sábado, 14 de outubro de 2023

Fenomenologia da Estupidez





Queria ter uma forma de explicar de forma definitiva o que acontece com as pessoas, ao passo que também me sinto profundamente levado a ignorar completamente a condição humana. Eis minha dialética on demand.

Por toda a vida fui educado num ambiente coletivo. Antes de qualquer coisa, o todo. Contudo, e é importante frisar, isso não significa que existisse - ou exista - qualquer forma de supressão do individual. A ideia sempre foi de que toda opinião fosse ouvida e respeitada, buscando equilíbrio entre as partes. Isso permitiu que eu criasse algum senso de que minha visão do mundo é tão relevante quanto o bem coletivo permite. Por mais estranho que pareça, não é a tônica que conduz a visão da sociedade. Curioso.

Existe um volume considerável de situações que poderia citar pra exemplificar meu ponto, mas tenho uma teoria razoavelmente bem construída ao longo dos últimos anos que simboliza de forma contundente a miséria da condição humana, e se apoia em um fenômeno específico: cachorros no shopping.

SIM, VOU ABRIR ESSA CAIXINHA. O risco é grande, mas de quê vale a vida sem um pouco de perigo? Caso esse seja um tópico que lhe é sensível, paciência, mas precisamos falar sobre uma das expressões mais características do lugar em que se encontra a Humanidade nesse período tão estranho da História. 

Antes de enfiar o pé na lama, reitero: não tenho nada contra cachorros, muito pelo contrário, gosto muito deles. Agora veja só: você descende de grandes predadores, animais inteligentes, organizados, altivos, e tudo que lhe é permitido é ficar confinado numa apartamento decorado igual uma loja tosca de quinquilharias, comendo ração sintética de alguma fruta da moda com peixe de cativeiro, isolado de tudo que te faz um animal. 

Aí quando você tem a oportunidade de sair dessa prisão de insegurança, tudo que lhe é permitido é ficar enfiado em uma bolsa quente de couro sintético mequetrefe ou num carrinho fedorento, rodando sem rumo dentro de um prédio atolado de estímulos intensos demais pros seus sentidos apurados, que muitas gerações antes foram usados pra caçar e sobreviver em ambientes hostis. 

Seus antepassados infelizmente não tinham como prever que o futuro te daria a ilusão do conforto, mas traria muito mais hostilidade. Acho que não preciso ir muito além disso pra me fazer entender, certo? Agora passemos ao fator humano. Observamos nos últimos anos a escalada da disseminação do pensamento neoliberal, que impulsiona de forma irrestrita o pensamento de que todo seu sucesso, fracasso e qualquer outra coisa dependem única e exclusivamente de você mesmo, independente do âmbito da sua vida.

Pra que isso funcione, no entanto, é necessário que se criem artifícios pra que faça sentido achar que só você importa. Eis onde entram os cachorros. Ouvimos constantemente pessoas dizendo “ai, cachorro é muito melhor do que gente”, “se eu chego na festa e tem cachorro eu nem falo com ninguém” e todo tipo de bobajada infantilizada - no sentido de que as crianças ainda não desenvolveram totalmente a capacidade de articular seu “eu” com o mundo, e por isso têm tendência a comportamentos individualistas - que se pode imaginar. Para mais, vide Vygotsky.

O que amarra todas essas questões dentro da minha teoria, que será formalmente batizada mais pra frente, é o fato de que se relacionar com os outros é difícil, mas convenhamos que fica muito mais difícil quando todo mundo acha que seus gostos e prazeres são muito mais importantes que os do outro, resultando num coletivo de pessoas completamente absorvidas em si mesmas. Aí entram os cachorros.

O animal - por questões óbvias - não vai dizer que não gosta tanto assim das músicas que você ouve, não vai afirmar que preferiria ir em outro restaurante, não vai te falar que seu sapato não combina com a sua camisa e definitivamente não irá reclamar de ser arrastado dentro de um shopping sem absolutamente nenhum objetivo. Com pouquíssimas variações comportamentais, ele provavelmente vai abanar o rabo, botar a língua pra fora e latir gentilmente pra qualquer atrocidade que você ousar vocalizar. Quem preferiria ser constantemente questionado no lugar de ser recebido todos os dias com pulinhos, lambidas e todo tipo de fofuras que só seu doguinho pode proporcionar?

As pessoas transferiram intensamente seus afetos para qualquer coisa que não possa apontar a completa falta de bom senso delas, e os animais, coitados, foram as vítimas da incapacidade que se formou de não se conseguir mais construir relações com outras pessoas e lidar com a frustração de não se saber como mediar suas próprias expectativas frente às dos outros.

Postulo então minha teoria comportamental organizada, resumida em poucas palavras: dada a incapacidade humana de se relacionar de forma saudável com outras pessoas, em função dos efeitos da acentuação da lógica neoliberal, os afetos foram transferidos aos animais, e toda uma cadeia de incoerências se construiu ao redor disso. Não sei se estou plenamente satisfeito com essa formulação, mas me permito retornar à ela quando achar necessário. Sendo sincero, a cabeça dói um pouco quando paro pra pensar nisso com um pouco mais de atenção. Seguirei sem explicar nada de forma definitiva.

Espero que no futuro essas coisas estejam registradas nos livros de história, e que as professoras e professores, ao falarem do início do século 21, digam aos seus alunos “temos aqui a expressão máxima da tosqueira que era o mundo no início dos anos 2000, num movimento que o escritor André Rodrigues descreveu como ‘Fenomenologia da Estupidez’. Que não repitamos esses erros”.

Infelizmente acho que, assim como ainda somos capazes de reproduzir grandes erros do passado, nossos trinetos provavelmente ainda terão de testemunhar muita baboseira. Se você está lendo isso no futuro, sinto muito. Se está aqui em 2023 - ou adjacências - tenha um pouco de decência. Fico por aqui. Obrigado.

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