito bem escritos, flutuando entre elogios e figuras de linguagem num mar de exaltações às virtudes da festa. Não os nego, claro, acho que já deixei bem claro o quanto acho importante que eventos como esse existam, mas me incomoda o pouco que se fala sobre suas contradições. Escolhi deliberadamente não falar sobre a programação em si porque disso se encontra artigos aos montes pelas vielas esburacadas da internet, muito mais competentes em analisar as obras de palestrantes e entrevistados do que eu.

Tento me ater à ideia de que ressaltar essas contradições adiciona uma outra camada ao que é vivenciar um evento como a Flip. Às vezes nos foge o fato de que momentos como esse são reflexos e parte constituinte do tempo em que se inserem, e para entender seu impacto - não só da literatura, objeto central da feira - se faz necessário olhar pra suas contradições e colocá-las em perspectiva, à fim de entender por quê e pra quem são realizados. Se as reflexões e impactos de uma festa literária se dissolvem com seu fim ou nas mentes de uma classe que pouco se importa que cheguem em quem mais poderia se beneficiar de sua realização, que diferença faz existir?

 

Até a próxima.

 

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