domingo, 31 de dezembro de 2023

As Voltas que o Mundo Não Dá

 



A menos que aconteça algo absurdo e inesperado, a vida da maioria de nós vai ser completamente ordinária. “Ai, lá vem esse mala pessimista de novo”. Não, não tô falando isso pra te desanimar ou fazer o realistão, muito menos pra te sugerir algum tipo de conformidade com a vida.

O texto de hoje tem outro objetivo: falar sobre a vida acontecendo no corriqueiro e cotidiano, ou seja, nas voltas que o mundo não dá. Talvez uma forma mais precisa de dizer seria “os ridiculamente lentos e imperceptíveis movimentos que o mundo dá“, mas prefiro minha pequena subversão da gíria.

Belchior inicia “Como Nossos Pais” com a frase “não quero lhe falar, meu grande amor, das coisas que aprendi nos discos. Quero lhe contar como eu vivi e tudo que aconteceu comigo”. Perdida entre tantas outras passagens carregadas de significados, talvez as pessoas não se acometam que essa seja a que mais fala sobre ele e sua obra, e porquê, mesmo depois de tanto tempo, o continuamos ouvindo e amando.

Cantarolando mentalmente a música, tive um lapso de clareza - pouco frequente nos últimos tempos - sobre o peso dessa passagem e o que me faz ter tanto apreço pela escrita de crônica e não-ficção. O mundo aqui, agora, concreto e material, é tão cheio de contradições e interrupções dos nossos planos e projeções que damos pouco espaço pra uma coisa crucial: observar o mundo acontecendo e a beleza que existe nisso, afinal de contas são essas as coisas reais e palpáveis das nossas vidas.

Não posso deixar de dizer que isso é totalmente compreensível, considerando o ritmo e a miríade de aspectos ideológicos que o capitalismo impõe pras nossas vidas proletárias e que moldam nossas relações nos mais diversos aspectos, especialmente com o tempo, e considero esse o fator determinante pra amarrar o Belchior, meu lapso de clareza e a crônica.

A meu ver, escrever é, acima de tudo, um exercício de observação - e claro, alguma sensibilidade pra extrair coisas do que se observa. Sempre que defino um tema ou tenho algum insight que gera uma frase que funciona como ponto de partida pra um texto, a primeira coisa que busco são situações ou ambientes que possam, de alguma forma, dialogar com aquele ponto de partida mental. Sejam pessoas com cachorros em shoppings ou gente na ciclovia, qualquer situação corriqueira pode ser o estopim pra uma reflexão ligeiramente mais aprofundada sobre alguma questão - ou azedância profunda - da vida.

Vivemos tão embrenhados no desgaste constante do cotidiano que acabamos perdendo essa tal sensibilidade pras coisas pequenas. E quando digo pequenas não tenho a intenção de colocá-las como desimportantes, mas de constatar que às vezes se tornam tão corriqueiras ou periféricas à nossa rotina que as deixamos escapar do nosso horizonte.

Apesar dos pesares - e de ser reconhecidamente rabugento, ainda que não seja coisa pra se orgulhar - sigo me encantando com essas coisinhas à toa que o mundo põe no meu caminho, e prometo seguir as observando e contando como eu vivi e tudo que aconteceu comigo. Que 2024 nos permita mais tempo pra ver as voltas que o mundo não dá.

 


sábado, 14 de outubro de 2023

Fenomenologia da Estupidez





Queria ter uma forma de explicar de forma definitiva o que acontece com as pessoas, ao passo que também me sinto profundamente levado a ignorar completamente a condição humana. Eis minha dialética on demand.

Por toda a vida fui educado num ambiente coletivo. Antes de qualquer coisa, o todo. Contudo, e é importante frisar, isso não significa que existisse - ou exista - qualquer forma de supressão do individual. A ideia sempre foi de que toda opinião fosse ouvida e respeitada, buscando equilíbrio entre as partes. Isso permitiu que eu criasse algum senso de que minha visão do mundo é tão relevante quanto o bem coletivo permite. Por mais estranho que pareça, não é a tônica que conduz a visão da sociedade. Curioso.

Existe um volume considerável de situações que poderia citar pra exemplificar meu ponto, mas tenho uma teoria razoavelmente bem construída ao longo dos últimos anos que simboliza de forma contundente a miséria da condição humana, e se apoia em um fenômeno específico: cachorros no shopping.

SIM, VOU ABRIR ESSA CAIXINHA. O risco é grande, mas de quê vale a vida sem um pouco de perigo? Caso esse seja um tópico que lhe é sensível, paciência, mas precisamos falar sobre uma das expressões mais características do lugar em que se encontra a Humanidade nesse período tão estranho da História. 

Antes de enfiar o pé na lama, reitero: não tenho nada contra cachorros, muito pelo contrário, gosto muito deles. Agora veja só: você descende de grandes predadores, animais inteligentes, organizados, altivos, e tudo que lhe é permitido é ficar confinado numa apartamento decorado igual uma loja tosca de quinquilharias, comendo ração sintética de alguma fruta da moda com peixe de cativeiro, isolado de tudo que te faz um animal. 

Aí quando você tem a oportunidade de sair dessa prisão de insegurança, tudo que lhe é permitido é ficar enfiado em uma bolsa quente de couro sintético mequetrefe ou num carrinho fedorento, rodando sem rumo dentro de um prédio atolado de estímulos intensos demais pros seus sentidos apurados, que muitas gerações antes foram usados pra caçar e sobreviver em ambientes hostis. 

Seus antepassados infelizmente não tinham como prever que o futuro te daria a ilusão do conforto, mas traria muito mais hostilidade. Acho que não preciso ir muito além disso pra me fazer entender, certo? Agora passemos ao fator humano. Observamos nos últimos anos a escalada da disseminação do pensamento neoliberal, que impulsiona de forma irrestrita o pensamento de que todo seu sucesso, fracasso e qualquer outra coisa dependem única e exclusivamente de você mesmo, independente do âmbito da sua vida.

Pra que isso funcione, no entanto, é necessário que se criem artifícios pra que faça sentido achar que só você importa. Eis onde entram os cachorros. Ouvimos constantemente pessoas dizendo “ai, cachorro é muito melhor do que gente”, “se eu chego na festa e tem cachorro eu nem falo com ninguém” e todo tipo de bobajada infantilizada - no sentido de que as crianças ainda não desenvolveram totalmente a capacidade de articular seu “eu” com o mundo, e por isso têm tendência a comportamentos individualistas - que se pode imaginar. Para mais, vide Vygotsky.

O que amarra todas essas questões dentro da minha teoria, que será formalmente batizada mais pra frente, é o fato de que se relacionar com os outros é difícil, mas convenhamos que fica muito mais difícil quando todo mundo acha que seus gostos e prazeres são muito mais importantes que os do outro, resultando num coletivo de pessoas completamente absorvidas em si mesmas. Aí entram os cachorros.

O animal - por questões óbvias - não vai dizer que não gosta tanto assim das músicas que você ouve, não vai afirmar que preferiria ir em outro restaurante, não vai te falar que seu sapato não combina com a sua camisa e definitivamente não irá reclamar de ser arrastado dentro de um shopping sem absolutamente nenhum objetivo. Com pouquíssimas variações comportamentais, ele provavelmente vai abanar o rabo, botar a língua pra fora e latir gentilmente pra qualquer atrocidade que você ousar vocalizar. Quem preferiria ser constantemente questionado no lugar de ser recebido todos os dias com pulinhos, lambidas e todo tipo de fofuras que só seu doguinho pode proporcionar?

As pessoas transferiram intensamente seus afetos para qualquer coisa que não possa apontar a completa falta de bom senso delas, e os animais, coitados, foram as vítimas da incapacidade que se formou de não se conseguir mais construir relações com outras pessoas e lidar com a frustração de não se saber como mediar suas próprias expectativas frente às dos outros.

Postulo então minha teoria comportamental organizada, resumida em poucas palavras: dada a incapacidade humana de se relacionar de forma saudável com outras pessoas, em função dos efeitos da acentuação da lógica neoliberal, os afetos foram transferidos aos animais, e toda uma cadeia de incoerências se construiu ao redor disso. Não sei se estou plenamente satisfeito com essa formulação, mas me permito retornar à ela quando achar necessário. Sendo sincero, a cabeça dói um pouco quando paro pra pensar nisso com um pouco mais de atenção. Seguirei sem explicar nada de forma definitiva.

Espero que no futuro essas coisas estejam registradas nos livros de história, e que as professoras e professores, ao falarem do início do século 21, digam aos seus alunos “temos aqui a expressão máxima da tosqueira que era o mundo no início dos anos 2000, num movimento que o escritor André Rodrigues descreveu como ‘Fenomenologia da Estupidez’. Que não repitamos esses erros”.

Infelizmente acho que, assim como ainda somos capazes de reproduzir grandes erros do passado, nossos trinetos provavelmente ainda terão de testemunhar muita baboseira. Se você está lendo isso no futuro, sinto muito. Se está aqui em 2023 - ou adjacências - tenha um pouco de decência. Fico por aqui. Obrigado.

sexta-feira, 6 de outubro de 2023

O Fluxo do Rio

 



Apesar de mais da metade da minha vida ter sido no Jardim Casqueiro, a sensação de algum dia ter pertencido ao bairro já não é tão clara. Não que eu sinta que nunca fiz parte dele ou algo do gênero, mas acredito que sempre pertenci mais às pessoas do que ao solo. Ao longo dos anos voltei lá cada vez menos, e hoje andar por aquelas ruas é como adentrar um retrato distorcido de memórias que também já se degradam.

Vivia ali como uma criança do interior. As ruas sempre foram tranquilas, espaçosas, e mesmo com o aumento da população e o avanço do bairro sobre o mangue, tudo continuou quase intacto, preservado pelo mesmo verniz que permeia os locais onde o passado importa tanto quanto o presente. Desde muito cedo andava sozinho, fosse a pé ou de bicicleta, e apesar do meu círculo íntimo ser composto quase que exclusivamente por pessoas da família, muitos rostos conhecidos observavam os caminhos por onde eu passava.

Das memórias mais sólidas de crescer caiçara - lembrando que quem habita o mangue o é tanto quanto quem vive na beira do mar - se sobressaem as de dias em que saíamos eu, meu pai e minha prima de bicicleta pra andar na margem do rio, debaixo da ponte que liga Cubatão à São Vicente, procurando e catando caranguejinhos. Ainda que guarde essa lembrança com carinho, não era a parte mais divertida, especialmente em dias de calor, já que o mangue não é gentil neles. O que a gente mais esperava, na verdade, era pra tomar Tubaína numa marina próxima. Ali, o gosto do refrigerante era diferente, talvez temperado pela maresia. Nunca mais encontrei nada parecido.

Olhando em retrospecto, no entanto, consigo enxergar muitas coisas que me fugiam naquele momento. Desde novo já achava curioso e incômodo como viver à beira de um limite físico significava também viver correndo pela beira da sociedade. O próprio bairro surgiu e cresceu sobre o mangue, e ao seu redor as pessoas ocuparam as margens da rodovia, dos trilhos do trem, e quando não viram mais pra onde ir, avançaram em palafitas sobre o rio. Aí então a aspereza do mangue se faz presente, e não tenho dúvida que pra quem é empurrado em direção à lama o gosto das coisas não guarda afetos tão doces.

A brutalidade da situação é que tanto a rodovia quanto os rios, os trilhos e as pessoas que moram entre ambos seguiam indiferentes àquilo tudo. E seguem. Indiferentes não no sentido de acreditarem que não haja ou não houvesse outra opção, mas a quem tem negado o direito à cidade muitas vezes resta a resignação. Ainda assim, não gosto de pensar que ela é a anestesia dos impotentes porque não acredito que sejamos impotentes. Defendendo as coisas que defendo, na verdade, acredito que sejamos a única força de alteração material da realidade.

Não é necessário muito pra perceber que eu não tive que lidar diretamente com as mazelas que circundam o bairro, mas ali da beira do rio cresci em posição de observador costumeiro de boa parte delas, o que permitiu que eu lembrasse sempre de não fechar os olhos pro sofrimento alheio.

Acabo de ver um trecho de uma entrevista de 2022 com Ailton Krenak, resgatada em virtude de sua eleição como novo Imortal da Academia Brasileira de Letras. Nela, às margens do Rio Doce, Krenak fala que vê a água como uma entidade, não como um recurso. Mesmo com meu já conhecido ceticismo, vejo sentido nisso, e sinto que de alguma forma o rio-braço-de-mar que morosamente dita o formato das paisagens ao seu redor faz o mesmo com as pessoas.

Chico Science, com sua Nação Zumbi, traduziu muito bem o sentimento de quem vêm do mangue, e não é necessário muito pra perceber que o do Beat e o da Baixada não são tão diferentes assim. Mas ainda que tenha cantado o caos, Chico também fazia questão de lembrar que na lama também há vida. Nos últimos meses, indo pra São Paulo com certa frequência, tenho visto cada vez mais guarás vermelhos sobrevoando o mangue, coisa que por anos não aconteceu. Se isso corrobora ou não a tese, ao menos é um sinal de que se mantém a esperança de que a vida encontra um jeito de prosperar.

Tenho orgulho de onde eu vim, e talvez tenha escrito esse texto pra não esquecer de carregar o mangue, o rio e o voo dos guarás comigo. Como disse no começo, depois de tanto tempo longe do Jardim Casqueiro, já não é tão clara a sensação de pertencimento, mas se fecho os olhos ainda consigo ver com clareza todo o caminho de casa até a Beira-Mar. E ali, exatamente como no dia em que eu fui embora, o rio segue moldando a vida.

 

domingo, 10 de setembro de 2023

O Som das Araucárias

 




Viver por quase 10 anos na Serra da Mantiqueira me permitiu vivenciar um monte de coisas, e elas nem sempre foram fáceis de lidar. Quase nunca, pra falar a verdade. Estar num ambiente que não raramente beira o etéreo, sozinho e longe de muita coisa que o mundo teima em afirmar que é essencial te coloca em contato com coisas de si que o ruído da cidade insiste em sobrepor, especialmente quando se é jovem e isso é tudo que você conheceu.

A primeira vez que saí de Campos do Jordão disse pra mim mesmo que nunca mais voltaria pra lá. Palavras duras pra alguém de 19 anos. 6 meses depois, numa sala de aula, embalado por reencontros e rostos novos que mudariam consideravelmente as coisas, estava eu de novo no “ponto de não-retorno”. Têm muita coisa que a gente só consegue entender através dos olhos do tempo.

Depois de tantas idas e vindas, comecei a me sentir parte daquele ambiente. Não digo necessariamente da cidade, até porque cresci em uma região turística e bom, assim como qualquer cidade que se sustente da mesma forma, Campos é um grande teatro. O lugar, mesmo, não a atividade. O espetáculo no palco é sempre encantador, mas o que acontece na coxia raramente é notado, ainda que seja o que permite a coisa toda acontecer.

Óbvio, me identifico com as pessoas por trás das cortinas, adiantando a vida de quem só tá passando pra aproveitar o show - o que não é nenhum pecado, salvo em certas exceções - mas o que realmente criou esse senso de pertencimento foi como o som da natureza silencia tudo ao redor. Isso não acontece da noite pro dia, é preciso tempo pra ouvi-lo com clareza, e no fim é como se ele sempre estivesse ali.

Lembro das madrugadas em que a ansiedade era mais convincente que o cansaço. Saía pra caminhar 2h, às vezes 3h da manhã, e não via nada além de árvores, postes e prédios. No começo a incerteza da noite que habita em quem cresce nos arredores dos grandes centros urbanos toma conta dos sentidos, e qualquer ruído soa como um alerta. Passam uma, duas, cinco caminhadas, e em cada uma o alerta diminui. O silêncio, como tudo com que você convive rotineiramente, cresce. Um dia, enfim, sem nem perceber, ele tá lá. Só o vento correndo entre as araucárias importa.

Apesar dos pesares, sinto falta da Mantiqueira, e gosto de pensar que ela também sente falta de mim. Nunca mais encontrei essa paz - pelo menos não na mesma intensidade - salvo nas raríssimas vezes em que estive em praias longe da construída civilidade urbana. O mar também tem esse dom de silenciar tudo ao redor. Quem dera não tivesse areia no caminho até ele.

Não vou mentir, só entendi esse sentimento muito recentemente. Como falei no início, demorei pra estar em paz com muita coisa que correu, e só o tempo permitiu encontrar as perspectivas necessárias pra entender algumas delas. Mas acho que isso é normal, e talvez seja uma das grandes provações da vida, sermos capazes de ter a paciência necessária pra chegar no momento de colocar todos esses eventos nos seus devidos lugares.

Enquanto trânsito pelos caminhos que a vida me apresentou nos últimos tempos - que não vou mentir, têm sido intensos - sigo observando os arredores, buscando outras formas que o mundo tem de silenciar a mente enquanto não posso ouvir de novo o som das araucárias. Será que encontrar esse som é o que nos faz criar algum senso de pertencimento? Duvido que seja só isso. Enfim, quem sabe um dia eu volto pra Mantiqueira pra descobrir.

terça-feira, 11 de julho de 2023

Essa Louca Estrada da Vida




O que determina os lugares onde a gente vai chegar? Em tese temos a possibilidade de escolher nossos caminhos, mas quando eles terminam - provavelmente em uma encruzilhada com mais caminhos ainda - a gente já nem lembra direito qual era o ponto de partida. Isso significa que nos desviamos? Que a rota era mais sinuosa ou confusa do que esperávamos? Ou será que o caminho simplesmente é, e tentar encontrar um sentido nele, planejando a rota minuciosamente, é só uma grande perda de tempo?

Como se poderia esperar desse chato que vos escreve, sempre procurando pelo em ovo, acredito que nenhuma dessas alternativas. Nem acho que a vida se disporia assim a ser tão simples. Na real, na observância das coisas que desfrutam dela, acredito que a vida faz questão de pensar “eu vou complicar, sim! Você que se vire”.

Não sou desses que pensa que um caminho fácil demais é chato ou ruim, porque “não forma caráter”. Papinho furado. O que não forma caráter é geração após geração não tentar reverter os erros do passado e continuar propagando a mesma ladainha de quem veio antes, como se soubessem o que estavam fazendo. Vou contar um segredo: ninguém sabe. A vida fácil é boa sim. Não ter que passar perrengue devia ser o mínimo, assim como poder desfrutar de coisas que são o mínimo pra se ter alguma qualidade de vida.

Faço essas reflexões pensando na minha própria trajetória. Houve um tempo em que não havia dúvida, era a gastronomia e pronto. E o tempo - sempre ele - passou, fui caindo de um lado pro outro, estudando, trabalhando, estudando mais um pouco, e 15 anos depois de dizer pela primeira vez que queria me tornar um cozinheiro, não tenho mais um pingo de vontade de pisar novamente numa cozinha, não esquecendo, claro, que isso só é possível graças ao fato de eu poder desfrutar de uma coisa que, como eu disse anteriormente, é algo que deveria ser o mínimo, mas que numa sociedade desigual, se torna um privilégio: escolha.

Eu tentei, não deu certo, e agora posso tentar de novo, numa outra coisa, e nunca esqueço que meus pais - sempre eles - me proporcionaram e continuam proporcionando o privilégio da escolha. Se alguém me dissesse uns 4 anos atrás que eu entraria num curso da área de tecnologia, gostaria da ideia e no meio dele acabaria, por conta de uma disciplina específica, descobrindo uma paixão real pela escrita, não sei se duvidaria, mas com certeza me ocorreria algo como “tá maluco? Depois desse tempo todo inventar moda”? E bom, cá estou escrevendo esse relato.

Falei no texto anterior - Amizades São os Amigos que Fazemos Pelo Caminho - sobre a raridade cada vez mais frequente de poder ter encontros pessoais com amigos que vivem longe, e faço questão de reiterar meu ponto previamente explicitado. Não ponho peso nenhum nessa distância pois, criando a ponte entre este e aquele escrito, essa é a rota que a vida vai desenhando pra cada um, e as amizades - ao menos aquelas que se fazem duradouras - vão dando um jeito de cruzar seus caminhos, e mesmo quando não é possível, seguimos em paralelo, torcendo de longe uns pelos outros.

No fim das contas, a grande sacada é tentar fazer as pazes com o fato de que sim, a vida é absolutamente imprevisível. Isso não nos tira a possibilidade de escolher as coisas, obviamente, nem de fazer planejamentos. E pode ser que a vida corra exatamente como você desenhou, sem nenhum grande desvio. Mas deixo minha recomendação: desenha seu mapa com lápis, num papel bem grande. Pode ser que você precise refazer algumas partes durante a caminhada.

terça-feira, 4 de julho de 2023

Amizades São os Amigos que Fazemos Pelo Caminho

 



Não sou muito afeito a metáforas e analogias. Talvez porque na minha cabeça as coisas sejam claras e objetivas demais, como na manhã do meu aniversário, em que acordei, tomei um café e passei roupa. Absolutamente nada fora do ordinário. Simples e direto. É meio engraçado esse costume de só celebrar o envelhecer em dias específicos, como se não fossem corriqueiros ou como se a rotina não se aninhasse neles, também.

Particularmente gosto mais da ideia de que cada dia é uma celebração, exatamente por achar que também é festivo o ordinário. Minha família sempre se proporcionou o privilégio desse festejo continuo, diluído nos encontros mais corriqueiros, sempre tomados de aconchego. Gostaria de reiterar que essa diluição não é no sentido de dissolução, mas de capilaridade, de se espalhar e ocupar os espaços lentamente, tomando a dimensão que se permite e necessita, como o rio que ao longo das eras vai abrindo seus caminhos entre vales, montanhas, planícies e planaltos, transformando a paisagem e os afetos que se banham nele. E eu dizendo que não gosto de metáforas.

Com meus amigos não foi diferente, ainda que, sob muitos aspectos, seja. Ao longo dos anos, entre encontros e desencontros, distâncias continentais e rotinas que cobraram preços muitas vezes excessivos, ainda assim conseguimos criar uma ligação que, se eu acreditasse nessas coisas, diria que vem de outras vidas. Mesmo atravessados pela separação física, nunca deixamos de nos fazer presentes um na vida do outro e, na medida do possível, continuamos fazendo.

É um tipo de amizade que abraça essa capilaridade na forma de danças bem ensaiadas, coreografadas por anos, no ritmo que tiver que ser e que a ocasião requisitar. Os envolvidos vão, aos poucos, entrando no tempo um do outro, entendendo o momento das entradas de forma quase etérea, telepática. Amizade é arte performática, ainda que não seja - ou não devesse ser - sobre performance.

Dizem que amigos são a família que a gente escolhe, mas não acho que seja tão simples assim. Em diversos períodos da minha vida estabeleci conexões e afetos com uma diversidade enorme de pessoas - apesar da minha reconhecida e quase mitológica timidez - e acredito que em maior ou menor medida consegui deixar marcas positivas na vida dessas pessoas assim como elas deixaram na minha (se você é uma dessas pessoas, me conta o porquê).

Contudo, e isso talvez seja até meio óbvio, porque acontece com todos nós, muitas dessas pessoas seguiram seus rumos totalmente indiferentes ao meu e vice-versa. Não ponho nenhum peso nisso nem aponto dedos. A vida é essa, e fazer as pazes com esse processo nos ajuda a entender melhor os laços que ficam. Esses, por sua vez, tomam uma dimensão totalmente diferente, e por isso eu digo que não é tão simples quanto escolher. As amizades sólidas se estabelecem meio sem querer, quase que por acaso, e em algum lugar do seu âmago você sabe que quer estar junto daquelas pessoas, simplesmente porque sim.

As duas últimas semanas da minha vida foram tomadas desse sentimento. Junho tem uma confluência gigantesca de aniversários de pessoas que eu amo, e felizmente a maior parte delas habita as redondezas. Pras que estão longe, é como eu disse anteriormente, tentamos nos fazer presentes da forma que for possível, e esse ano foi especialmente especial - com essa redundância, mesmo, que ainda é pouca - porque pudemos passar um período considerável na presença física uns dos outros, coisa cada vez mais rara em razão das caminhanças da vida. E tá tudo certo.

É provável que essa seja a grande razão dessas relações continuarem tão sólidas, mesmo depois de mais de uma década. Não importa tempo ou distância, continuamos caminhando em paralelo, nos celebrando sempre que possível, simplesmente porque sim. Não tem cobrança, imposição, questionamento. Ou melhor, quase nunca, né. É bom deixar um espacinho pra chatice moderada. Afinal de contas, isso também entra nessa soma. Amizades sólidas abraçam os defeitos tanto quanto as virtudes, e só se estabelecem porque aceitar o outro, em sua plenitude, ainda que seja difícil, também fortalece os laços.

Escrevendo esse texto me pego abstraindo sobre o que o André do passado pensaria ou escreveria sobre esse assunto. No fim das contas, acho que ele, assim como eu, diria pra eu parar de perder tempo com esse tipo coisa, porque não importa. Não que não tenha nenhuma relevância, mas concordamos que mais importante do que isso é o momento presente e o que vem pela frente, que só faz sentido porque temos esse monte de gente pra amar e aguentar nossas chatices e reclamações sobre por que diabos as pessoas não andam do lado certo da calçada - ou qualquer umas dessas coisas que me tira do sério sem nenhum motivo concreto.

Enfim, acho que chega de sentimentalismo. Volto na próxima.

 

 

 

 

(Amo vocês)

 

quinta-feira, 15 de junho de 2023

A Memória É Dicionário de Nós Mesmos

 



Não sei qual é minha lembrança mais antiga. Na profusão de imagens que vêm à minha mente, nenhuma reside em um ponto concreto do passado, mas ainda assim a clareza é estarrecedora. Um pouco porque as fotografias que decoram as paredes de casa carregam os fragmentos dessa clareza, e passar por elas diariamente impede que as imagens se desfaçam na minha mente.

Outro tanto porque felizmente fui criado em um ambiente em que se ensina que o passado não é só uma foto envidraçada num porta-retrato empoeirado. A memória, tal qual um dicionário de nós mesmos, serve pra ser consultado sempre que o significado das coisas não parecer mais tão claro.

Os filmes que a memória projeta pra mim são curtos, mas todos carregados de significado. Uma moto de pedal preta, vermelha e amarela cruzando o quintal ainda sem azulejos, eu e minha prima-irmã derretendo os ovos de Páscoa na luz do Sol, com medo de usar o micro-ondas e causar um acidente, olhar minha mãe por detrás do balcão mexendo a cobertura do bolo de cenoura e andar na beira do rio com o meu pai, procurando e catando caranguejinhos, pra depois soltá-los e ir beber Tubaína numa náutica próxima.

Essas memórias, ainda que provavelmente sejam as mais antigas, tem uma nitidez estarrecedora. O que será que determina quais lembranças vão se instalar de forma mais sólida? Não sei se tem uma razão. Mas aqui reforço uma questão que sempre coloco na mesa: não acredito que deva haver uma razão específica. Algumas coisas são como são, e a gente acaba direcionando energia demais tentando abstrair sobre questões que fogem da capacidade humana de entendê-las plenamente. Talvez algum dia isso mude, mas é isso que temos pra hoje, melhor nos acostumarmos.

Além do mais, nem toda memória é positiva. A vida também é carregada de imagens do luto, da perda, dos erros cometidos, das desculpas não dadas e dos amores não demonstrados. Às vezes é meio barra-pesada estar vivo. E tudo bem não estar em paz com as recordações. A gente vive numa sociedade tão impregnada de uma falsa ideia de felicidade constante que esquecemos que, sendo humanos, os sentimentos negativos também são perfeitamente naturais e a gente precisa conviver com eles. A sujeira empurrada pra debaixo do tapete continua lá, se acumulando, atacando sua rinite e criando um calombo pra você tropeçar.

Acredito que a memória seja muito mais sobre gerenciar a falta de paz que ela eventualmente nos proporciona do que se apegar à alguma dimensão dela e acreditar que as coisas são exatamente como a gente acha que se lembra. Se você perguntar pra alguém sobre um momento que viveram juntos, é provável que os eventos sejam narrados de forma completamente diferente do que eram na sua cabeça. Recordar é muito mais sobre sensações e sentimentos do que sobre concretude, e é natural que cada um sinta os momentos de forma única.

No fim das contas, acho que o ponto não seja exatamente ficar em paz com as lembranças, mas entender como gerenciar a falta dela. As coisas ruins deveriam nos ensinar tanto quanto as boas, e talvez elas também precisem estar emolduradas e penduradas nas paredes da nossa mente, como placas que nos direcionam pra sala onde bate a luz do Sol, cheia de retratos dos dias mais leves.

Entre carregar os fardos mais pesados e as alegrias mais raras, a memória vai se escrevendo pra nos permitir entender e abraçar o agora, sem abrir mão de estarmos preparados pro que vem pela frente, afinal, agora pode até ser noite, mas o dia sempre chega. É melhor estar pronto pra luz não te cegar.

 

quarta-feira, 7 de junho de 2023

Histórias que Me Contam ou Como Aprendi a Ler o Mundo

 



Assisti um bom filme, recentemente. Não é nem de longe um filme grandioso. Mas é bom. Muito bom. O nome original é “The Tender Bar”, e veio pra cá como “Bar, Doce Lar”. Amo traduções brasileiras. Enfim, o filme. O enredo é baseado na história real do escritor J.R. Moehringer. Você provavelmente nunca ouviu falar dele, e tudo certo, isso não é uma questão, aqui, muito menos o ponto desse texto.

Aí te pergunto, quem é esse cara? E pode deixar, eu mesmo respondo. Em resumo, Moehringer ganhou um Pulitzer escrevendo artigos pra jornais, trabalhou como escritor-fantasma da biografia de algumas “celebridades” e lançou dois livros próprios, um romance e sua autobiografia, The Tender Bar.

É, eu sei o que você tá pensando, “e por quê diabos esse cara é interessante”? Também não fiquei tão interessado assim em explorar as facetas dessa figura nada emblemática, mas o filme, esse sim me pegou.


A estrutura da história é razoavelmente simples, e mostra a vida do autor desde o dia em que ele se muda pra casa dos avós junto da mãe, passando por diversos momentos relevantes de sua vida, a ida pra faculdade, primeiro grande amor, primeiro emprego escrevendo. Mas a estrutura não é o importante, aqui, e talvez nem o próprio Moehringer, apesar de ser o personagem central, seja.

O que faz esse filme não ser nada ordinário é a construção das relações. A ligação com a mãe, quase simbiótica, com um nível de compreensão que beira o telepático entre os dois. O tio, que é a voz da cabeça e abriu pra ele a porta que dava no mundo, é o grande incentivador da leitura que o instigou a se tornar escritor.

Cada relação com os familiares, amigos e pessoas aleatórias que passaram pelas cenas da vida dele é carregada de sentido e preenche a narrativa de sutilezas que abraçam quem assiste. Não quero falar demais da narrativa pra não estragar a boa surpresa que ele pode ser. De repente é possível que essa história não fale com você como falou comigo, e tá tudo certo. Não é nenhum crime não gostar de um filme, independente do status que ele recebe. Têm pra todo mundo. Agora me deixa falar do porquê ele me pegou tanto.


Tenho refletido muito sobre a minha relação com essas duas artes, literatura e cinema. Minhas memórias mais antigas são profundamente atreladas às duas. Houve um tempo que eu diria sem pensar duas vezes que essas lembranças eram sobre comida, e não tenho dúvida sobre o quanto soaria clichê um cozinheiro dizer isso, mas quando paro pra pensar no assunto com calma, uma enxurrada de páginas e cenas me passam na cabeça. Comida, talvez, esteja em segundo lugar, porque as duas definitivamente empatam no topo desse pódio.

Primeiro a leitura. Meus pais sempre leram muito pra mim, antes mesmo de eu sequer entender qualquer coisa. Meus primeiros livros não tinham palavras, e nem precisavam. Antes de me ensinarem a lê-las, os dois já me ensinavam a ler o mundo. E desde muito cedo, quando comecei a ensaiar os primeiros passos na compreensão das palavras, li sem parar. Às vezes mais, às vezes menos, mas é uma coisa que simplesmente não para.

Não tenho dúvida de que isso serviu de estopim pra querer criar meus próprios escritos, e talvez essa seja a parte que mais intriga na literatura, de qualquer gênero que seja: como alguém cria uma coisa “do zero”? O que passava na cabeça de Dante enquanto escrevia “A Divina Comédia”? Por quê será que Kafka transformou Gregor Samsa em um inseto e não em outro animal? Quantos cortiços Aluísio Azevedo visitou antes de imaginar o seu?

Acho que escrever é minha própria maneira de tentar responder essa pergunta. Não sei se vai haver resposta, mas seguirei tentando. Quem sabe o processo não é a resolução desse enigma? Sinceramente, espero nunca descobrir.


Pulando de uma arte pra outra, falemos do cinema. As primeiras lembranças que tenho dele são de assistir Mulan, Tarzan e O Homem Bicentenário – um grande filme que eu só fui entender mais de uma década depois. Se já tinha ido antes, não saberia dizer, mas tenho alguma clareza das imagens e sensações de estar naquele lugar. Me encantava aquela coisa de estar totalmente imerso no filme, e ainda me encanta do mesmo jeito.

Meu fascínio com o cinema é o mesmo da literatura, e acho que por isso essas memórias se enlaçam tanto. Do filme mais refinado, cheio de complexas sutilezas, explorando e discutindo os mínimos detalhes da vida até a tranqueira mais ridícula que alguém teria a coragem de gravar, todos me interessam.

Foi o que deu vida ao Cinemasso – em hiato momentâneo, eu espero – e continua abastecendo minha paixão pelas histórias. Quero saber os porquês, e talvez os diretores, assim como eu escrevo textos, produzam seus filmes tentando encontrar suas próprias respostas.


Essa questão, talvez, revele o grande esquema das coisas, aqui. Gosto de histórias. Reais, irreais, até surreais, todas me interessam. Das pessoas, das coisas, do tempo, do nada, pra todo canto que eu olho tento imaginar as narrativas que regem tudo ao alcance dos meus olhos ou dessa carne eletrificada que, aparentemente, filtra e conta todas pra mim. Que privilégio é ter um cérebro.

Há não muito tempo escrevi sobre propósito, e não sei se isso se enquadra nesse ponto, exatamente, mas se tem uma coisa pra qual eu pretendo viver é poder testemunhar quantas histórias forem possíveis, afinal, acho que é assim que vou construindo a minha. Enquanto isso também vou criando outras, tentando dar meu próprio charme e elegância pra essa bizarrice incessante que alguns ousam chamar de realidade.

quarta-feira, 31 de maio de 2023

Cardápios Moderninhos e o Golpe da Experiência

 



Quando adentrei pela primeira vez nas masmorras escuras e esquecidas pelo tempo vulgarmente conhecidas como gastronomia, nos idos de 2012, de cara me deparei com um movimento tosco e triste que ainda engatinhava: a "experiência gastronômica". Meu Deus. Na época, mesmo que ainda deslumbrado com o mundo de maravilhosas possibilidades que se apresentavam, olhei com certo receio pro que se anunciava como “a próxima grande tendência” do ramo.

Apesar disso, dei um voto de confiança pra ideia, esperançoso de que as pessoas teriam o bom senso de usar aquilo pra criar coisas realmente relevantes pra Gastronomia. Ledo engano. O que surgiu foi uma quimera louca de tudo mais cafona, infantil e puxa-saquista que se poderia criar.

Não que eu ache errado querer fazer algo que tenha por objetivo principal proporcionar momentos agradáveis pro comensal, mas no lugar disso o que se viu foi uma enxurrada de genericidades tristes, nadando de braçada em falsidade, mal feitas e que misturavam todos os piores elementos que a gastronomia poderia produzir.


Tudo isso, claro, enquanto gente escrota ria – e continua rindo – da cara das pessoas, se valendo da falta de critério e repertório da clientela pra ganhar dinheiro fácil, fruto de um país que, ainda que tenha muita gente boa fazendo boa comida de forma consciente, luta constantemente pra se livrar da rendição à lucratividade sobre qualidade e decência humana no geral. Aqui podemos incluir, naturalmente, as condições de trabalho deploráveis às quais trabalhadores do setor se veem submetidos, e basta que se converse por alguns minutos com qualquer um que já esteve empregado em A & B pra corroborar minha tese.

Um dos piores sintomas que essa patifaria proporcionou é, sem sombra de dúvida, o cardápio moderninho. Eu disse que ia falar deles. Assumindo todo tipo de forma e tamanho, esse totem de cafonice é a ferramenta suprema da gourmetização pueril da sociedade, reflexo de um movimento de infantilização geral que, sem meias palavras, é estarrecedor.

Todo item de menu tem que ter uma historinha engraçadinha, um papinho furado de como o restaurante é seu amiguinho legal e descolado, pra te dar a ideia de que você está prestes a comer algo incrível – mas que, muito provavelmente, só vai reforçar todos os seus paradigmas. Superada a tarefa de conseguir escolher alguma coisa naquela profusão insana de informação despropositada, vem a segunda prova desse biatlo alimentar - e você só queria comer alguma coisa.


Mesmo que você meio que saiba o que esperar, já que você ESCOLHEU a sua comida, é quase uma regra universal que rege a experiência gastronômica: se o cardápio fala demais, a comida entrega de menos. E não raramente por um preço excessivamente alto.

Não digo isso nem no sentido de quantidade, porque se você vai num lugar que cobra um preço elevado, mas come algo que pega seus sentidos de jeito, fica tudo certo. O problema é quando te entregam uma massaroca medíocre numa apresentação de gosto questionável e falam que é "a visão do chef" ou qualquer palhaçada do gênero. Se sentir otário com comida é uma das piores sensações que existe na vida.

A parte ruim de entender certas coisas é que você precisa constantemente se controlar pra não ficar sobreanalisando tudo o tempo todo. A parte boa, pelo menos, é saber que você tá sendo enganado.


Uso como exemplo recorrente a padaria perto da faculdade, um lugar que eu respeito muito. Esse respeito vem pela constância e coerência do serviço e da comida: é sempre ruim. Mas não tem palestra, papinho furado ou enganação, aquele lugar é o que é e se dá por satisfeito.

Não tem “a gente só trabalha com orgânicos” enquanto funcionário só recebe ultraprocessado pras refeições, “nossos vinhos são biodinâmicos” cheio de processo por assédio moral e “eu sou amigo do pescador”, mas sou contra ele ter direitos trabalhistas.

Espero ansioso pelo dia em que os cardápios-livro-infantil acabem e as pessoas cansem da “experiência gastronômica”. É muito papo pra pouco produto – e ainda menos respeito pelo processo todo.

Até lá, sigo reclamando. Consta que um pouquinho de tensão ajuda a manter o coração forte.

sábado, 20 de maio de 2023

As Vicissitudes do Propósito

 



Aconteceram coincidências curiosas na última semana. Atolado em um bloqueio criativo violentíssimo, passei os últimos 10 ou 12 dias sem fazer ideia sobre o que escrever. Os temas e as inspirações costumam aparecer com certa facilidade, mas nesse período nada parecia suficientemente interessante ou digno de nota (e tempo de elaboração).

Bloqueio criativo é um tema por si só, e ainda vou dar atenção pra essa coisinha desgraçada, mas não hoje. Voltemos às coincidências. Uns dias atrás, poucos minutos antes de sair de casa pra faculdade, recebo a seguinte mensagem: “você acha que cada um de nós tem um propósito? Tipo, que alguma força maior tenha dado uma missão pra cada ser humano?”.

Não vou dizer minha resposta agora. Acho que ela cabe no final da sequência de eventos que se sucederam, pra amarrar as pontas. E se você discordar disso, bom, escreve seu próprio texto aí, parça.

Enfim, primeira coincidência. No dia seguinte ao questionamento, pouco depois do almoço, vi o padre Júlio Lancellotti sendo entrevistado, junto com a jornalista global Sônia Bridi, pela Paola Carosella no seu programa novo. Em dado momento, Paola pergunta pra Sônia o que a move e ela responde que é sua esperança em um mundo mais justo, ou algo próximo disso, não lembro exatamente as palavras.

Padre Júlio, sempre lúcido, diz que acha a colocação dela perfeita, porque ter esperança em um mundo melhor é diferente de ter fé em um mundo melhor. Quando questionado, ele diz que a diferença entre fé e esperança é que, de certa forma, a fé é uma coisa estática, enquanto a esperança é quando você movimenta sua fé em direção a algo, relembrando o esperançar de Paulo Freire.

Em outro momento li pra uma aula os três primeiros capítulos do livro “A Sociedade do Cansaço”, do filósofo coreano radicado na Alemanha Byung Chul-Han, que trata em linhas gerais de como, na contemporaneidade, vivemos assolados pelas patologias neurais provocadas pela imposição da positividade constante, uma cobrança continua e excessiva de que as pessoas se mostrem sempre bem, felizes, em “forma”, ativas e produtivas, dando “propósito” a si mesmas através disso.

Qualquer pessoa com o mínimo de bom senso sabe que ninguém vive essa vida de verdade, e se vive, muito provavelmente é às custas da miséria alheia. Num golpe de curiosidade sobre o assunto, cometi a seguinte pesquisa: “as dimensões do propósito”. O que me apareceu foi uma coisa até que interessante, o conceito de ikigai, que traduzido de forma aproximada é algo como “razão de viver”.

O ikigai está ligado a encontrar as coisas que dão prazer e “sentido” pra sua vida e mover suas ações e pensamentos em direção a essas coisas, e foi criado em Okinawa, no Japão, região em que uma parcela considerável da população passa dos 100 anos. Muitos pesquisadores acreditam que a longevidade dos locais tem relação direta com viver sob a ótica do ikigai, o que parece bastante factível, ainda que particularmente considere as condições materiais no qual aquela população está inserida muito mais determinantes.

Bom, voltando ao ponto. Como quase tudo nesse mundo, o conceito de ikigai é mais uma coisa cooptada pela lógica neoliberal. Pra fora do conceito e sua história, me deparei com uma enxurrada de diagramas toscos que tentam mostrar que o ikigai deve passar por ser produtivo e pensar e fazer coisas que te dão dinheiro – quase aquelas merdas de “Os Segredos da Mente Milionária”.

O que sucede disso é uma montanha de cretinos vendendo livros e cursos sobre aplicar o ikigai para conquistar uma vida bem-sucedida e feliz, bem papinho de coach safado, sempre se amuletando na ideia de que isso é a solução mágica que vai te fazer ficar rico.

Ora ora, mas se não é exatamente sobre esse tipo de coisa que o sr. Chul-Han estava falando. Se alguém de fato encontra algum movimento pra própria existência nesse tipo de coisa, tudo certo. Meu problema é com o charlatanismo. Tirar dinheiro de gente que só tá perdida é muito baixo.

Essa sequência intensa de reflexões e conceitos ao redor da ideia de propósito me pegou de surpresa. Como eu disse no começo, não que eu não tenha uma concepção pessoal razoavelmente bem formulada e estabelecida sobre a questão, mas a coincidência foi tremenda. Curioso.

Aqui, enfim, insiro minha resposta. Parafraseando a mim mesmo, disse – mais ou menos – o seguinte: “a resposta curta é não. A menos curta é não, não acredito que a gente tenha um propósito determinado por algo maior, até porque não acredito em forças maiores regendo o Universo. Acho que a Existência é só fruto da sucessão aleatória de eventos ainda mais aleatórios, que aleatoriamente culminou na nossa presença aqui e agora. Contudo, é exatamente isso que é, de alguma forma, uma dádiva. Apesar de toda a loucura da entropia, estamos aqui, e isso dá significado pro existir. A gente devia aproveitar ao máximo o privilégio de existir, APESAR dessa completa aleatoriedade”.

O que eu quero dizer, na real, é que encontrar um sentido pra própria existência é uma coisa perturbadoramente difícil, simplesmente porque não dá pra ter certeza. Eu posso estar absolutamente incorreto, e talvez exista sim algo roteirizando as coisas, construindo o caminho pra que eu sirva pra alguma coisa específica. Vai saber.

Meu grande ponto é que não acho que pensar nisso faça sentido. Na maior parte do tempo isso só gera ansiedade, angústia e um certo senso de inadequação frente ao mundo, uma pressão de fora pra dentro de ter que saber qual o seu motivo de existir com o qual simplesmente não concordo. Não posso concordar.

Não existe uma regra. Algumas pessoas têm uma ideia muito clara do que querem, outras não. E tá tudo certo. A vida vai apresentando situações pra gente ao longo da existência que podem ou não servir de impulso pro encontro de algo que te movimente. Em muitos casos, nem escolha tem, é vai ou racha. E a vida meio que é assim, incerta.

Tenho alguma convicção de que a gente dá sentido e propósito pro existir. E cada um no seu tempo, dentro das suas possibilidades, vai moldando seu caminho. Escrever, militar, cozinhar pras pessoas que eu amo e compartilhar o que eu puder são algumas coisas que funcionam pra mim. Pode ser que algumas delas funcionem pra você também, vai saber. Mas não tem regra. Talvez tenha sentido, talvez não. Você só descobre se tentar.

terça-feira, 9 de maio de 2023

Manhã de Terça É Uma Viagem ou Esse É o Primeiro Dia do Resto da Sua Vida

 



Rita Lee não morreu. Não gosto dessas frases clichê de perfil de autoajuda do Instagram, mas tem uma que até que faz bastante sentido. Só morre de verdade quem é esquecido. E gente como Rita não se esquece.

Aproveito o ensejo pra prestar minhas homenagens também à Palmirinha, uma figura que, mesmo antes de eu entrar na Gastronomia, me chamava a atenção por conseguir falar de cozinhar com naturalidade e leveza, como se estivesse cozinhando do seu lado – coisa que quase ninguém consegue – e fazendo comida boa que a maioria dos chefs renega, enquanto vende comida mediana pra baixo a preços no mínimo questionáveis. Ela com certeza também não morre tão cedo.

Bom, voltemos à Rita. Hoje, logo após a notícia, um amigo mandou uma mensagem que me arrancou uma risada soltíssima no meio da consternação. “Devia ter comprado a biografia dela, já. Vai ficar mais cara, agora”. Sobre ela, duas observações. Primeiro, considerando todo o pouco que sei e vi de sra. Lee, acredito que também riria muito disso, falando algo como “tá vendo só? Demoraram pra comprar meu livro, agora os putos da editora vão meter a faca em vocês”!

Segundo, não me espantaria nem um pouco se a frase seguinte fosse “E é bom que vocês paguem mais caro, mesmo! Deu um trabalho do cacete pra escrever”. Rita é entropia pura. O que faz com que seja espantoso o que muitos veículos de mídia tradicionais – não que esperasse muito – tenham veiculado coisas como “Morre a Rainha do Rock” num tom reducionista ou, no caso mais tosco e tacanho até o momento, as chamadas da Folha querendo dar foco pra polêmicas, falar do uso de drogas com um ar profundamente moralista e outras baboseiras de gente que vive pra urubuzar a vida alheia.

O lance é que Rita é tudo isso aí, sim. Mas não só. E nunca só. Fez o que queria, como queria, e bateu de frente com as consequências porque tinha convicção das suas decisões. E isso se refletiu profundamente na sua produção artística.

Num insano transmimento de pensação, Danilo Nakamura, a. k. a. Sucrilhos, grande cronista dos pratos, dos copos e da vida – se não o conhece, recomendo que conheça – escreveu uma coisa que sempre me passou na cabeça: Rita tá no mesmo plano de David Bowie. O grande lance pros dois era um só, criar o que quisesse, no estilo que desse na telha, experimentar, inovar. Nenhum dos dois coube, cabe ou caberá na caixinha do estilo único. Eles são o estilo. E quem gostou, bate palma. Quem não gostou, paciência.

Nunca fui muito de ídolos, e acho que os artistas de que gosto também não concordariam muito com qualquer tipo de idolatria, mas agora, escrevendo esse texto, paro pra pensar que, coincidentemente, só a morte do Bowie me trouxe esse momento de consternação reflexiva, antes. Se isso não é pra ser celebrado e registrado, não sei o que poderia ser. Só espero estar fazendo uma homenagem que faça justiça a eles.

Como eu disse lá no começo, viver é ser lembrado. Quero que esse texto seja uma extensão indefinida pra vida dela, de David e tantas outras pessoas que vieram pra tirar o mundo do eixo, tendo a bondade de compartilhar com a gente o jeito de enxergar as coisas nesse ângulo novo.

  Rita escreveu um tweet, nos idos de 2013, que dizia “E eu lá sou mulher de fazer backup? Perdi tudo, foda-se eu”. Concordo com isso, até porque, convenhamos, quando alguém se grava de forma tão profunda na vida de um país, pra quê backup? Ela se basta, flutuando pelas memórias alheias, deixando um pouquinho de si em cada canto.

Rita vive.

terça-feira, 2 de maio de 2023

A Vida, O Universo e Só Mais Umas Coisinhas

 



Douglas Adams, o grande autor britânico de “O Guia do Mochileiro das Galáxias” e “Agência de Investigações Holísticas Dirk Gently”, diz em um texto presente em outro livro seu, uma coletânea de textos variados chamado “O Salmão da Dúvida” (inclusive recomendo fortemente): "[...] quero dizer ateu mesmo. Eu realmente não acredito que exista um deus – na verdade, estou convencido de que ele não existe. E há uma diferença enorme entre as duas coisas". Tenho minhas dúvidas sobre a exatidão das palavras, mas absoluta certeza de que era isso que ele queria dizer.

Boa parte das pessoas que me conhece e está lendo esse texto provavelmente sabe que eu sou ateu, mas não é de religião que eu quero falar. Nem tenho certeza se essa é uma caixa que eu gostaria de remexer em busca de assuntos pra escrever crônicas. Posso não ser dotado de espiritualidade, mas expresso sempre minha crença de que é muito bonita a fé.

Sinceramente, fiz essa introdução desnecessariamente longa nem sei por quê. Quero falar, na verdade, de crescer, envelhecer e seguir em frente. Abandonar os velhos signos e criar novos, novas memórias, novos afetos, desmontar e reconstruir o “eu”.


Recentemente, escrevendo um artigo de opinião pedido pra uma das aulas da faculdade, fiz a seguinte constatação, ao debater as colocações do sociólogo e dito entendedor de Cibercultura Pierre Lévy:

"A lista de exemplos que poderiam ser dados para colocar em questionamento a posição de Lévy é extensa, mas demonstram com clareza que a relevância de um autor para a obra se mantém, pois esta, sendo fruto de seu autor, também é fruto das condições materiais que o moldaram, delimitando que, ainda que quem produz uma certa coisa seja desconhecido, essa coisa só existe em função de tudo que formula o “eu” de quem a produz, seja um indivíduo ou um coletivo".

Apoiei essa afirmação baseado em duas figuras muito distintas, mas de igual relevância pra suas respectivas áreas: Dante Alighieri e a importância de sua atuação política e exílio na construção d’A Divina Comédia e Marc Bloch, um dos mais influentes historiadores do séc. XX, preso e torturado pelo exército nazista durante a 2ª Guerra Mundial, que escreveu sua obra mais importante, “Apologia da História”, durante esse período, ainda que não tenha tido a chance de terminá-la pois foi executado em junho de 1944. O texto é carregado, denso, mas claro no seu objetivo: Bloch queria dizer que a História é o que é, e o papel do historiador é entendê-la e registrá-la sem querer determinar o que ela é.

Mas o que diabos tudo isso tem a ver com Douglas Adams, ateísmo e seguir em frente? Bom, pelo menos algumas coisas, já que eu perdi um tempo colossal divagando por esses tópicos. Quando escrevi a introdução desse texto – como sempre no bloco de notas do celular – enviei pra minha revisora/conselheira/amiga-há-11-anos quase de imediato (oi, Manu). E como é bom ter gente que extrai coisas diferentes do que a gente faz e expande nossa perspectiva sobre o tema.

Ela respondeu o seguinte: “[...] Fé é acreditar que quando tá ruim pode melhorar. Fé é ter sentimentos bons. Doutrinas só nos ensinam com histórias de pessoas, que independentemente de acreditarmos se elas existiram ou não, tiveram fé de que poderiam evoluir e de que ajudariam a melhorar o mundo próximo delas. Você tem fé! Acreditar em um deus ou outro, já é outros 500”.

Aqui, enfim, o ponto ao qual eu queria chegar. Vejam só, há uns não muitos anos atrás eu possivelmente diria pra ela que discordava conceitualmente disso, e ela sabe bem. Eu já fui um discordador profissionalíssimo, em partes porque sentia um certo prazer em reagir de forma opositiva, em parte porque, no fundo, e é aqui que as coisas tomam seu lugar, tinha dificuldade em me desvencilhar de concepções que construí em tempos ainda mais distantes.


Superar certas coisas é difícil pra cacete. E superá-las quando parecem traços constituintes da sua existência é ainda mais. Mas, olhem só, não é preciso exatamente superar nada. Me explico. Ela também diria que eu continuo irritantemente argumentativo. Mas não mais simplesmente discordante, porque agora esse gosto por argumentar foi colocado num espaço de construção, em que o debate não é mais uma coisa a ser ganha, é um lugar de renovar a cabeça.

E pra isso funcionar, a necessidade de estar aberto ao novo é grande, assim como não tornar coisas abstratas e absolutamente sem relevância em traços de personalidade, o que até faz sentido por um certo período da vida – vide adolescência – porque enquanto seres sociais sentimos essa urgência louca de pertencimento que necessita de se agarrar em símbolos meio falidos pra funcionar, mas que te congela no seu próprio espaço-tempo, uma não-entropia do “eu”.

A galera do rock, do desenho japonês, do skate, “olha como eu faço parte”. Na boa, você já faz parte, só precisa encontrar a galera que também já entendeu que dá pra gostar dessas coisas sem parecer que seu mundo mental gira em torno disso. Não é tarefa fácil, mas viver de nostalgia ou de gostos te priva de experienciar o mundo de forma plena e de se entender plenamente enquanto parte do mundo.


Vez ou outra sinto que as pessoas andam apegadas demais a si mesmas, sem referências, sem aprofundamentos, e tenho poucas dúvidas sobre a influência da queridinha interwebs do Lévy nessa conjuntura, até porque quando ela se tornou relativamente corriqueira e acessível ninguém achou de bom tom falar dos limites, né. A velha história da mercadoria – essa eu deixo pra outra hora.

Retornando ao fio condutor, tal e qual Dante, Bloch e Adams – que estranho balaio de referências – vivenciaram uma série de eventos que os levaram à, citando novamente “O Salmão da Dúvida”, estarem convencidos de certas coisas sobre existir, expressando cada qual à sua maneira todo o conjunto de experiências que tiveram pela vida através de suas obras, elas expressam uma quantidade ainda maior de coisas sobre eles mesmos, um tipo de autorretrato que não se constrói de um dia pro outro, muitas vezes é doloroso e traz à tona aspectos de nós mesmos que preferiríamos esquecer, mas que fazem parte de nós tanto quanto as coisas que abraçamos. Alô Dorian Gray (prometo que é a última referência literária).

Enfim, não tô aqui pra cagar regra pra ninguém sobre a vida, mas estou convencido sobre todo esse emaranhado de questões, e não só porque está escrito em primeira pessoa, mas acho que esse texto fala muito sobre a pessoa que sou hoje. E acredito que se você perdeu todo esse tempo lendo, é bem provável que alguma coisa aqui também tenha te convencido (ou você só goste muito de mim. De qualquer forma, obrigado).

Não raramente me pego profundamente impaciente com o mundo ao redor, mas já fui muito mais impassível, e o processo todo de mudança só veio com o entendimento de que era necessário deixar certas coisas pra trás. Pelo menos agora consigo colocar – ainda que parcialmente, afinal de contas esse é um processo contínuo – cada coisa de mim em seu devido lugar, cada ferramenta realizando sua função. Vez ou outra ainda bato um parafuso com alicate, mas quem sabe num futuro próximo não me aparece uma parafusadeira decente.

Que péssima analogia.

segunda-feira, 24 de abril de 2023

Quem Tem Medo de Folhas de Papel ou Como o QR Code Atropelou o Bom Senso

 



Tem que acabar o cardápio QR Code. Na moral, essa bosta é o vilipêndio do bom senso, o nêmesis da lógica, uma das coisas mais contraproducentes que o mundo da alimentação poderia criar. Óbvio que essa aberração é prévia aos eventos que nos acometeram nos últimos 3 anos, o que mostra que nossa falência enquanto sociedade veio muito antes dessa desgraça – e por favor, não nos esqueçamos de quem é a responsabilidade por permitir o volume gargantuano de mortes evitáveis, obrigado.

Voltemos ao ponto. Gosto de exemplificar a situação toda através dos meus pais, duas das pessoas mais sensatas que já conheci. Não digo isso por serem meus pais, mas por ser um fato observável por qualquer pessoa que conviva minimamente com eles. Por diversas vezes, em estabelecimentos variados, presenciei ambos sofrendo com esse golpe de inutilidade travestido de “inovação” que é o cardápio digital.

Veja, o ponto crucial aqui é o fato de ambos serem pessoas que estão em constante atualização. Contudo, considerando os anos de vida e trabalho sem uma dependência objetiva – ou não - das “últimas tecnologias”, a digitalização de uma coisa tão simples quanto um cardápio só adiciona uma camada de complexificação que era totalmente contornável se os donos de restaurantes decidissem que seria de bom tom higienizar seus cardápios físicos.

Recorrentemente um dos dois sai de casa sem o telefone – quase sempre meu pai, diga-se de passagem – e ambos usam óculos. Claro que o cardápio físico não faz um tratamento instantâneo da saúde oftalmológica de nenhum dos dois, mas é muito mais prático lidar com um único empecilho, seja uma pasta ou um encadernado de folhas, do que ter que pular por vários aplicativos e menuzinhos nada intuitivos numa tela pequena com mais informação do que o necessário (em algum outro momento escrevo sobre cardápios moderninhos querendo fazer graça).

Existe, pra além de sua funcionalidade objetiva – ter coisas escritas – uma certa cumplicidade com o papel. Um livro, por exemplo, se lê pegado, com as duas mãos, aninhado e envolvido pelos dedos que correm as páginas desenhando o percurso da leitura, a carrega de intimidade. O cardápio estabelece essa conexão com a comida. Antes de comê-la, você a lê, e se deixa convencer pela história que ela conta que aquele é o prato a ser pedido.

Sobrevivemos ao pior e seguimos, aos trancos e barrancos, para honrar os que se foram. É justo que agora, vacinados e preparados pro que vem daqui pra frente, consigamos restabelecer coisas pequenas que nos conectam e abandonemos a frieza tosca e solitária que a pandemia nos empurrou como numa gavage.

Por favor, eliminem o cardápio em QR code. Chegamos ao ponto em que pessoas relatam que, ao chegar em um restaurante e não conseguirem ler o código em seus telefones, foram instruídas pela equipe do local a irem embora por falta de cardápios físicos (ou qualquer boa vontade) – o que me soa mais como um livramento do que como algo a se lamentar. Espero eu que NINGUÉM ache essa tranqueira uma boa ideia. E se, porventura, você que está lendo acha, chegamos no limite da nossa capacidade de convivência. Obrigado e passar bem.


segunda-feira, 3 de abril de 2023

Bar Apocalipse

 



Depois do fim do mundo, algumas coisas continuaram existindo. Convenientemente um bar foi uma delas. Não tão convenientemente, eu também. Porra, mundo, sinceramente, nem pra acabar direito! Decreto aqui e agora, isso é uma puta palhaçada! Infelizmente não posso fazer muita coisa sobre isso além de seguir, então sigamos.

Acordei em frente a ele, ainda atordoado, e com algum senso de que deveria ocupar o meu pós-tempo com algo minimamente útil (ou não), levantei e entrei. Sem dúvida uma ótima decisão pra’quela pseudo-noite (sei lá, o mundo acabou, nem saberia dizer se ainda existe noite). Lá dentro, descobri que, além de mim, outras 7 pessoas continuaram existindo.

As pessoas – não as vivas, mas todo mundo que morreu, e totalmente por inveja – diriam que a sobrevivência daquele grupo seletíssimo de humanos não fazia sentido, mas havia um certo senso de sarcasmo universal, meio etéreo, que permeava a presença daqueles pós-existentes.

Deepak Chopra rolava no chão em silêncio, como alguém que tenta apagar um fogo que nunca existiu. Rogério Skylab pedia cigarros, confuso e sem camisa, aos outros sobreviventes. Pablo Villaça lia um roteiro em branco, à fim de elucubrar todos os não-conceitos que aquele filme nunca traria ao mundo. Um cara com uma camiseta estampada “Lambada Quente” dançava sozinho ao lado de um jukebox quebrado. O barman, com seu mise en place impecavelmente montado, secava uma taça bordeaux. Uma senhora de vestido amarelo e boné de loja de construção tomava uma cerveja enquanto olhava profundamente consternada e ligeiramente confusa pra moça de armadura medieval que bebia um mojito ao seu lado.

Como todos foram parar ali? Nunca saberemos, mas também quem se importa? Eu não. Encarei essa cena por alguns instantes, sem saber exatamente que protocolos sociais seguir, e minha única reação – e talvez a única possível – foi sentar no balcão e pedir uma dose de Martini Rosso. Beberiquei despretensioso e foi exatamente o que eu precisava pra começar a colocar as ideias no lugar: uma dose de alguma bebida esquisita pra compor com o clima meio chato de completa aniquilação da sociedade.

Não soube exatamente o que pensar sobre aquela dose de Martini. Bom, sobre o que tinha acontecido com o mundo também não, mas sentado no balcão observando aquele grupo completamente desconexo e confuso de pessoas, não tinha motivos pra me preocupar com o sentido de nada. Dei mais um gole no Martini.

Senti uma batida no ombro. Skylab me pediu uma beiçada do que eu estava tomando. Muitas coisas acontecendo ao redor de uma bebida tão insignificante, pensaria o copo, caso ele fosse senciente. Passei o dito cujo pro Rogério e voltei a encarar o bar. O barman, excepcionalmente bem vestido pro apocalipse, exclamou com muito mais eloquência do que a devastação geral exigia:

- Gostaria de dizer ao senhor que é uma honra lhe servir. Todos aqui devem suas vidas ao que fez.

Finalmente uma coisa interessante pra distrair minha desolada mente pós-apocalíptica. O que exatamente eu tinha feito? Sem relação nenhuma com a dose mediana de álcool que corria no meu sangue, minha memória estava turva como uma lata cheia de chorume. Não só ela, mas absolutamente tudo parecia pouco claro até aquele momento. Perguntei o que aquilo queria dizer a resposta que recebi foi:

- Antes de mais nada, um cafezinho.


Sendo sincero, devia ter recusado o café. Frequentei bares o bastante na vida pra saber que não seria no último balcão da existência que eu beberia um café decente. Apesar de que, convenhamos, não estava em posição de recusar um café de graça. No primeiro contato do líquido com a língua, minhas suspeitas se confirmaram: o café tinha o gosto muito próximo daquela água que os pintores usam pra lavar os pincéis. É difícil explicar como eu poderia conhecer esse gosto, mas depois do Martini, do café e, obviamente, do fim do mundo, muitas coisas seriam difíceis.

Agradeci o barman, meio à contragosto do meu subconsciente, que preferia que eu jogasse a xícara na cara daquele cordial atendente. Ele, por sua vez, mesmo percebendo que me sentia envenenado por aquele gole de tristeza, comentou, com um sorriso no rosto:

- É natural que não se lembre do que fez, senhor, afinal de contas bater a cabeça em tamanha velocidade deixaria qualquer um tonto como um cabrito.

Ora, ora, mais um mistério. Tudo que o apocalipse precisava. Minha vontade de aproveitar todo o não-tempo que eu tinha disponível era grande, mas minha curiosidade pra tentar entender alguma coisa era muito maior. A única questão em jogo era qual dos três mistérios resolveria primeiro: o que eu tinha feito, por que eu bati a cabeça em alta velocidade e o mais misterioso de todos, como tanta gentileza fazia daquele barman uma pessoa tão irritante?

 

Nota sobre o fim do mundo

O mundo acabou em silêncio. Não um silêncio terno, de paz contemplativa. Era ensurdecedor, denso e opressor. Nosso protagonista muito provavelmente ainda não havia se acometido de que não havia mais nenhum resquício de humanidade pra além daquele bar.

Possivelmente tivesse algum fio de esperança de que poderia encontrar mais sobreviventes, mas não encontraria nada. Aquele pequeno grupo de pessoas era o que havia sobrado da humanidade, uma amostra insignificante de algo que nunca mais voltaria a existir. Dali em diante, apenas vazio, silêncio e o mundo, completamente indiferente ao fim de tudo que havia existido nele. Fim da nota.

- Por favor, me acompanhe, senhor – exclamou o barman enquanto pulava sobre o balcão exatamente como naquele clipe do Rick Astley. Os outros Apocalipsersinterromperam brevemente suas não-atividades pra apreciar aquele movimento gracioso, no que ficaria conhecido por eles como o primeiro lampejo artístico após o fim da humanidade. E eu, sempre incapaz de desempenhar qualquer tipo de movimento que exigisse alguma destreza, só conseguia pensar “Ah, legal, ele TINHA que estabelecer um nível tão alto”.

Segui o barman, que foi em direção a porta. Hesitei por um segundo, ainda com medo do que poderia encontrar, mas sinceramente, o que poderia ser mais inconveniente do que o MALDITO FIM DA EXISTÊNCIA HUMANA?!

Enfim, saímos do bar. Ao retornar lá pra fora, agora menos confuso e conseguindo observar bem os arredores, o cenário era muito mais “ué, tô na rua de casa?” do que “AAAAAAH MEU DEUS CHAMAS DESTRUIÇÃO MORTE DOR E SOFRIMENTO GUERRA ENTRE ANJOS E DEMÔNIOS”. A única coisa realmente diferente naquela paisagem opressivamente corriqueira era uma empilhadeira estacionada em frente ao bar.

 

Apocalipsers1: é engraçado como a mente associa uma desgraça à outra com facilidade. Ao pensar na nossa seleção de condenados ao pós-mundo, pensei automaticamente em FariaLimers. O mundo já havia acabado bem antes dessa história.