terça-feira, 12 de março de 2024

A Pobre Criatura Chamada Subjetividade

 

Há alguns dias li uma matéria sobre pessoas criticando um aspecto específico do filme “Pobres Criaturas”, de Yorgos Lanthimos, mesmo diretor do excelente, ainda que um pouco arrastado, “A Favorita”. Os comentários se direcionam ao fato de que a personagem principal, uma mulher falecida que é trazida de volta à vida por um cientista, tal qual o monstro de Frankenstein, recebe um “cérebro de criança”.

Ainda não tive a oportunidade de o assistir, então me abstenho de interpretar, até que isso ocorra, qualquer coisa relacionada diretamente à trama. Meu foco aqui é apenas na questão das críticas em si e minhas considerações sobre isso. O que se pontua é que muito da história gira em torno de que a personagem passa por uma série de eventos que a levam à descobertas sobre, entre outras coisas, sua sexualidade, o que faria ter um “cérebro de criança” algo no mínimo questionável.

A resposta pra isso, tanto do diretor quanto da atriz e produtora que interpreta a personagem principal, Emma Stone, é de que o conceito é usado como uma analogia para o fato de seu cérebro ser “zerado”, tomado de extrema inocência e desconhecimento perante o mundo, ainda não dotado de subjetividade, e que em todo o filme os outros personagens a tratam exatamente como o que ela é, uma mulher adulta.

Não tenho qualquer pretensão de falar de algo sobre o qual não tenho conhecimento, então lhes pouparei de colocações mal feitas sobre teoria de psicologia e psicanálise. Se quiser ler algo bem fundamentado sobre isso, deixo ao final da postagem o link do texto “Pobres criaturas e nosso reflexo em seu espelho”, do psicanalista Douglas Rodrigues Barros para o blog da Editora Boitempo. Quanto as críticas, sob o pretexto de abrir uma portinha pro debate, faço meus apontamentos.

Arte é interpretação. Obviamente existem técnicas e modos do fazer artístico, mas o resultado final, uma vez lançado ao mundo, está sujeito às variadas interpretações de toda e qualquer pessoa que se expor e consumir aquele objeto artístico, cada qual com seus próprios mundos mentais, referências e subjetividades que moldam o olhar sobre as coisas, e que em grande parte diferem da visão e intenção do artista.

Dito isso, me soa profundamente preocupante que alguém assista um filme com a premissa de “Pobres Criaturas” e simplesmente o interprete da maneira mais direta e rasa possível, assim como me soaria muito estranho que alguém olhasse pra história do Monstro de Frankenstein, sua principal e mais clara referência, apenas como mais um livro de terror. A arte convertida em indústria e, consequentemente, em produto - sintoma do capitalismo - revela uma das facetas mais estranhas da mercantilização de tudo e da tendência a monopolização: a planificação das subjetividades.

Nosso modo de entender o mundo está tão cativo da modulação do gosto, em que tudo que chega pra ser consumido oferece a pergunta e a resposta, ou o mistério e sua resolução, sem espaço pra interpretações e dúvidas, que aos poucos nos tornamos cada vez menos capazes de olhar para algo além de seus limites objetivos e concretos, e pior, afunilando nossa cadeia de consumo cada vez mais, “universalizando” o gosto e ainda estabelecendo uma ideia de estranhamento a quem não aderir a isso. Para exemplos práticos sugiro - mas não recomendo - duas semanas de uso do Xwitter, a rede social falecida.

Um ex-professor costumava dizer que a gente sempre devia ter mais perguntas do que respostas, porque elas fecham os debates quando estes, num mundo ideal, não deveriam nunca se encerrar. Num momento histórico em que a formulação das subjetividades está rendida à essa homogeneização, onde se incentiva a sobreposição do coletivo pelo indivíduo, em que “ter a razão” ou “vencer o debate” são colocados como mais importantes que a reflexão em si, como desmanchar as certezas e incentivar a expansão dos limites do subjetivo?

Como eu disse antes, zero pretensões de tentar dar respostas pra coisas sobre as quais eu não tenho conhecimento. Meu objetivo aqui era exclusivamente tentar causar algum incômodo sobre isso, e se eu consegui ou não, aí fica a seu cargo me dizer. Talvez depois que assistir o filme escreva algo mais sobre o tema. Por hora, encerro.

Até a próxima.

Link para “Pobres criaturas e nosso reflexo em seu espelho”: https://blogdaboitempo.com.br/2024/02/27/pobres-criaturas-e-nosso-reflexo-em-seu-espelho/

 


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