Aos poucos que ainda não sabem, já que tive
muito afinco na divulgação, co-criei, apresentei e vez ou outra editei um
maravilhoso podcast sobre cinema de baixíssimo orçamento, discutindo filmes de
qualidade quase sempre condizente com suas restrições orçamentárias e que, em
alguns casos, esculpiram marcas indeléveis no meu ser e nos de todos que
participaram, fixa ou esporadicamente, dos 30 episódios lançados.
Apesar dos vários chutes e voadoras de vacilo
que nos atingiram em cheio, em especial ao já não tão jovem Gabriel - o Guedo,
Guedollas, Gabigollum e tantos outros apelidos fofos que eu cunhei ao longo dos
nossos quase 10 anos de amizade - que teve a tarefa hercúlea de editar e
ajustar as trocentas horas de material que gravamos, guardamos com muito
carinho todo o riso, de alegria ou nervoso, que o melhor do pior do cinema
poderia nos ter proporcionado. Agora, pra surpresa de todos, não vim aqui hoje
pra falar sobre o Cinemasso, mas sim das tranqueiras às quais a gente se
submeteu e sobre criatividade e originalidade.
Acredito que não precise nem dar exemplos
quando relembro aqui que nos últimos anos tivemos uma enxurrada de remakes e
tentativas de trazer de volta franquias há muito esquecidas ou que sequer
precisavam ser refeitas e continuadas, e tenho certeza de que só de ter lido
isso pelo menos uns três exemplos tenham vindo à sua mente. A Disney,
especialmente, em sua incansável busca pelo monopólio absoluto do
entretenimento, se vale muito dessa prática, retroalimentada por uma demanda
que ela mesma, junto com outros grandes bastiões da indústria - no pior sentido
possível - ajudou a criar, na tentativa de manter quem consome seus produtos
incessantemente engajados.
Por que não, então, unir o útil ao agradável e
só requentar infinitamente o que já deu certo, correndo riscos mínimos, ao
mesmo tempo que fisga a audiência com facilidade ao alimentar os anseios de
afirmação de seus gostos e de pertencimento ligado ao passado, se escorando na
nostalgia mais tosca possível? Eis o entretenimento no século 21. Agora, antes
de continuar, quero deixar bem claro que de forma alguma eu julgo quem consome
essas coisas, até porque seria de uma hipocrisia sem tamanho. Minha crítica é
direcionada à quem produz. Por que isso, então, tem a ver com o Cinemasso?
Explico.
Se você entrar na nossa página no seu
streaming ou rede social preferida - que nesse caso só pode ser o Instagram, já
que é único lugar com um perfil do podcast - não tenho dúvida de que vai lhe
ocorrer algo como “meu Deus, que filmes ridículos são esses”? Não discordo, ao
menos na maioria dos casos, mas existe uma coisa que os une e que, mesmo te
causando estranheza, há de se concordar: são ideias muito originais.
A década de 80 talvez seja a mais frutífera
nesse sentido, um período histórico em que, sim, muitas ideias eram ruins ou
imbecis, mas nunca o suficiente pra serem ignoradas. Os gêneros que mais se
beneficiaram disso foram a ação, a comédia e o terror, e ainda que muita gente
tenha vergonha de admitir, com certeza tem um filme xodó que se enquadra em um
deles e que, se fosse feito hoje, estaria relegado ao mais absoluto fracasso.
Me ponho como exemplo quando afirmo, sem medo de ser feliz, que Stallone Cobra é
um dos meus filmes preferidos. Se não viu, veja, pois é uma obra que
exemplifica muito bem meu ponto.
Pensando seu conceito, nada muito fora do
tradicional filme de ação policial estadunidense. Mocinha perseguida por um
bandido implacável e protegida pelo herói improvável, renegado por grande parte
de seus pares, mas que carrega consigo a chama da justiça. O que diferencia
Cobra dos outros é que, apesar da ideia entregar que vai ser só mais um filme
genérico e previsível - e não deixa de ser, apesar dos pesares - existe uma
tentativa genuína de inserir elementos que construam aquele mundo de forma
diferente do que se encontra por aí. O que começa como uma narrativa um tanto
comum se torna um festival de “mas de onde veio isso?” e “por que diabos esse
cara fez aquilo?”, entre outros questionamentos que tem fazem duvidar se aquele
filme é o mesmo que você começou a assistir. Mas agora você precisa de mais.
Entre as muitas maluquices, as minhas
preferidas são, sem dúvida, o bizarríssimo ensaio fotográfico de Brigitte
Nielsen com robôs de borracharia do interior, o carro velho e pesado do
Stallone, completamente deslocado daquele universo como seu próprio protagonista,
seus hábitos peculiares como cortar pizzas com tesoura, mascar palito de
fósforo e fazer ele mesmo o retrato-falado do vilão. É tudo fora do tom e sem
sentido, mas ainda assim quanto mais a história avança, mais a sensação de
estranhamento diminui, porque naquele microcosmo de policiais de sobretudo num
calor de 40 graus, como tudo é exagero, nada fica realmente fora do tom.
Agora, que lugar teria um filme como Stallone
Cobra em 2024? É altamente improvável que um estúdio com alguma capacidade
financeira tivesse qualquer impulso de injetar dinheiro na produção de algo
parecido, como a Warner fez em 86 com o roteiro co-escrito pelo próprio Sly. É
aí que mora a morte da expressão artística. Definir o que é ou não arte é um
debate complexo e que requer cuidado e profundidade aos quais não me proponho
nesse momento, o elemento dessa discussão que quero levantar aqui é o da construção
de referências. A expressão artística, mesmo quando não mediada por um
ferramentário técnico complexo, pode ter um alto grau de complexidade no seu
resultado, mas pra que isso ocorra é necessário que o autor tenha uma
considerável bagagem referencial.
Como essa bagagem se constrói, então? A
resposta mais do que óbvia é consumir cada vez mais coisas, das mais variadas
perspectivas, pra que seu referencial se complexifique e a criticidade do olhar
se aprofunde. Qual é o efeito, então, de estarmos num momento de produção como
o atual? As mídias de massa despejam tanto conteúdo homogêneo que existe
pouquíssimo espaço pra que a criatividade respire, e quem busca criar algo com
algum nível de originalidade fica relegado aos espaços “underground”. E aqui não
me refiro apenas ao cinema, mas a todo tipo de expressão, artística ou não.
Transporte agora esse preceito pra outro
campo. Pensemos no caso da ciência política. Quanto exatamente você conhece do
referencial teórico que constrói o pensamento ao redor das coisas que você
critica? Extrapolando ainda mais, o quanto você tem de embasamento pra defender
sua própria visão de mundo? Se todo debate ou temática está sujeito ao processo
de homogeneização, não estaria então todo o referencial sujeito também ao mesmo
processo?
É claro que se pode argumentar que tudo, ou ao
menos parte considerável, do que foi produzido ao redor desse processo, no
passado ou no presente, continua disponível, mas em quantos espaços é possível
se ter acesso à essas coisas? Quando você vai a uma livraria, quais são os
primeiros títulos que você encontra próximos à entrada? Quantos filmes de
produtoras pequenas ou independentes estão passando no cinema mais próximo da
sua casa? Que shows são divulgados nos principais veículos de mídia que você
acessa? Você sequer busca transpor a barreira da produção industrial de gostos
pra descobrir o que se faz além dela?
Essas são apenas algumas das perguntas que se
pode levantar, e como sempre meu papel é tentar te oferecer um espaço pra se
questionar. Tenho minhas respostas e convicções sobre o tema, e algumas estão
contidas nas entrelinhas desse texto. Ser original ou produzir originalidade
num mundo com o tanto que já foi feito não é tarefa simples, mas nunca foi,
especialmente quando não havia nada sobre o que refletir ou referenciar, então,
apesar de quem lucra forte com essa régua média querer estabelecer algum tipo de
limite pro que é relevante ou merece atenção, acho que pra gente a coisa quase
chegou de bandeja.
Tem uma frase, que provavelmente ouvi no
Choque de Cultura, apesar de não lembrar em qual episódio e sequer estar
disposto a procurar, que diz que se tudo fosse genial, tudo seria medíocre -
aqui com seu significado correto, de mediano - e que a gente precisa das coisas
que são ruins pra ter parâmetro sobre o que é bom. Mas como pode haver o ruim
sem experimentação, se tudo já é produzido sob parâmetros formuláicos? O que eu
quero dizer é que a gente precisa estar aberto pra todo tipo de coisa. A gente só
tem certeza se é bom ou não se estiver disposto a consumir ou produzir algo sem
ficar criando expectativas abstratas. Se for bom, ótimo, aquilo te entregou uma
nova referência positiva. Agora, caso contrário, paciência, a vida também tá
cheia de momentos de merda que a gente não pode evitar. Nessas horas é que eu
costumo tirar as melhores ideias pra textos. A vida entrega originalidade o
tempo todo e a gente nem se dá conta.
Até a próxima.
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