Não sei qual é minha lembrança mais antiga. Na
profusão de imagens que vêm à minha mente, nenhuma reside em um ponto concreto
do passado, mas ainda assim a clareza é estarrecedora. Um pouco porque as fotografias
que decoram as paredes de casa carregam os fragmentos dessa clareza, e passar
por elas diariamente impede que as imagens se desfaçam na minha mente.
Outro tanto porque felizmente fui criado em um
ambiente em que se ensina que o passado não é só uma foto envidraçada num
porta-retrato empoeirado. A memória, tal qual um dicionário de nós mesmos,
serve pra ser consultado sempre que o significado das coisas não parecer mais
tão claro.
Os filmes que a memória projeta pra mim são
curtos, mas todos carregados de significado. Uma moto de pedal preta, vermelha
e amarela cruzando o quintal ainda sem azulejos, eu e minha prima-irmã
derretendo os ovos de Páscoa na luz do Sol, com medo de usar o micro-ondas e
causar um acidente, olhar minha mãe por detrás do balcão mexendo a cobertura do
bolo de cenoura e andar na beira do rio com o meu pai, procurando e catando
caranguejinhos, pra depois soltá-los e ir beber Tubaína numa náutica próxima.
Essas memórias, ainda que provavelmente sejam
as mais antigas, tem uma nitidez estarrecedora. O que será que determina quais
lembranças vão se instalar de forma mais sólida? Não sei se tem uma razão. Mas
aqui reforço uma questão que sempre coloco na mesa: não acredito que deva haver
uma razão específica. Algumas coisas são como são, e a gente acaba direcionando
energia demais tentando abstrair sobre questões que fogem da capacidade humana
de entendê-las plenamente. Talvez algum dia isso mude, mas é isso que temos pra
hoje, melhor nos acostumarmos.
Além do mais, nem toda memória é positiva. A
vida também é carregada de imagens do luto, da perda, dos erros cometidos, das
desculpas não dadas e dos amores não demonstrados. Às vezes é meio barra-pesada
estar vivo. E tudo bem não estar em paz com as recordações. A gente vive numa
sociedade tão impregnada de uma falsa ideia de felicidade constante que
esquecemos que, sendo humanos, os sentimentos negativos também são
perfeitamente naturais e a gente precisa conviver com eles. A sujeira empurrada
pra debaixo do tapete continua lá, se acumulando, atacando sua rinite e criando
um calombo pra você tropeçar.
Acredito que a memória seja muito mais sobre
gerenciar a falta de paz que ela eventualmente nos proporciona do que se apegar
à alguma dimensão dela e acreditar que as coisas são exatamente como a gente
acha que se lembra. Se você perguntar pra alguém sobre um momento que viveram
juntos, é provável que os eventos sejam narrados de forma completamente
diferente do que eram na sua cabeça. Recordar é muito mais sobre sensações e
sentimentos do que sobre concretude, e é natural que cada um sinta os momentos
de forma única.
No fim das contas, acho que o ponto não seja
exatamente ficar em paz com as lembranças, mas entender como gerenciar a falta
dela. As coisas ruins deveriam nos ensinar tanto quanto as boas, e talvez elas
também precisem estar emolduradas e penduradas nas paredes da nossa mente, como
placas que nos direcionam pra sala onde bate a luz do Sol, cheia de retratos
dos dias mais leves.
Entre carregar os fardos mais pesados e as
alegrias mais raras, a memória vai se escrevendo pra nos permitir entender e
abraçar o agora, sem abrir mão de estarmos preparados pro que vem pela frente,
afinal, agora pode até ser noite, mas o dia sempre chega. É melhor estar pronto
pra luz não te cegar.
👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻❤️
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