Douglas Adams, o grande autor britânico de “O Guia do
Mochileiro das Galáxias” e “Agência de Investigações Holísticas Dirk Gently”,
diz em um texto presente em outro livro seu, uma coletânea de textos variados
chamado “O Salmão da Dúvida” (inclusive recomendo fortemente): "[...]
quero dizer ateu mesmo. Eu realmente não acredito que exista um deus – na
verdade, estou convencido de que ele não existe. E há uma diferença enorme
entre as duas coisas". Tenho minhas dúvidas sobre a exatidão das palavras,
mas absoluta certeza de que era isso que ele queria dizer.
Boa parte das pessoas que me conhece e está lendo esse texto
provavelmente sabe que eu sou ateu, mas não é de religião que eu quero falar.
Nem tenho certeza se essa é uma caixa que eu gostaria de remexer em busca de
assuntos pra escrever crônicas. Posso não ser dotado de espiritualidade, mas
expresso sempre minha crença de que é muito bonita a fé.
Sinceramente, fiz essa introdução desnecessariamente longa
nem sei por quê. Quero falar, na verdade, de crescer, envelhecer e seguir em
frente. Abandonar os velhos signos e criar novos, novas memórias, novos afetos,
desmontar e reconstruir o “eu”.
Recentemente, escrevendo um artigo de opinião pedido pra uma
das aulas da faculdade, fiz a seguinte constatação, ao debater as colocações do
sociólogo e dito entendedor de Cibercultura Pierre Lévy:
"A lista de exemplos que poderiam ser dados para
colocar em questionamento a posição de Lévy é extensa, mas demonstram com
clareza que a relevância de um autor para a obra se mantém, pois esta, sendo
fruto de seu autor, também é fruto das condições materiais que o moldaram,
delimitando que, ainda que quem produz uma certa coisa seja desconhecido, essa
coisa só existe em função de tudo que formula o “eu” de quem a produz, seja um
indivíduo ou um coletivo".
Apoiei essa afirmação baseado em duas figuras muito
distintas, mas de igual relevância pra suas respectivas áreas: Dante Alighieri
e a importância de sua atuação política e exílio na construção d’A Divina
Comédia e Marc Bloch, um dos mais influentes historiadores do séc. XX, preso e
torturado pelo exército nazista durante a 2ª Guerra Mundial, que escreveu sua
obra mais importante, “Apologia da História”, durante esse período, ainda que
não tenha tido a chance de terminá-la pois foi executado em junho de 1944. O
texto é carregado, denso, mas claro no seu objetivo: Bloch queria dizer que a
História é o que é, e o papel do historiador é entendê-la e registrá-la sem
querer determinar o que ela é.
Mas o que diabos tudo isso tem a ver com Douglas Adams,
ateísmo e seguir em frente? Bom, pelo menos algumas coisas, já que eu perdi um
tempo colossal divagando por esses tópicos. Quando escrevi a introdução desse
texto – como sempre no bloco de notas do celular – enviei pra minha
revisora/conselheira/amiga-há-11-anos quase de imediato (oi, Manu). E como é
bom ter gente que extrai coisas diferentes do que a gente faz e expande nossa
perspectiva sobre o tema.
Ela respondeu o seguinte: “[...] Fé é acreditar que quando
tá ruim pode melhorar. Fé é ter sentimentos bons. Doutrinas só nos ensinam com
histórias de pessoas, que independentemente de acreditarmos se elas existiram
ou não, tiveram fé de que poderiam evoluir e de que ajudariam a melhorar o
mundo próximo delas. Você tem fé! Acreditar em um deus ou outro, já é outros
500”.
Aqui, enfim, o ponto ao qual eu queria chegar. Vejam só, há
uns não muitos anos atrás eu possivelmente diria pra ela que discordava
conceitualmente disso, e ela sabe bem. Eu já fui um discordador
profissionalíssimo, em partes porque sentia um certo prazer em reagir de forma
opositiva, em parte porque, no fundo, e é aqui que as coisas tomam seu lugar,
tinha dificuldade em me desvencilhar de concepções que construí em tempos ainda
mais distantes.
Superar certas coisas é difícil pra cacete. E superá-las
quando parecem traços constituintes da sua existência é ainda mais. Mas, olhem
só, não é preciso exatamente superar nada. Me explico. Ela também diria que eu
continuo irritantemente argumentativo. Mas não mais simplesmente discordante,
porque agora esse gosto por argumentar foi colocado num espaço de construção,
em que o debate não é mais uma coisa a ser ganha, é um lugar de renovar a
cabeça.
E pra isso funcionar, a necessidade de estar aberto ao novo
é grande, assim como não tornar coisas abstratas e absolutamente sem relevância
em traços de personalidade, o que até faz sentido por um certo período da vida
– vide adolescência – porque enquanto seres sociais sentimos essa urgência
louca de pertencimento que necessita de se agarrar em símbolos meio falidos pra
funcionar, mas que te congela no seu próprio espaço-tempo, uma não-entropia do
“eu”.
A galera do rock, do desenho japonês, do skate, “olha como
eu faço parte”. Na boa, você já faz parte, só precisa encontrar a galera que
também já entendeu que dá pra gostar dessas coisas sem parecer que seu mundo
mental gira em torno disso. Não é tarefa fácil, mas viver de nostalgia ou de
gostos te priva de experienciar o mundo de forma plena e de se entender
plenamente enquanto parte do mundo.
Vez ou outra sinto que as pessoas andam apegadas demais a si
mesmas, sem referências, sem aprofundamentos, e tenho poucas dúvidas sobre a
influência da queridinha interwebs do Lévy nessa conjuntura, até porque
quando ela se tornou relativamente corriqueira e acessível ninguém achou de bom
tom falar dos limites, né. A velha história da mercadoria – essa eu deixo pra
outra hora.
Retornando ao fio condutor, tal e qual Dante, Bloch e Adams
– que estranho balaio de referências – vivenciaram uma série de eventos que os
levaram à, citando novamente “O Salmão da Dúvida”, estarem convencidos de
certas coisas sobre existir, expressando cada qual à sua maneira todo o
conjunto de experiências que tiveram pela vida através de suas obras, elas
expressam uma quantidade ainda maior de coisas sobre eles mesmos, um tipo de
autorretrato que não se constrói de um dia pro outro, muitas vezes é doloroso e
traz à tona aspectos de nós mesmos que preferiríamos esquecer, mas que fazem
parte de nós tanto quanto as coisas que abraçamos. Alô Dorian Gray (prometo que
é a última referência literária).
Enfim, não tô aqui pra cagar regra pra ninguém sobre a vida,
mas estou convencido sobre todo esse emaranhado de questões, e não só porque
está escrito em primeira pessoa, mas acho que esse texto fala muito sobre a
pessoa que sou hoje. E acredito que se você perdeu todo esse tempo lendo, é bem
provável que alguma coisa aqui também tenha te convencido (ou você só goste
muito de mim. De qualquer forma, obrigado).
Não raramente me pego profundamente impaciente com o mundo
ao redor, mas já fui muito mais impassível, e o processo todo de mudança só
veio com o entendimento de que era necessário deixar certas coisas pra trás.
Pelo menos agora consigo colocar – ainda que parcialmente, afinal de contas
esse é um processo contínuo – cada coisa de mim em seu devido lugar, cada
ferramenta realizando sua função. Vez ou outra ainda bato um parafuso com
alicate, mas quem sabe num futuro próximo não me aparece uma parafusadeira
decente.
Que péssima analogia.
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