Seguindo na onda de
mudanças deste último ano, me coloquei um objetivo claro e irrevogável, retomar
o hábito de leitura. Quem me conhece há mais tempo sabe que desde a infância
consumir literatura é minha maior habilidade e meu maior gosto, além de ser também
meu grande refúgio.
Em não raras
ocasiões passava 6, 7 horas lendo ininterruptamente. Fui uma criança e um
adolescente - não que hoje seja muito diferente - pouco social, por uma série
de fatores que me reservo o direito de não falar sobre, só porque sim. Apesar
das muitas possibilidades de entretenimento individual pra uma criança do
início do século XXI - ainda que não tantas quanto hoje - foram as páginas e
páginas de papel Pólen preenchidas com fonte Register que mais ocuparam
meu tempo e meu imaginário até a faculdade.
Quando iniciei a
graduação, vivendo numa nova cidade com todo um novo mundo de sociabilidades se
abrindo, minhas atividades solitárias foram ficando cada vez mais de lado -
vide “Hoje Eu Quero Sair Só” - e os livros, que até então eram de tudo quanto é
tipo, foram aos poucos se convertendo em receituários, volumes sobre
administração de restaurantes e calhamaços enormes sobre História da
Alimentação, dos quais boa parte ainda mantenho na minha biblioteca pessoal,
apesar de não atuar mais profissionalmente como cozinheiro.
Não que a temática
da alimentação já não me interessasse antes, mas era natural que estudando
Gastronomia o interesse aumentasse e ocupasse um espaço quase absoluto na minha
vida. Uma das coisas que falo pouco sobre esse período é que a cozinha, pra
além de um gosto, beirou uma certa obsessão, e o afastamento no fim das contas
foi bom, já que permitiu recriar minha relação com a cozinha, ainda que
continue sendo excessivamente rigoroso comigo mesmo. Enfim, a literatura.
Muitos livros me
marcaram em diferentes momentos da vida, mas quatro obras tiveram um impacto
considerável na forma que penso e vejo o mundo, aqui dispostos numa linha mais
ou menos temporal de leitura: “O Guia do Mochileiro das Galáxias”, “A Divina
Comédia”, “O Manifesto do Partido Comunista” e “Como Escrever Bem”. Vamos a
eles.
O Guia, como já
mencionei no “A Vida, O Universo e Só Mais Umas Coisinhas”, título inclusive
inspirado na obra deste autor, é uma série de ficção científica escrita por
Douglas Adams, responsável também pela bilogia do detetive Dirk Gently e
o já citado “O Salmão da Dúvida”, além de ter colaborado consistentemente com a
produção da - excessivamente, desculpem-me os fãs - longeva série Doctor Who
e com o grupo britânico Monty Python, alicerce de muito do que se
entende hoje como humor.
Apesar de fã de seu
estilo humorístico, carregado de sarcasmo e nonsense, o que mais me
marcou foi a forma como Adams construiu seus universos literários. Ainda que
cientificamente ficcionais, tudo é muito real, na dimensão de que, se algum
absurdo envolvendo burocracia entre civilizações interplanetárias ou a
revelação cósmica de que de fato as perguntas sobre o sentido da vida fazem tão
pouco sentido quanto as respostas, não nos espantaríamos completamente se
qualquer dessas coisas acontecesse numa tardezinha gelada de domingo como a de
hoje. Convenhamos, tem muita coisa pior acontecendo nesse exato momento e o
mundo continua assistindo imóvel. Poderia escrever um texto exclusivamente
sobre ele e sua obra, mas hoje meu intuito é ressaltar aquilo que mais me
marcou em cada livro, então prossigamos.
“A Divina Comédia”
foi um caso curioso. Fiz o ensino médio em uma escola construtivista, que ao
longo do processo de ensino-aprendizagem desenvolvia diversos projetos com os
alunos, entre eles a escrita de uma monografia. O objetivo era que estivéssemos
preparados pra pesquisa e escrita científica quando seguíssemos para nossas
graduações. A maioria dos meus coleguinhas - alguns deles talvez estejam lendo
esse texto, então olá coleguinhas - escolheram temas bastante coerentes pra
quem tem 16 anos, mas eu não. Talvez já tenha mencionado esse fato, mas fui um
jovem vaidoso com a imagem que tinha da minha própria inteligência. Deus do
céu, como eu era arrogante.
Essa peculiaridade
colocou na minha cabeça que seria sensato, no segundo ano do ensino médio,
escrever uma monografia sobre uma das obras mais complexas da história da
literatura. Não tenho qualquer lembrança do trabalho em si, ainda que me
recorde de ter tido certo êxito no resultado final, dadas as proporções do que
um adolescente comum seria capaz de produzir. Independente disso, o ponto foi
que Dante Alighieri me marcou.
Existe uma
profundidade de referências e debates contidos n’A Divina Comédia que talvez,
na literatura, só se encontre paralelo de relevância quando colocada frente a
frente com a Bíblia. Pode ser forte fazer essa afirmação, mas a faço sem medo.
Considere ainda que Dante escreveu boa parte da obra vivendo em exílio,
participando ativamente das intensas movimentações políticas do que veio a se
tornar o Estado italiano, em meados do séc. XIV, com poucos recursos e acesso à
materiais referências, e a coisa se torna ainda mais impressionante.
Em contraste a
centena de “cantos” da Comédia, por sua vez, o Manifesto do Partido Comunista
me deixou uma marca pelo poder de síntese de Marx e Engels. Goste ou não dos
dois, seja ou não de esquerda, o impacto causado por uma obra tão diminuta em
extensão é estarrecedor e inegável. Li pela primeira vez por volta dos 14 anos
a mesma cópia que ainda ocupa um espaço na minha estante de livros. Não que eu
precisasse ser convencido de nada, considerando o contexto em que fui criado,
mas foi meu primeiro contato com uma obra de teoria social e a porta de entrada
pra busca por mais conhecimentos sobre os “comos” e “por quês” da vida em
sociedade.
Torço pelo dia em
que ninguém mais dirá “nossa, esse livro é tão atual”, já que o grande ponto e
problema não é a atualidade do texto, mas a compreensão de que pouca coisa
mudou do séc. XIX pra cá. Troque tecnologias digitais por manuais, mecânicas e
analógicas e voilà, nós, proletários e pobres mortais, continuamos
empurrados pelas mesmas mãos que ditavam as regras para os trabalhadores com
quem Karl e Friedrich militavam, conversavam e debatiam.
Chego, por fim, ao
livro que virou a chave não só na minha percepção sobre o fazer da escrita, mas
também sobre como olhar o mundo e encontrar relevância no que parece ordinário.
Lançado originalmente em 1976, “Como Escrever Bem” não é só um manual de redação.
Como o próprio autor, o estadunidense William Zinsser, comenta em diversos
momentos ao longo do texto, seu objetivo não é só levar a quem lê um conjunto
de regras a serem seguidas, mas é proporcionar reflexões sobre como encontrar
sua própria voz e estilo e construir uma narrativa que seja capaz de tornar até
o tema mais corriqueiro em algo com o qual o leitor consiga se conectar.
Não sei exatamente
com quais palavras explicar muito além disso, mas cada página lida me
impulsionava ainda mais a olhar pro que eu havia produzido até então e as
diversas melhorias que poderia fazer não só no material, mas na própria visão
das coisas sobre as quais escrevi. Esse é um livro tanto pra quem produz
literatura, seja ela do tipo e com o intuito que for, quanto pra qualquer
pessoa que busque minimamente se manter atualizada e em movimento diante de
suas próprias percepções frente a vida. Se puder, leia.
Outros muitos livros
me marcaram, obviamente, mas os maiores impactos sem dúvida foram desses. Como
falei sobre “O Guia”, não seria nenhuma provação escrever textos únicos sobre
cada um, mas não me dou com a ideia de virar um resenhista ou ensaísta. Prefiro
manter a vocação de palpiteiro semi-profissional e entregar impressões sucintas
e nada modestas sobre o que eu entendo como bom. Seguirei lendo e acreditando
que talvez, um dia, esses livros mudem. Até lá continuarei espalhando as
palavras contidas aqui, dividindo um pouquinho das inspirações que me trouxeram
até esse momento.
Até a próxima.
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