sexta-feira, 6 de outubro de 2023

O Fluxo do Rio

 



Apesar de mais da metade da minha vida ter sido no Jardim Casqueiro, a sensação de algum dia ter pertencido ao bairro já não é tão clara. Não que eu sinta que nunca fiz parte dele ou algo do gênero, mas acredito que sempre pertenci mais às pessoas do que ao solo. Ao longo dos anos voltei lá cada vez menos, e hoje andar por aquelas ruas é como adentrar um retrato distorcido de memórias que também já se degradam.

Vivia ali como uma criança do interior. As ruas sempre foram tranquilas, espaçosas, e mesmo com o aumento da população e o avanço do bairro sobre o mangue, tudo continuou quase intacto, preservado pelo mesmo verniz que permeia os locais onde o passado importa tanto quanto o presente. Desde muito cedo andava sozinho, fosse a pé ou de bicicleta, e apesar do meu círculo íntimo ser composto quase que exclusivamente por pessoas da família, muitos rostos conhecidos observavam os caminhos por onde eu passava.

Das memórias mais sólidas de crescer caiçara - lembrando que quem habita o mangue o é tanto quanto quem vive na beira do mar - se sobressaem as de dias em que saíamos eu, meu pai e minha prima de bicicleta pra andar na margem do rio, debaixo da ponte que liga Cubatão à São Vicente, procurando e catando caranguejinhos. Ainda que guarde essa lembrança com carinho, não era a parte mais divertida, especialmente em dias de calor, já que o mangue não é gentil neles. O que a gente mais esperava, na verdade, era pra tomar Tubaína numa marina próxima. Ali, o gosto do refrigerante era diferente, talvez temperado pela maresia. Nunca mais encontrei nada parecido.

Olhando em retrospecto, no entanto, consigo enxergar muitas coisas que me fugiam naquele momento. Desde novo já achava curioso e incômodo como viver à beira de um limite físico significava também viver correndo pela beira da sociedade. O próprio bairro surgiu e cresceu sobre o mangue, e ao seu redor as pessoas ocuparam as margens da rodovia, dos trilhos do trem, e quando não viram mais pra onde ir, avançaram em palafitas sobre o rio. Aí então a aspereza do mangue se faz presente, e não tenho dúvida que pra quem é empurrado em direção à lama o gosto das coisas não guarda afetos tão doces.

A brutalidade da situação é que tanto a rodovia quanto os rios, os trilhos e as pessoas que moram entre ambos seguiam indiferentes àquilo tudo. E seguem. Indiferentes não no sentido de acreditarem que não haja ou não houvesse outra opção, mas a quem tem negado o direito à cidade muitas vezes resta a resignação. Ainda assim, não gosto de pensar que ela é a anestesia dos impotentes porque não acredito que sejamos impotentes. Defendendo as coisas que defendo, na verdade, acredito que sejamos a única força de alteração material da realidade.

Não é necessário muito pra perceber que eu não tive que lidar diretamente com as mazelas que circundam o bairro, mas ali da beira do rio cresci em posição de observador costumeiro de boa parte delas, o que permitiu que eu lembrasse sempre de não fechar os olhos pro sofrimento alheio.

Acabo de ver um trecho de uma entrevista de 2022 com Ailton Krenak, resgatada em virtude de sua eleição como novo Imortal da Academia Brasileira de Letras. Nela, às margens do Rio Doce, Krenak fala que vê a água como uma entidade, não como um recurso. Mesmo com meu já conhecido ceticismo, vejo sentido nisso, e sinto que de alguma forma o rio-braço-de-mar que morosamente dita o formato das paisagens ao seu redor faz o mesmo com as pessoas.

Chico Science, com sua Nação Zumbi, traduziu muito bem o sentimento de quem vêm do mangue, e não é necessário muito pra perceber que o do Beat e o da Baixada não são tão diferentes assim. Mas ainda que tenha cantado o caos, Chico também fazia questão de lembrar que na lama também há vida. Nos últimos meses, indo pra São Paulo com certa frequência, tenho visto cada vez mais guarás vermelhos sobrevoando o mangue, coisa que por anos não aconteceu. Se isso corrobora ou não a tese, ao menos é um sinal de que se mantém a esperança de que a vida encontra um jeito de prosperar.

Tenho orgulho de onde eu vim, e talvez tenha escrito esse texto pra não esquecer de carregar o mangue, o rio e o voo dos guarás comigo. Como disse no começo, depois de tanto tempo longe do Jardim Casqueiro, já não é tão clara a sensação de pertencimento, mas se fecho os olhos ainda consigo ver com clareza todo o caminho de casa até a Beira-Mar. E ali, exatamente como no dia em que eu fui embora, o rio segue moldando a vida.

 

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