O primeiro dia de aula em cozinha, na
faculdade, era reservado pra inglória tarefa de mandar uma faxina geral nela,
propositalmente deixada no pior estado possível. Coifas tão engorduradas quanto
aquele lanche duvidoso que você comia pós-balada aos 19 anos, panelas com
grossas crostas de caramelo queimado - que deixariam tomadas de inveja as
placas tectônicas - e outros desafios faxinescos que exigiam sagacidade e força
que a maioria de nós não tinha. Curiosamente, era - e não duvido que ainda seja
- um dos dias em que mais faltavam alunos.
Aquele momento, além do claro objetivo de
aprendermos a faxinar nosso ambiente de trabalho da melhor forma possível,
diziam os professores, também tinha um outro propósito, nos fazer entender que
estar ali só nos faria bons cozinheiros - e não chefs, como muitos pensavam que
seriam depois de dois anos - se internalizássemos a dureza do trabalho.
Concordo com isso, mas também sentia falta de um outro apontamento sobre a
questão, que era estabelecermos um senso claro de que a cozinha só andava de
forma coletiva. Tem muita gente que ainda não entendeu isso.
Costumo falar muito sobre a minha relação com
a comida e a cozinha, mas pouco sobre como ela começou. Sendo assim, iniciemos
do início. Lembro com clareza ímpar do meu pai indo embora e o sentimento de
“merda, tô sozinho” que tomou conta de mim quando mudei pra Campos do Jordão
pela primeira vez, aos 17 anos. Era 2012 e nunca tinha ficado totalmente só,
ainda que estivesse acostumado a lidar com as necessidades básicas de um lar.
Apesar da minha já citada timidez, fiz amigos bastante rápido, o que acabou por
amenizar muito o peso do processo.
Não sabia o que fazer, mas sabia que coisas precisavam ser feitas. E assim se deu. Um dia de cada vez, uma tarefa por
vez, e tudo foi se estabelecendo. Entre erros e acertos, me formei, fiz
pós-graduações e hoje, 12 anos depois, não trabalhando mais na área, sinto que
finalmente me tornei um cozinheiro competente.
Voltando um pouco mais, fora toda a tradição
ao redor de comida das minhas famílias, cada qual com as suas peculiaridades
regionalísticas, comecei a me interessar por gastronomia por causa de dois
chefs: Bob Blumer e Anthony Bourdain. Ao contrário de hoje, mesmo em canais de
TV fechados era quase impossível encontrar programas exclusivamente sobre
comida, ainda mais nacionais, nos idos de 2007, pra além das Palmirinhas,
Namarias e Edu Guedos, e ninguém ia pra faculdade de Gastronomia por causa de
algum master-chef-estrela. Valorizo muito o legado dessas pessoas, mas no
emaranhado de receitas super práticas e saborosas pra pessoas comuns fazerem em
casa, sempre tinha uma lacuna: qual era a da comida.
A primeira vez que me fiz essa pergunta foi
também a primeira vez que vi Anthony Bourdain comendo algum troço nadando em
caldo apimentado - beirando o radioativo, do jeito que hoje eu gosto - numa
barraquinha de rua tailandesa, enquanto conversava com um conhecido nascido no
país sobre o que a mãe dele costumava cozinhar, e 5 minutos depois os dois
debatiam a melhor técnica pra preparar um peixe específico numa mesa de
restaurante estrelado. Foi ali que eu comecei a entender que não era só sobre
comida.
Considerando que eu tinha 13 anos e, além da
gastronomia, também começava a descobrir o rock e uma pseudonoção de rebeldia,
a figura do Bourdain era um tanto quanto chamativa, fazendo comentários ácidos
enquanto balançava um cigarro e uma cerveja como se tocasse bateria, dizendo o
quanto a vida da cozinha era insana e tirando sarro de algum chef pomposo. É
possível que isso tenha me dado algum senso de construção de mim mesmo, e de
como, depois de ter sido uma criança fechada e que sempre tentava passar despercebida,
eu poderia - pelo menos dentro dessa cachola peculiar - me tornar uma figura
interessante, de alguma forma.
Muitos anos passaram, li os livros que ele
escreveu, vi outros episódios dos programas que ele apresentou e enquanto eu
fazia meu próprio caminho na cozinha, entendia um pouco mais tudo que aquele
maluco dizia. Quando ele morreu, em 2018, a gastronomia também perdeu um
pedaço, pra mim, e me fez lembrar que a vida na cozinha cobra um preço
desagradável pra ser vivida. Agradeço tudo que passei, mas agradeço ainda mais
por ter tido a escolha de fazer outra coisa.
Se Anthony Bourdain me proporcionou a
realidade, com Bob Blumer foi o encantamento de descobrir uma coisa nova quando
se é criança. Uma pesquisa rápida entrega rápido o motivo disso: é impossível
não querer cozinhar vendo aquela figura de cabelo em pé, se divertindo horrores
com os convidados enquanto faz um prato cheio de técnicas malucas como se
fossem a coisa mais corriqueira do mundo DENTRO DE UM TRAILER-TORRADEIRA. Como
o programa passava pouco, todos os dias olhava a programação inteira do canal pra
ver se surgia entre os quadradinhos o Gourmet Surrealista.
Um dia, sem mais nem menos, o programa
simplesmente desapareceu e nunca mais passou. Coincidentemente isso aconteceu
na mesma época que mudei pra Campos, então é possível que eu só tenha perdido
esse momento, o que não diminui a importância que ele teve nas primeiras etapas
da minha formação.
Assim como o programa desapareceu, o próprio
Bob, junto com a torradeira gigante em que ele cozinhava, se ausentou das
minhas memórias, ao longo dos anos. Há alguns meses, fazendo almoço de domingo,
tive um estalo nostálgico e lembrei de várias coisas como se tivesse assistido
o programa no dia anterior. Corri pra pesquisar à quantas andava a vida dele e
fiquei feliz de saber que continua participando de programas culinários,
fazendo por outras pessoas o que, mesmo sem ter a menor ideia, ele fez por mim,
mostrar a cozinha como uma antena pra nossa criatividade, um lugar pra criar,
que nos abraça pra podermos abraçar os outros.
Um bom tempo atrás, já nem sei mais em que
texto, disse que cozinhar não é uma forma de amar os outros, ou ao menos não a
única coisa. Têm afetos demais envolvidos nessa história e entregar a carga
toda pro amor seria injusto com o resto deles. Relembrar essas duas figuras
reforça - ao menos pra mim - esse sentimento, e tenho certeza que ambos foram
cruciais pra que chegasse nessa conclusão. Um ciclo completo, e talvez essa
seja a da comida, vai saber.
Prometo que continuarei tentando encontrar uma
resposta mais concreta pra esse dilema. Prometo também continuar não assistindo
MasterChef. Posso não ter certezas, mas pelo menos eu tenho respeito próprio.
Até a próxima.
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