terça-feira, 2 de maio de 2023

A Vida, O Universo e Só Mais Umas Coisinhas

 



Douglas Adams, o grande autor britânico de “O Guia do Mochileiro das Galáxias” e “Agência de Investigações Holísticas Dirk Gently”, diz em um texto presente em outro livro seu, uma coletânea de textos variados chamado “O Salmão da Dúvida” (inclusive recomendo fortemente): "[...] quero dizer ateu mesmo. Eu realmente não acredito que exista um deus – na verdade, estou convencido de que ele não existe. E há uma diferença enorme entre as duas coisas". Tenho minhas dúvidas sobre a exatidão das palavras, mas absoluta certeza de que era isso que ele queria dizer.

Boa parte das pessoas que me conhece e está lendo esse texto provavelmente sabe que eu sou ateu, mas não é de religião que eu quero falar. Nem tenho certeza se essa é uma caixa que eu gostaria de remexer em busca de assuntos pra escrever crônicas. Posso não ser dotado de espiritualidade, mas expresso sempre minha crença de que é muito bonita a fé.

Sinceramente, fiz essa introdução desnecessariamente longa nem sei por quê. Quero falar, na verdade, de crescer, envelhecer e seguir em frente. Abandonar os velhos signos e criar novos, novas memórias, novos afetos, desmontar e reconstruir o “eu”.


Recentemente, escrevendo um artigo de opinião pedido pra uma das aulas da faculdade, fiz a seguinte constatação, ao debater as colocações do sociólogo e dito entendedor de Cibercultura Pierre Lévy:

"A lista de exemplos que poderiam ser dados para colocar em questionamento a posição de Lévy é extensa, mas demonstram com clareza que a relevância de um autor para a obra se mantém, pois esta, sendo fruto de seu autor, também é fruto das condições materiais que o moldaram, delimitando que, ainda que quem produz uma certa coisa seja desconhecido, essa coisa só existe em função de tudo que formula o “eu” de quem a produz, seja um indivíduo ou um coletivo".

Apoiei essa afirmação baseado em duas figuras muito distintas, mas de igual relevância pra suas respectivas áreas: Dante Alighieri e a importância de sua atuação política e exílio na construção d’A Divina Comédia e Marc Bloch, um dos mais influentes historiadores do séc. XX, preso e torturado pelo exército nazista durante a 2ª Guerra Mundial, que escreveu sua obra mais importante, “Apologia da História”, durante esse período, ainda que não tenha tido a chance de terminá-la pois foi executado em junho de 1944. O texto é carregado, denso, mas claro no seu objetivo: Bloch queria dizer que a História é o que é, e o papel do historiador é entendê-la e registrá-la sem querer determinar o que ela é.

Mas o que diabos tudo isso tem a ver com Douglas Adams, ateísmo e seguir em frente? Bom, pelo menos algumas coisas, já que eu perdi um tempo colossal divagando por esses tópicos. Quando escrevi a introdução desse texto – como sempre no bloco de notas do celular – enviei pra minha revisora/conselheira/amiga-há-11-anos quase de imediato (oi, Manu). E como é bom ter gente que extrai coisas diferentes do que a gente faz e expande nossa perspectiva sobre o tema.

Ela respondeu o seguinte: “[...] Fé é acreditar que quando tá ruim pode melhorar. Fé é ter sentimentos bons. Doutrinas só nos ensinam com histórias de pessoas, que independentemente de acreditarmos se elas existiram ou não, tiveram fé de que poderiam evoluir e de que ajudariam a melhorar o mundo próximo delas. Você tem fé! Acreditar em um deus ou outro, já é outros 500”.

Aqui, enfim, o ponto ao qual eu queria chegar. Vejam só, há uns não muitos anos atrás eu possivelmente diria pra ela que discordava conceitualmente disso, e ela sabe bem. Eu já fui um discordador profissionalíssimo, em partes porque sentia um certo prazer em reagir de forma opositiva, em parte porque, no fundo, e é aqui que as coisas tomam seu lugar, tinha dificuldade em me desvencilhar de concepções que construí em tempos ainda mais distantes.


Superar certas coisas é difícil pra cacete. E superá-las quando parecem traços constituintes da sua existência é ainda mais. Mas, olhem só, não é preciso exatamente superar nada. Me explico. Ela também diria que eu continuo irritantemente argumentativo. Mas não mais simplesmente discordante, porque agora esse gosto por argumentar foi colocado num espaço de construção, em que o debate não é mais uma coisa a ser ganha, é um lugar de renovar a cabeça.

E pra isso funcionar, a necessidade de estar aberto ao novo é grande, assim como não tornar coisas abstratas e absolutamente sem relevância em traços de personalidade, o que até faz sentido por um certo período da vida – vide adolescência – porque enquanto seres sociais sentimos essa urgência louca de pertencimento que necessita de se agarrar em símbolos meio falidos pra funcionar, mas que te congela no seu próprio espaço-tempo, uma não-entropia do “eu”.

A galera do rock, do desenho japonês, do skate, “olha como eu faço parte”. Na boa, você já faz parte, só precisa encontrar a galera que também já entendeu que dá pra gostar dessas coisas sem parecer que seu mundo mental gira em torno disso. Não é tarefa fácil, mas viver de nostalgia ou de gostos te priva de experienciar o mundo de forma plena e de se entender plenamente enquanto parte do mundo.


Vez ou outra sinto que as pessoas andam apegadas demais a si mesmas, sem referências, sem aprofundamentos, e tenho poucas dúvidas sobre a influência da queridinha interwebs do Lévy nessa conjuntura, até porque quando ela se tornou relativamente corriqueira e acessível ninguém achou de bom tom falar dos limites, né. A velha história da mercadoria – essa eu deixo pra outra hora.

Retornando ao fio condutor, tal e qual Dante, Bloch e Adams – que estranho balaio de referências – vivenciaram uma série de eventos que os levaram à, citando novamente “O Salmão da Dúvida”, estarem convencidos de certas coisas sobre existir, expressando cada qual à sua maneira todo o conjunto de experiências que tiveram pela vida através de suas obras, elas expressam uma quantidade ainda maior de coisas sobre eles mesmos, um tipo de autorretrato que não se constrói de um dia pro outro, muitas vezes é doloroso e traz à tona aspectos de nós mesmos que preferiríamos esquecer, mas que fazem parte de nós tanto quanto as coisas que abraçamos. Alô Dorian Gray (prometo que é a última referência literária).

Enfim, não tô aqui pra cagar regra pra ninguém sobre a vida, mas estou convencido sobre todo esse emaranhado de questões, e não só porque está escrito em primeira pessoa, mas acho que esse texto fala muito sobre a pessoa que sou hoje. E acredito que se você perdeu todo esse tempo lendo, é bem provável que alguma coisa aqui também tenha te convencido (ou você só goste muito de mim. De qualquer forma, obrigado).

Não raramente me pego profundamente impaciente com o mundo ao redor, mas já fui muito mais impassível, e o processo todo de mudança só veio com o entendimento de que era necessário deixar certas coisas pra trás. Pelo menos agora consigo colocar – ainda que parcialmente, afinal de contas esse é um processo contínuo – cada coisa de mim em seu devido lugar, cada ferramenta realizando sua função. Vez ou outra ainda bato um parafuso com alicate, mas quem sabe num futuro próximo não me aparece uma parafusadeira decente.

Que péssima analogia.

Nenhum comentário:

Postar um comentário