Apesar de mais da metade da minha vida ter sido no Jardim Casqueiro, a
sensação de algum dia ter pertencido ao bairro já não é tão clara. Não que eu
sinta que nunca fiz parte dele ou algo do gênero, mas acredito que sempre
pertenci mais às pessoas do que ao solo. Ao longo dos anos voltei lá cada vez
menos, e hoje andar por aquelas ruas é como adentrar um retrato distorcido de
memórias que também já se degradam.
Vivia ali como uma criança do interior. As ruas sempre foram tranquilas,
espaçosas, e mesmo com o aumento da população e o avanço do bairro sobre o
mangue, tudo continuou quase intacto, preservado pelo mesmo verniz que permeia
os locais onde o passado importa tanto quanto o presente. Desde muito cedo
andava sozinho, fosse a pé ou de bicicleta, e apesar do meu círculo íntimo ser
composto quase que exclusivamente por pessoas da família, muitos rostos
conhecidos observavam os caminhos por onde eu passava.
Das memórias mais sólidas de crescer caiçara - lembrando que quem habita
o mangue o é tanto quanto quem vive na beira do mar - se sobressaem as de dias
em que saíamos eu, meu pai e minha prima de bicicleta pra andar na margem do
rio, debaixo da ponte que liga Cubatão à São Vicente, procurando e catando
caranguejinhos. Ainda que guarde essa lembrança com carinho, não era a parte
mais divertida, especialmente em dias de calor, já que o mangue não é gentil
neles. O que a gente mais esperava, na verdade, era pra tomar Tubaína numa
marina próxima. Ali, o gosto do refrigerante era diferente, talvez temperado pela
maresia. Nunca mais encontrei nada parecido.
Olhando em retrospecto, no entanto, consigo enxergar muitas coisas que
me fugiam naquele momento. Desde novo já achava curioso e incômodo como viver à
beira de um limite físico significava também viver correndo pela beira da
sociedade. O próprio bairro surgiu e cresceu sobre o mangue, e ao seu redor as
pessoas ocuparam as margens da rodovia, dos trilhos do trem, e quando não viram
mais pra onde ir, avançaram em palafitas sobre o rio. Aí então a aspereza do mangue
se faz presente, e não tenho dúvida que pra quem é empurrado em direção à lama
o gosto das coisas não guarda afetos tão doces.
A brutalidade da situação é que tanto a rodovia quanto os rios, os
trilhos e as pessoas que moram entre ambos seguiam indiferentes àquilo tudo. E
seguem. Indiferentes não no sentido de acreditarem que não haja ou não houvesse
outra opção, mas a quem tem negado o direito à cidade muitas vezes resta a
resignação. Ainda assim, não gosto de pensar que ela é a anestesia dos impotentes
porque não acredito que sejamos impotentes. Defendendo as coisas que defendo,
na verdade, acredito que sejamos a única força de alteração material da
realidade.
Não é necessário muito pra perceber que eu não tive que lidar
diretamente com as mazelas que circundam o bairro, mas ali da beira do rio
cresci em posição de observador costumeiro de boa parte delas, o que permitiu
que eu lembrasse sempre de não fechar os olhos pro sofrimento alheio.
Acabo de ver um trecho de uma entrevista de 2022 com Ailton Krenak,
resgatada em virtude de sua eleição como novo Imortal da Academia Brasileira de
Letras. Nela, às margens do Rio Doce, Krenak fala que vê a água como uma
entidade, não como um recurso. Mesmo com meu já conhecido ceticismo, vejo
sentido nisso, e sinto que de alguma forma o rio-braço-de-mar que morosamente
dita o formato das paisagens ao seu redor faz o mesmo com as pessoas.
Chico Science, com sua Nação Zumbi, traduziu muito bem o sentimento de
quem vêm do mangue, e não é necessário muito pra perceber que o do Beat e o da
Baixada não são tão diferentes assim. Mas ainda que tenha cantado o caos, Chico
também fazia questão de lembrar que na lama também há vida. Nos últimos meses,
indo pra São Paulo com certa frequência, tenho visto cada vez mais guarás vermelhos
sobrevoando o mangue, coisa que por anos não aconteceu. Se isso corrobora ou
não a tese, ao menos é um sinal de que se mantém a esperança de que a vida
encontra um jeito de prosperar.
Tenho orgulho de onde eu vim, e talvez tenha escrito esse texto pra não
esquecer de carregar o mangue, o rio e o voo dos guarás comigo. Como disse no
começo, depois de tanto tempo longe do Jardim Casqueiro, já não é tão clara a
sensação de pertencimento, mas se fecho os olhos ainda consigo ver com clareza
todo o caminho de casa até a Beira-Mar. E ali, exatamente como no dia em que eu
fui embora, o rio segue moldando a vida.
Que lindooooo! Viajei no seu escrito...🤗🥰
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