quarta-feira, 20 de março de 2024

Notas Complementares para “A Pobre Criatura Chamada Subjetividade”

 

O que faz de você, você? Melhor dizendo, você seria capaz de responder, de forma direta e objetiva, quem é você? Faça essa reflexão agora sem pensar no que você faz profissionalmente, ou no que você estudou, ou numa coisa que você gosta. Remova todas as coisas que compõe o seu eu exposto ao mundo exterior e tente responder essa pergunta como se falasse consigo mesmo.

Eu, particularmente, não tenho a mais remota ideia do que responderia. E depois de finalmente assistir e sim, por meios totalmente legais, pode ter certeza, Pobres Criaturas, esse questionamento ficou ainda mais complexo, quase beirando o cômico - é meio engraçado se sentir completamente burro, incapaz de responder uma pergunta que, penso eu, implica certa trivialidade.

Pontuo, antes de mais nada, que a questão do cérebro de criança no filme não é apenas uma analogia. Bella Baxter de fato recebe, recém falecida, o cérebro do bebê que gestava. No entanto, quando pensamos no conceito “cérebro de criança” estamos imputando conceitos apoiados no que se construiu socialmente sobre infância, o que é ser criança e todo o escopo de décadas de pesquisa sobre fases do desenvolvimento e blá blá blá. Lembremos que há não muito tempo atrás nada disso existia, então sem anacronismos.

Poderia passar um tempão mergulhando nesse ponto específico - ao menos sob a ótica da educação e da sociologia - mas esse não é o motivo de ter querido escrever um texto complementar, até porque a interpretação clara desde o início do filme se mantém exatamente a mesma que coloquei em “A Pobre Criatura Chamada Subjetividade”. Caso não tenha lido, volte duas casas.

O motivo de estar falando sobre o assunto novamente mistura o texto anterior com os questionamentos apontados aqui, nos primeiros parágrafos. Quando não se possui nenhuma referência sobre nada, como estabelecer uma relação dialética com o mundo e confrontar toda a miríade de conceitos e convenções já estabelecidas, mesmo tendo a capacidade cognitiva para tal? Cognição desenvolvida é suficiente pra mediar um mundo quando há ausência de entendimento dos símbolos sociais?

O filme não tenta responder, mas carrega o debate através das ações de Bella sendo dotadas de profunda objetividade, ultrapassando com força pro lado de uma simulação do que seria o estabelecimento de uma relação puramente metodológica com o mundo. As coisas, após determinado ponto, abandonam o caráter de descoberta, que remeteria ao fluxo comum do desenvolvimento do “eu”, e passam a ser experienciadas analiticamente, a aproximando de se tornar cada vez mais um reflexo do dr. Godwin Baxter, seu “criador”.

Adentrando esse pressuposto, o questionamento que se formula, e que talvez ambas as personagens, de formas diferentes, tentem responder, ou ao menos traçar uma linha lógica - não eles em si, mas suas trajetórias durante a narrativa - é: não possuir subjetividade construída de forma natural, dentro do tempo entendido como adequado para tal e passando pelas diversas fases do desenvolvimento da mente, possibilitaria algum nível de neutralidade real ao se analisar um objeto?

O tempo todo, ao longo do filme, o dr. Godwin relata as mais diversas atrocidades que o próprio pai cometeu com ele, mutilações diversas em prol de um senso deturpado de avanço científico e compreensão do corpo humano, o que o próprio defende com a mesma frequência como sendo os atos corajosos de alguém capaz de tudo pelo avanço técnico, como se tivesse experienciado uma espécie de dissociação do próprio sofrimento como forma de suportá-lo, estabelecendo um significado lógico, afastado de qualquer noção movida por sentimentos, para tudo que passou.

Se a objetividade seria para o dr. uma forma de fuga da própria subjetividade, de um elemento constituinte do seu “eu” - o sofrimento físico e o ódio pelo mesmo ter sido causado pelo próprio pai - para Bella esse mesmo traço anda em contraste constante com o fato de que, por não ter se desenvolvido numa temporalidade natural, todas as suas reações ao mundo, mesmo quando demonstra profunda inteligência e capacidade analítica, são precedidas por atitudes totalmente instintivas.

Quando entende sua sexualidade, quando come um doce pela primeira vez, quando ouve um bebê chorando, suas reações sempre são as que qualquer um tomaria se não estivesse sociabilizado - buscaria estímulo sexual continuamente, comeria um doce atrás do outro, reagiria com violência ao incômodo causado pelo choro. A quebra desse padrão só ocorre a partir do momento que ela é confrontada com duas coisas: a filosofia, que estabelece novas formas de percepção sobre o mundo, não objetivas e conflitantes com o que parece óbvio, e o choque de se deparar com a miséria, que desfaz sua noção de que o atendimento de seus prazeres é natural e está disponível para todos.

Sua resposta aos dois, sem possuir nenhum campo referencial prévio sobre ambos, também parte de reações de certa forma lógicas: o desespero e tristeza profunda com a filosofia implicando que nem tudo é claro como ela entendia, até então, o que acaba por estabelecer uma ruptura paradigmática, e a tentativa de sanar a pobreza suprindo àquelas pessoas o objeto que, em sua falta, a causaria, o dinheiro.

Existe espaço pra discutir uma série de outras questões sobre o filme, mas acho que, com relação ao meu objetivo central, me fiz entender. E isso porque a ideia era só complementar o que eu já tinha escrito. Talvez, no fim, o texto anterior seja um complemento desse. Seria possível complementar uma ideia antes mesmo de ela existir? Confesso que às vezes tenho medo de ser taxado de prolixo, então chega de divagação por hoje.

Não tenho total certeza se gostei do filme - imaginem se tivesse - mas posso afirmar que ele me deixou intrigado. Ao longo da história fui puxado pra fora diversas vezes, não por estar desinteressado, mas pra tentar organizar um pensamento que me ocorria sobre algo específico e anotar pra escrever esse texto. O ritmo da narrativa quase não te dá espaços pra sair dela, e tudo ocorre de forma tão intensa - talvez numa tentativa de nos conectar com a protagonista - que 2h20 parecem 3.

No fim das contas, acho que não respondi a pergunta que levantei lá no meio, e sendo bem sincero não sei se queria responder. O filme também não entrega nada de bandeja e eu tive que lidar com um pouco de insônia pra organizar e escrever o início das ideias contidas nesse texto. Talvez tenha escrito um monte de bobajada e você perdeu um tempo tremendo pra chegar até aqui, ou então tudo fez muito sentido e agora você deve estar se fazendo um monte de questionamentos. Em ambos os cenários, considero que atingi meus objetivos. Se é uma derrota, que seja compartilhada.

Até a próxima.

 


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