sexta-feira, 31 de março de 2023

Não Seja o Juiz do Tribunal Alheio



O conceito de guilty pleasure é uma grande babaquice. Estamos tão acostumados a viver sob a vigilância do crivo alheio que esquecemos que temos o direito de gostar do que gostamos. Aqui me refiro a gostos pessoais, que fique claro, e nada que seja moral e eticamente questionável. Entenda que há limites.

Lembro com clareza média – como quase tudo na minha vida - de algumas situações corriqueiras, especialmente na infância e na adolescência, que me levaram a anos de eco mental da frase “mas que gente chata do cacete”. Um tema em especial até hoje me chama a atenção, e recentemente voltou à tona em razão dos 10 anos do falecimento do Chorão, vocalista do Charlie Brown Jr.

Eu não gosto de Charlie Brown. “AI BOTTINI, QUE SACRILÉGIO, O CAIÇARA QUE NÃO OUVE CHARLIE BROWN!”. É, fazer o quê. Absolutamente nada contra a banda, nem acho ruim, só não gosto. Conviver com isso na fase adulta – ainda que continue levantando questionamentos de gente sem noção – é muito tranquilo. Finalmente estou em paz com os meus gostos e sequer sinto vontade de querer justificá-los.

Mas quando se é novo, tentando estruturar identidade própria enquanto lida com as pressões do crescer, parece que a coisa vira uma espécie de morte em vida. Você existe, mas não é reconhecido como agente ativo. Como se aderir a certo movimento determinasse até a possibilidade de ser considerado pra fazer parte daquele ambiente.

Óbvio que o ser humano, enquanto ser social, está sujeito à formação do “eu” através da relação dialética com o mundo à sua volta, mas “negar” esse mundo também não é dialetizar com ele? Pensemos outro cenário de possibilidades.

Muitos amigos da cozinha gostam de comer nos McKings e CarroLanches da vida, e estranhamente isso é meio que um tabu, nem todo mundo admite abertamente. Por quê? Em certo aspecto, compreendo perfeitamente. Enquanto profissionais somos compelidos ao apego à técnica, que se oporia em absoluto ao mercadológico/industrializado.

Porém, vou contar um segredo pra vocês: tá cheio de chef de capa de revista usando caldo pronto de poliquímicos de sódio e outros vacilos ultraprocessados em prato de 200 janjos, mas cagando regra sobre como a equipe dele, cagada, cansada, mal paga e doente deveria se portar ou o que deveria consumir.

Enfim, é óbvio que se passássemos algumas horas abstraindo sobre a objetividade ou não do que pode ser considerado bom entraríamos em uma discussão completamente diferente, principalmente sobre a possibilidade concreta de todo mundo ter acesso ao que quisesse pra formar gosto, sobre o que quer que fosse, nivelado por cima. Mas esse não é o objetivo, agora.

Vim aqui só pra deixar minha pulga-atrás-da-orelha semanal pra quem perde tempo lendo o que eu escrevo, afinal de contas, gosto é gosto, e sendo assim, tenha a decência de, após essa leitura, evitar sair por aí questionando os outros. Provavelmente, a não ser que tenham pedido, ninguém liga muito pra sua opinião. Goste do que você gosta e deixa as pessoas. Tá tudo bem não ser juiz do tribunal alheio.

segunda-feira, 20 de março de 2023

Será Se a Internet Foi Longe Demais?



Usar qualquer rede social tem sido uma atividade deletéria. Claro, isso não é exatamente uma novidade, e as redes sociais são só a ponta desse iceberg de insalubridade, mas pelamordedeus, a que ponto chegamos?

Lembro quando meus pais - e todo veículo de mídia existente - insistiam constantemente na ideia de que eu deveria ser cuidadoso com o uso da internet. Acho que nem seria exagero afirmar que a sociedade inteira enxergava nossa querida interwebs com - pra dizer o mínimo - muitas ressalvas.

Isso me proporcionou uma considerável capacidade reflexiva sobre a função dessa parafernália toda na minha vida. Evitar se expor demais, sempre tomar cuidado com compartilhamento de dados, checar a credibilidade de notícias e informações... Poderia passar horas elencando a variedade colossal de situações onde muito bom-senso e apreensão nunca seriam demais.

Contudo, no entanto, todavia, como alguém que deveria educar, mas tem medo de repetir os erros do passado e deixa crianças tocarem o terror, confundindo educação e autoridade com restrição de liberdades (e nem os culpo muito, já que gerações anteriores também falharam miseravelmente nesse sentido), deixamos a criança internê correr solta pelos lindos campos do vacilo.

Que fique bem claro, com "deixamos" eu me refiro à cooptação desse ambiente pela besta-fera chamada capitalismo. Deixo essa discussão pra outra hora, mas é louco perceber que de "todo cuidado é pouco" passamos pra "se tá na internet provavelmente é verdade".

As coisas no ambiente virtual mudam tão rápido que até no famigerado "comprei um leitor de DVD pelo site e recebi 2 tijolos" nós continuamos caindo, simplesmente porque esquecemos – ou ignoramos - que ele já existiu. Na moral, em pleno século 2023, como dizem os jovens, saber que isso é verdade beira a insanidade.

O grande problema é que, de golpes toscos, passamos pra elaborados sistemas de manipulação do senso das pessoas. De gente que vende "cigarro de vitaminas" e fórmulas "mágicas" de emagrecimento pro bizarro, misógino e criminoso mundo do "red pill" (umas das coisas mais burras, cretinas e abjetas já excretadas pela fragilidade masculina), a internet virou um antro de borrice. Com "o", mesmo, pra frisar a estupidez.

Todo dia uma microcausa vira "trending topic", um não-debate captura nossa atenção como armadilhas pra ursos e um completo idiota ganha notoriedade por absolutamente nada - além, claro, de ser um idiota. Poderia facilmente escrever todo um outro texto apenas pra falar sobre tipos variados desses bostinhas que se escondem atrás do discurso de liberdade de expressão pra espalharem todo tipo de lixo que beire ou seja de fato o crimes, mas prefiro manter o foco do momento num primeiro lapso de reflexão sobre a temática.

Torço pelo dia em que retornemos aos tempos áureos da rede mundial de computadores, baixando músicas em programas com nomes toscos, deixando depoimentos nos perfis dos nossos amigos e, enfim, sendo minimamente decentes, já que, convenhamos, a realidade por si só já cobra um preço alto demais pra ser acessada.

domingo, 12 de março de 2023

Você Não É Uma Caloi: Crônica do Ciclismo Doloso



Em tempos recentes, ligeiramente à contragosto, porém firme no propósito de manter o corpo são pra lidar com a idade, que lenta e sorrateiramente vai demarcando seu território, resolvi adotar um hábito saudável.

Voltei meus olhos pra uma atividade que muito me agradava e há tempos não praticava com regularidade: o ciclismo. Como sou um tosco e gosto de inventar nomes esdrúxulos pras coisas, inaugurei na minha vida um novo quadro, o Ciclismo Doloso - Quando Há Intenção de Pedalar. São momentos prazerosos, os de pedalada. Isto é, quando escolho os momentos adequados pra adentrar o mundo selvagem das ciclovias santistas.

De uma forma geral, especialmente em dias úteis e fora de horários em que as pessoas estão saindo ou entrando no trabalho – posto que, considerando a planitude da cidade, a bicicleta não se reduz à mero artefato esportivo ou de lazer – o trânsito pelas ciclovias é consideravelmente fácil. Sim, temos o já famigerado problema de manutenção comum a qualquer via pública da maioria das cidades, mas de forma geral, aos menos nos caminhos que percorro, esse não costuma ser um grande entrave pra usuários eventuais.

O grande “X” nessa brincadeira toda é a atuação da regra universal de que, pra cada gosto adquirido, uma merda chata pra cacete vem junto. Obviamente nesse caso não seria diferente. Na minha experiência, criei três categorias pra classificar fatores muito irritantes de ser ciclista em Santos:

1 – O ser humano que perdeu totalmente a noção de perigo. Classe formada principalmente por trabalhadoras e trabalhadores que utilizam a bicicleta como meio de transporte diário e, como consequência, foram totalmente despidos do senso de autopreservação, realizando manobras de ultrapassagem dignas de coadjuvantes fadados à morte de Velozes e Furiosos. Me solidarizo com essas pessoas, mas já presenciei situações de risco o suficiente pra me permitir ficar incomodado. Cuidar de si também é cuidar dos outros, parça.

2 – O turista. Essa classe é um tanto quanto abrangente e ligeiramente metafórica. Não me refiro apenas ao turista que vem de outras cidades, com o olhar pueril de alguém que não está acostumado aos hábitos e o funcionamento específico de coisas próprias da cultura local.

Aqui também estão contidos os turistas da própria ciclovia. Geralmente são pessoas que transitam nela em pouquíssimas ocasiões, especialmente no malfadado domingo de manhã, e não possuem a desenvoltura necessária pra lidar com a agressividade quase automobilística das figuras descritas no tópico anterior. Idosos, famílias inteiras com crianças pequenas, casais apaixonados que acham de bom tom ocuparem as duas faixas pra poderem ficar de mãos dadas.

Defenderei até o fim dos meus dias o absoluto direito de todos desfrutarem dos espaços públicos, mas a falta de compreensão da dinâmica da ciclovia enquanto ambiente altamente hostil gera uma imprevisibilidade absurda pra todos os envolvidos, promovendo um grau de periculosidade totalmente contornável.

3 – O shake de babaquice. Aqui, antes de explorar as minucias dessa classe odiosa, um breve comentário. Nas duas tipologias anteriores o fator estresse se dá por conta de uma percepção muito particular de mundo, que considera que eu fui criado pelo Homem da CIPA e tenho nóia de segurança. Partindo desse pressuposto, o que causa incômodo não são as pessoas em si, mas os vários fatores de risco que são criados entre os dois grupos. Como deixei bem claro, me solidarizo com suas necessidades, mas continuo achando que falta senso de autopreservação.

Os shakes de babaquice não. Esse tipo de gente eu me permito ter ojeriza sem “mas”. Essas são pessoas com cara de quem acabou de sair de uma loja de grife esportiva, gente que você encontraria num bar top bebendo um drink tosco que mais parece uma instalação artística, discutindo como as criptomoedas são o futuro. O mix absoluto das coisas mais cafonas e imbecis que eu consigo imaginar. Por isso shakes.

Aqui incluo o marombeiro de boné de equipe da Fórmula 1, uma parede de whey protein e creatina que faz questão de pedalar no meio da ciclovia, devagar e se filmando pra mostrar pra todo mundo que ele aprendeu a andar de bicicleta. A figura definitiva desse coletivo de babaquice, no entanto, extrapola todos os limites da falta de bom senso: o babaca da corridinha.

Na moral, nada nesse mundo é capaz de me fazer incorporar o Pateta do Trânsito mais do que a santa criatura que acha de bom tom CORRER A PÉ na ciclovia. A calçada é larga, sempre tem espaço pra todo mundo, mas o ser humano é incapaz de botar um único neurônio pra atuar e compreender que, além de cagar com TODO O TRÂNSITO da ciclovia, e talvez por falta de espelhos em casa, não, NÃO ELE NÃO É UMA PORRA DUMA CALOI.  

Rogo pelo dia em que o bom-senso se espalhe pela cidade com a mesma velocidade que bares exatamente iguais abrem por todo lado e com a mesma eficiência que essas irrequietas criaturas – como diz o Inspetor Faustão – derramam sua cretinice pelas ciclofaixas caiçaras. Até lá, me permito continuar xingando baixinho. Pelo menos o suor drena o ódio.

quarta-feira, 8 de março de 2023

Excerto Sobre a Morte




"Foi guarida até na mais colérica tempestade". Foi isso que mandaram entalhar na minha lápide. Porra de guarida, parceiro! Sai fora! Pra ser bem sincero, eu nem lembro o que diabos é uma guarida. Minha família nunca teve uma gota de senso de humor. Passei minha vida toda dizendo que se eu tivesse que ter um epitáfio, seria algo bem tosco, tipo “morreu, mas passa bem" ou "foi comprar cigarro e não voltou mais".

É meio irônico que eles sempre tenham me levado tão à sério, apesar da minha insistente fanfarronice. Bom, agora isso pouco importa, já que eu morri e meu cadáver está sendo gentilmente decomposto por larvas e outros bichos num buraco qualquer. Infelizmente minha morte foi um tanto repentina e não deu tempo de avisar que, na real, eu queria ser cremado e que jogassem as minhas cinzas na casa do Timothée Chalamet. A pegadinha final, minha obra-prima contra o pior ator da história. Teria sido apoteótico.

Não tenho muito o que fazer quanto a isso, já que eu tô morto, então me resta a resignação. E olha, como eu tenho tempo pra ficar resignado. À título de curiosidade, não existe nem Paraíso e nem Inferno, só uma espécie de Purgatório que a galera por aqui chama de Cantinho. Caiu aqui, pimba, reset total em bondade ou maldade, tudo isso perde completamente o sentido.

É quase como aquelas vilas pra aposentados que aparecem em filmes estadunidenses, com o adendo de que o tempo não existe e absolutamente qualquer tipo de entretenimento voltado pra idosos ou crianças fica disponível pra uso. Conceito interessante, especialmente se considerar que idosos e crianças são basicamente a mesma coisa, mas com motivos diferentes pra chorar.

Como aqui o tempo não existe, em toda casa tem um modo dia e noite. Não tá afim de ficar vagando pra encontrar alguma atividade diferente? Tudo bem, entra na sua casa, ativa o modo noite e é isso, noite artificial. Aliás, uma coisa que não posso deixar de dizer sobre estar morto: artificial é uma palavra que passa constantemente pela cabeça de quem já tá nessa há mais tempo.

No começo essa disponibilidade infinita de vaudevilleandades deslumbra, e você quer provar tudo que a morte tem pra oferecer. O problema é que, se não existe tempo, você acaba descobrindo uma infinitude de não-tempo pra perceber o quanto a perfeição construída pra entreter os espíritos é estéril. É nesse ponto que eu me encontro. Entendeu agora porquê o Cantinho tá mais pra Purgatório?

Digo mais, não tô desmerecendo o trabalho que Deus e os outros funcionários tem e tiveram pra criar e manter tudo isso aqui rodando constantemente. A grande questão é que a vida é divertida exatamente pelo senso de finitude. Se você sabe que as coisas vão acabar, só resta aproveitar da melhor forma possível. Quando tudo é eterno, tudo também é limitadamente divertível. Uma dicotomia um tanto quanto irônica.

Por falar em Deus, o dito cujo é um tiozinho magrelo que, por falta de um termo melhor, eu chamo de bon vivant. Não, é isso mesmo, esse é o termo exato. O cara passa os dias dele andando de um lado pro outro, jogando conversa fora com as pessoas, tomando um vinhozinho, orientando os funcionários, uma incrível mistura de concierge, maître, gerente e hóspede.

Outro “dia” ele me pegou no meio da rua pra bater um papo, perguntar como ia a morte. Falei da ligeira angustia que vinha me acometendo. Quando terminei, ele começou a contar a história resumida dele e do Universo. Contou de como ele e a Morte surgiram do nada no meio do Universo e demoraram um tempão pra conseguir entender o que diabos estava acontecendo. Falou de “dar um start na Entropia” e deixar rolar, e sobre uma porta do lado de onde eles surgiram. Confesso que nessa hora já não entendia muito bem, mas a empolgação dele falando sobre a coisa toda era fascinante.

Depois duma história sobre o quanto era divertido observar a ação da Entropia, começou a falar das coisas que fazia e faz pra interagir com as formas de vida espalhadas pelo Universo. Quando os primeiros seres inteligentes começaram a surgir, ainda com formas de comunicação rudimentares, resolveu pregar uma grande pegadinha em todo mundo. O resultado foi a invenção de todos os outros deuses de todas as formas de vida do Universo só pra ver como a galera ia reagir, e saiu por aí distribuindo religiões cada vez mais aleatórias pela Existência. Um incrível golpe de fanfarronice.

Contou também que ele e a Morte, em certo ponto da Existência, iam começar a fazer visitas pra todo mundo no Universo, só de curtição, e inclusive “hoje” tinham combinado de encontrar um carinha que ia comemorar o próprio aniversário num boteco meia boca. Pareceu divertido. Deus me deu um tapão nas costas, se despediu e disse que, se precisasse de qualquer coisa, podia falar diretamente com ele. No fim das contas percebi que ele não tinha prestado atenção em uma única palavra que eu disse no início do nosso encontro, e minhas angústias e resignação permaneceram. Bom, quem mandou morrer, né? Acho que vou jogar mahjong.

quinta-feira, 2 de março de 2023

Deus e a Morte no Boteco Alegria




Era meu aniversário. Sozinho, longe de toda minha família, resolvi ir pra um bar. Beber em silêncio observando a profusão de histórias alheias à minha própria parecia apropriado pra comemorar mais um ano em direção ao destino irremediável. E qual não foi minha surpresa, ao entrar no bar, em vê-lo vazio, exceto por uma mesa. E ali, sentados como esculturas estranhas de um museu esquecido, Deus e a Morte bebendo juntos.

Não é exatamente o tipo de coisa que se vê todo dia, e é uma constatação óbvia, claro, mas às vezes o óbvio precisa ser dito. E bom, sinceramente eu não tinha muito mais o que dizer. Qualquer sentença não me parecia suficiente pra explicar essa visão. "Seu canalha! Finalmente você chegou. A gente tá te esperando aqui tem uma meia hora!", gritou Deus, olhando diretamente pra mim. De qualquer forma, não tinha mais ninguém além de nós três, ali, então era no mínimo improvável que aquele berro fosse pra outra pessoa.

Antes de continuar a narrar os eventos que transcorreram naquela noite, preciso esclarecer algumas coisas. Talvez você esteja se perguntando como um ferrado que nem eu poderia saber, de fato, que as duas figuras ali presentes eram Deus e a Morte. Pensando friamente nas possibilidades do que poderiam ser aquelas entidades, seria fácil deduzir que era uma pegadinha, afinal também é fácil pensar que entidades de poder absoluto e irrestrito têm coisas mais importantes pra fazer da vida(?) além de beber num bar vazio e fuleiro.

Fui em direção à mesa. "É estranho se eu perguntar se vocês são quem eu acho que vocês são?", indaguei, ainda ligeiramente atônito com aquela situação. "Talvez seja deselegante, mas não estranho. E a gente sabe que não é todo dia que se vê isso aqui", comentou a Morte, totalmente inexpressiva. É, eu sei, esperar expressão de uma caveira seria no mínimo bobagem.

O bar se chamava Boteco Alegria. Mesas de plástico com marcas desbotadas de cervejas esquecidas pela sociedade, estufa de salgados e conservas que poderiam ter sido feitos há 20 minutos ou 20 horas, exatamente o que um bar deveria ser: um lugar pra se beber bem, onde as pessoas respiram pesado e sofrem em silêncio.

"Eu sei exatamente o que você está pensando, rapaz, e sim, você tem razão, faz pouquíssimo sentido as duas entidades mais poderosas da existência estarem aqui, nessa pocilga, bebendo drinks medianos e comendo torresminho - que aliás está DIVINO!", disse Deus, gargalhando da própria piada autorreferente. "Contudo, estou aqui com a minha querida amiga por um motivo simples: seu aniversário". "E o que tem demais meu aniversário? Vocês não deviam estar, sei lá, comandando a Existência?". "Nós estamos, rapaz, se esqueceu da onipresença?", comentou a Morte, dando um trago no que parecia ser um Mojito. É verdade, esses dois podem fazer LITERALMENTE qualquer coisa. Muito estranho.

"O fato é que - continuou - uma vez na vida de cada ser mortal, a gente faz uma visita. Que graça teria dominar todos os aspectos do Universo se a gente não pudesse olhar de perto o que tá rolando? E antes que você pergunte, sim, nós sabemos TUDO que já aconteceu, está acontecendo ou vai acontecer. Mas a gente desliga a onisciência pra poder curtir um pouco. Sabe como é, a Eternidade passa mais rápido com um pouco de diversão". Não tenho certeza se eu tinha entendido, então só peguei uma cerveja e sentei na mesa.

"Então, eu posso fazer qualquer pergunta? Sobre qualquer coisa?", perguntei. "Pode! Mas talvez as respostas não sejam do seu agrado. Na verdade, a gente faz isso pra curtir com a pessoa que tá sendo visitada, e bom, nós temos todo o tempo do mundo. Você quer mesmo passar o seu aniversário de mortal fazendo perguntas pra gente?", respondeu Deus. Ele meio que tinha razão. Acho que não por ser Deus, exatamente, mas ele já deve ter "vivido" um monte de merda estranha, isso te faz querer aproveitar as coisas com um pouco menos de preocupação.

"Tudo bem se eu fizer só umas três perguntas? Depois, prometo, só bebida e... O que vocês preferirem. Não é como se eu tivesse vindo pro Alegria pra curtir muito". "Perfeito! E três é um bom número. A maioria das pessoas entra em uma pira de quererem saber sobre coisas complexas demais pra mente humana conceber, e aí a gente sempre acaba apagando a memória delas pra não sobrecarregar o cérebro. Sabe, quando o ser humano surgiu, a gente tentou fazer umas experiências pra tornar o cérebro aprimorável, mas é difícil modificar carne sem FERRAR com tudo, sabe?". Eu parei na palavra surgiu. Apesar de ser ateu, encontrar os dois automaticamente te faz pensar que talvez, de fato, Deus tenha criado tudo.

"Como assim, surgiu? Você não criou tudo?". "Eu não! Seria muito chato. Eu dei um start na Entropia, e ela cuidou do resto. O Universo é infinito, meu jovem, e teve tempo infinito pra chegar onde chegou. Inclusive, a única coisa que nenhum de nós dois sabe é: de onde a gente veio". Ouvir aquilo vindo da boca de Deus me causou um calafrio estranho. Puta merda, tinha alguma coisa pra além deles, comandando tudo?

"Mas então como diabos vocês existem? Qual é a primeira coisa que vocês lembram?". A Morte levantou a mão, coçou o crânio, deu mais um gole no possivelmente-um-mojito e disse "Tinha uma porta". "Uma porta?". "É, uma porta com uma placa escrita 'Não entre! Risco de vida'. A gente já testou nossa imortalidade de todas as formas possíveis, mas aquela porta tinha uma aura muito estranha. Então a gente a deixou lá". Eu devia ter ficado quieto.

Não é todo dia que se encontra mistério real. Na verdade, é até difícil de afirmar que, de fato, existe mistério. As coisas ditas misteriosas, em sua quase totalidade, são aquelas que ainda não entendemos completamente, então possivelmente, com o entendimento, o mistério morre e a coisa vira mais um livro na estante de uma livraria, daqueles com diagramação mediana e 12 exemplares vendidos. No fim, mistério é um conceito meio decadente.

Mas não aquilo. A informação de que existia uma porta em algum lugar da existência e Deus e a Morte se recusavam a entrar por causa de "vibe estranha" montou um condomínio inteiro na minha mente. "Então... Eu posso ver?". "Ver o quê, rapaz?". "Ué, a porta". "Pra quê? É só uma porta". "Claro que não! É a porta que vocês dois não entram. Porra, o que pode ter de tão absurdo atrás dela pra vocês não terem vontade de descobrir?". Silêncio. Os dois pararam alguns segundos, se entreolhando. "Ok, mas a gente precisa fazer duas paradas, antes. Você não sobreviveria à abstração da viagem, e como teletransporte é impossível, precisamos das coisas pra te proteger". "Proteger de quê?". "Você vai ver".

O grande lance de se deslocar de um ponto A pra um ponto B não é necessariamente o veículo utilizado, tem muito mais a ver com a percepção que se tem da viagem e da situação. De onde o viajante vem? Pra onde vai? Qual a motivação dele pra ir? Existe realmente motivação? Veja só, se você cruza a cidade pra, digamos, assistir um blockbuster qualquer no fim de semana, muito provavelmente sua percepção do tempo de ida vai ser quase nula, você mal percebe o mundo a sua volta, o que combina muito com o filme, que tal qual a viagem talvez seja esquecido em pouquíssimo tempo.

Agora se você faz o mesmo percurso pra ajudar uma pessoa amada em uma situação extremamente delicada, TUDO entre A e B vira um obstáculo profundamente irritante e cada detalhe ao redor do caminho é notado com o mais puro ódio automobilístico.

"A gente precisa pegar meu carro-conceito, é o único jeito de chegar no centro do Universo", disse Deus. "Não vai explicar pra ele, besta?". A Morte tinha jeito com as palavras, devia virar Youtuber. "Ah, é verdade! Então, carinha, carro-conceito. Como eu disse antes, não existe teletransporte. A gente tentou muito, mas lidar com mecânica quântica é muito irritante, então chegou uma hora que simplesmente desistimos e focamos em coisas mais tangíveis". "Deus, o Senhor sabe que é muito estranho te ouvir falar que tentou fazer uma coisa e não conseguiu, né? Ou que desistiu de alguma coisa", comentei, enquanto a gente andava em direção à sabe-se lá onde pra pegar o tal carro. "É, garoto, tô sabendo, mas saber TUDO também é um conceito um tanto abstrato, então meu foco é nas coisas que eu QUERO saber. E uma coisa que eu sei é como gerar energia infinita". Eu nem precisei fazer pergunta e tô descobrindo um tanto de coisa sobre a existência. Deus é um palestrinha de primeira.

"A questão central era que, pra gente poder se deslocar pelo Universo, precisávamos de uma forma de estabilizar um campo de energia infinita, porque só assim pra deslocar um corpo que, quanto mais rápido, mais massa teria. Obviamente precisaríamos também estabilizar a massa infinita, pra ela não expandir e ferrar com tudo. Então a gente criou um carro que é um campo magnético que consegue estabilizar a expansão infinita desse processo todo, independente de Gauss e teslas gerados. Carro-conceito!".

Sempre achei física chatíssimo, então só ri discretamente e fingi entusiasmo, enquanto a Morte soltava um "uhul" sarcástico. "Então, qual a velocidade máxima que ele atinge?". "3 trilhões de vezes a velocidade da luz". Uau. Só uau. "O que nos leva à segunda parada. Essa velocidade e o volume de informações geradas nesse deslocamento poderia LITERALMENTE explodir seu cérebro mortal, então a gente precisa passar na loja do Lúcio pra pegar uns Óculos de Percepção Aumentada". "Lúcio? É tipo um... Cara normal? Vocês vão me levar pra pegar óculos com um cara normal?". "Não, seu desconectado". Graciosa, a Morte. "Ele era meu assistente, ajudou a gente a criar algumas coisas, mas cansou do lance de conduzir as almas dos mortos pro Cantinho e abriu uma loja de produtos originais". "Cantinho?". "Isso. É o que vocês chamam de pós-vida. Sem Paraíso, sem Inferno, só o Cantinho pra galera ficar de boa depois de morrer. Parecia adequado". Concordo, Cantinho parece bom.

"Chegamos". Esqueci de mencionar, toda a explicação sobre deslocamento, massa infinita, óculos, Lúcios e Cantinho rolou com a gente dentro do carro-conceito, indo até a loja. Também teve um papo de que ela fica num não-espaço, então meio que precisávamos não-ir. Essa parte eu não entendi, mas levou uns 15 minutos e lá estávamos. Outro detalhe interessante que passou ligeiramente desapercebido: o carro-conceito usava a carcaça de um Escort SW, aquele que parece uma Paraty velha, mas sem o charme decadente.

A loja parecia uma dessas adegas de rua, com neon demais, cartazes coloridos de produtos variados e uma tv de tubo passando um desses programas educativos da madrugada.
Era quase impossível entender alguma coisa naquele ambiente, totalmente condizente com os eventos que me levaram até aquele ponto. Imagina uma criança de uns 2 ou 3 anos tentando explicar um daqueles velhos "secos e molhados" onde se encontra sabonete, carne, desinfetante e pólvora com a mesma facilidade. Essa era a Loja do Lúcio.

O dito-cujo, por sua vez, era uma figura muito mais convencional do que se esperaria. Estatura mediana, calvo, meio redondo, a pele ligeiramente acinzentada. Não duvidaria se me dissessem que ele não saía da loja há meses.
"Impressionante como eu saí desse ramo e vocês não conseguem não depender de mim", disse Lúcio, sem nem olhar na nossa direção. "Fala, querido! Sempre radiante, como o nascer do Sol no início do inverno", retrucou a Morte, no seu já estabelecido tom sarcástico. "Eu sei o que vocês querem. Vai demorar uns minutos pra regular, e o rapaz vai ter que responder umas perguntas desconfortáveis, pra funcionar". Uau, que surpresa, mais desconforto. Eu devia ter continuado bebendo.

"Rapaz, senta naquela cadeira, ali, veste esses óculos e não grita". "O quê? Como assim, não gritar, são só ócuAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAH". Gritei, desculpa, não era minha intenção. Mas veja só, no exato momento em que as lentes se alinharam aos meus olhos, tive a sensação de ser arrancado da realidade com a velocidade de mil galgos. Uma louca profusão de luzes e sons começou a girar em volta da minha cabeça, sentia como se tivesse acabado de tomar uma dose dupla de absinto com LSD e suco de cranberry, e como eu poderia fazer essa comparação de forma tão precisa e convicta não interessa.

Aos poucos os estímulos foram diminuindo e a paz voltou a reinar ao meu redor. Quando tudo cessou, me encontrava numa sala preta infinita, sem fontes de luz ou paredes, no entanto conseguia me enxergar com total clareza. "Desculpa, rapaz, mas se eu tivesse explicado o que ia acontecer, talvez você não tivesse topado. Mas até que se saiu bem, já vi gente vomitar 15 cores diferentes assim que a conexão começa". Um misto de curiosidade e repulsa me veio, ao ouvir essa frase. Tá aí uma coisa que espero nunca ver na vida.

A voz do Lúcio vinha exatamente da mesma direção em que ele estava na loja, e aí comecei a entender mais ou menos o que tava rolando. "Isso são tipo óculos de realidade virtual?". "Isso, mas o que você tá vendo é um espaço ligado diretamente na sua psique. É isso que garante a não explosão mental. Ele vai varrer toda a sua estrutura mental, sua memória, id, ego, superego e o que mais for possível, e aí entra a parte das perguntas desconfortáveis. Eu pergunto, você responde, simples. E quanto mais próximas da verdade elas forem, mais protegida fica sua mente na viagem até a Porta". Obrigado, Lúcio, por impedir a obliteração total do meu eu.

"Você é feliz?". Porra, Lúcio, acabei de te agradecer por tentar proteger a minha mente, agora vêm atacando a minha alma? Que golpe baixo. "Eu não faço ideia. Felicidade é um conceito muito estranho. Bom, vou dizer o seguinte. Acho que ninguém é feliz. Acho que nem a vida é exatamente sobre ser feliz. Gosto de pensar que a vida é mais sobre fazer as coisas em busca de paz de espírito, e dormir sem peso na consciência. Tentar fazer o melhor que a gente pode pra quem tá à nossa volta e, consequentemente, pra nós mesmos. Lutar por um mundo mais justo pra todos. Sei lá, acho que é isso".

"Hmm, boa resposta, garoto. Ok, correspondência de 96% com a os parâmetros mentais. Vamos pra próxima?".
Deus fez uma rápida interrupção. "Lúcio, tem um cafezinho? E garoto, começou bem. Gostei da sua visão sobre felicidade. A Morte discordaria, mas ela já cochilou aqui no canto". Lúcio entregou uma xícara de café pra Deus, e trouxe uma pra mim, também. Apesar de estar com os óculos, conseguia ver a xícara perfeitamente. Tecnologia de ponta, a do Lúcio. "Podemos continuar, garoto? São só mais duas perguntas". "Ok, digo bora".

"Muito bom. Então, segunda pergunta: o que é o amor?". Ai. Só ai. Essa pergunta suscitou um levante rápido de muitas memórias. Me peguei pensando em uma, em específico. Uma paixão e admiração profundas por uma mulher com quem eu nunca me relacionei. Depois, uma lembrança de infância, andando de bicicleta com os meus pais, à beira-mar, na cidade onde eu cresci. Por último, uma festa surpresa de aniversário que um grupo de amigos fez pra mim num período difícil. Todas essas memórias materializavam, em alguma medida, o que eu pensava sobre amor. Não penso que seja só isso, e tenho dúvidas sobre a capacidade de qualquer um em concluir qualquer coisa concreta sobre algo tão abstrato e multifacetado quanto o amor. Tentei explicar tudo isso da melhor forma possível pro Lúcio, que olhou pra mim com os olhos ligeiramente marejados. "Correspondência de 100%, rapaz. Isso foi... Intenso. Acho que eu preciso de uma pausa".

A Morte acordou num susto, quase caiu da cadeira e deu um socão no braço de Deus. Por um milésimo de segundo, as estruturas do Universo se fragilizaram, e foi tempo o bastante pra que, à 15 anos-luz dali, em outro planeta, de outra galáxia, uma nova espécie surgisse. Infelizmente pra eles seu processo evolutivo era rápido demais, e no que pareceram alguns segundos na Terra, eons de civilização se criaram e ruíram, e ninguém sequer soube da existência deles. Uma pena. Bom, isso pouco importa pra história, continuemos.

"Podemos retomar, rapaz? Última etapa do processo". "Por favor, quero acabar logo com isso". A Morte, ainda se recompondo do cochilo carregado de tédio, levantou e andou em direção a porta da loja. "Vou ali no não-posto comprar um refrigerante e um salgado, alguém quer alguma coisa?". "Eu aceito um chiclete", disse o Lúcio. "Quero igual o que você quiser", comentou Deus. "E eu só quero que acabe logo". "Prossigamos, então. Última pergunta: como foi sua vida até agora?". E eu achando que não podia ficar mais intenso. De certa forma consigo entender que o aparelho precisa perscrutar os mais profundos cantinhos da minha caixola, mas os dois podiam ter me avisado de como seria o processo.

Não que eu tenha problema em falar sobre a minha vida, exatamente, mas é um pouco estranho se abrir pra estranhos. Ah, ok, os estranhos são duas entidades oniscientes que moldaram praticamente tudo que existe, mas ainda assim soa ligeiramente invasivo. Bom, não importa. Quero descobrir logo qual é a da maldita porta.

"Não posso dizer que foi ruim. Longe disso, tenho certeza que tive todas as oportunidades que qualquer ser humano deveria ter pra viver com dignidade. Amei, fui amado, conheci lugares, aprendi todo tipo de coisa que estivesse ao meu alcance. Mas também vivi o luto muitas vezes. Mais do que eu acho que alguém deveria. Minha família perdeu muita gente, e nunca fica mais fácil. Tento honrar a memória dessas pessoas o melhor que eu posso. Não sei se tô conseguindo, mas nunca vou deixar de tentar. É isso". "Muito bem. Correspondência de 98%. Certo, garoto, você tá pronto". Finalmente, Lúcio! Finalmente.

O sino da porta tocou e a Morte apareceu, segurando duas sacolinhas e beliscando um chocolate. "Acabou essa presepada? A gente já pode ir?". Quanto azedume. Mas convenhamos, quando seu trabalho é ficar de um lado pro outro lidando com o fim, parece razoável ser assim.
Deus pulou da cadeira, me abraçou e virou pro Lúcio. "Os O.P.A. estão prontos? Tô ansioso pra viagem". "Deus, por favor, não chama de O.P.A. Parece que eu faço bugigangas de carnaval, não dispositivos que os humanos vão levar milênios pra descobrir. E sim, os ÓCULOS DE PERCEPÇÃO AUMENTADA estão prontos. Agora vocês dois saiam daqui que eu quero conversar com o garoto". Essa dinâmica entre os três é incrível. Alguém devia escrever sobre eles.

Enfim, Lúcio veio na minha direção com um olhar cansado, de quem só queria se aposentar e beber daiquiris em uma praia aleatória do Espírito Santo pro resto da Eternidade. "Escuta, garoto. Eu já fui mortal como você, e a Morte me deu essa 'dádiva' pra trabalhar com ela e fazer tudo que eu quisesse. Por um tempo foi bom, e eu aproveitei muito minha imortalidade. Mas às vezes me pego pensando em tudo que eu perdi e que deixei de viver em função da minha sanha infinita por criar. Ver suas memórias e sua mente me fez lembrar do quanto eu preciso dar um tempo disso aqui. Aproveita seu passeio, mas não se deixa levar pela infinitude do Universo. Porque, no final, ele é infinitamente vazio. Pega os óculos e vão na boa". "Valeu, Lúcio. Espero poder te encontrar de novo. Quem sabe da próxima vez que eu for num bar não é você que tá lá?". "Eu não frequento bares. Prefiro beber em casa". O homem é uma verdadeira montanha-russa de sentimentos.

"Vambora? A viagem não vai ser tão longa, mas faz tempo que a gente não dá uma rodada pelo espaço". Era visível a alegria de Deus por poder dirigir pelo espaço. Passamos no não-posto pra encher o tanque e comprar mais uns petiscos pra viagem. "A gente não vai levar mais do que meia hora até a porta, rapaz, pra quê tanta coisa?". "Ah, eu queria deixar umas coisinhas pra vocês, como agradecimento por me trazerem. Eu não posso dizer que eu entendi totalmente as coisas que aconteceram até agora, mas nem acho que eu preciso. Tô me divertindo". A Morte esboçou algo próximo a um sorriso, o que parecia impossível com aquele humor e o fato de a cabeça dela não ter tecido muscular, mas isso era só um detalhe.

Entramos no carro e nos ajeitamos. Deus falou, com um ânimo quase pueril, "rapaz, tem som do bom no seu celular? A gente tem acesso a todas as músicas do Universo, mas queria ver o que você ouve. Gosto da surpresa de conhecer o que as pessoas estão ouvindo". "Opa, tenho sim, montei hoje uma playlist nova. Tem de tudo um pouco: rock contemporâneo, jazz experimental japonês, samba, rap...". Deus pegou meu telefone e plugou no cabo auxiliar. Fazia anos que eu não via um desses, mas lembrei que, apesar de estarmos no carro-conceito, de certa forma ele ainda era um Escort SW.

"Vamos! Rapaz, põe os O.P.A., a coisa vai começar a ficar maluca". Desculpa, Lúcio, mas Deus não vai seguir seu pedido. E não acho que se eu falar alguma coisa ele vai parar, então deixo registrado meu protesto. Coloquei os óculos, Morte botou uma música pra tocar ("Prison Song", do System of a Down. Boa escolha, Morte) e Deus deu partida no carro.

Agora vem a parte interessante. O carro quase não fazia barulho, e a impressão que eu tive, à medida que ele andava, é a de que se construía uma pista etérea debaixo dos pneus. Isso significa, em tese, que não estávamos voando, mas dirigindo por uma estrada feita de algo entre sonhos e nada. Meio como a vida. E assim, seguimos. Como dito antes, o carro atingia velocidades trilhões de vezes maiores que a da luz. Então, o que se vê quando tudo ao redor parece estático? E se até a luz parece estática, como se poderia dizer que é possível ver?

É aí que entram os Óculos de Percepção Aumentada. Lúcio explicou, pouco antes de virmos embora, que eles pareiam o que de fato acontece com a nossa capacidade de perceber o acontecimento. Então, com os óculos, conseguia observar tudo que acontecia no trajeto como se estivéssemos passeando vagarosamente por uma estradinha vicinal idílica e pacífica do interior de Minas Gerais. E não só isso, eu conseguia reverter, adiantar e manipular as imagens e o som que eu percebia da forma que achasse conveniente. Não sou capaz de descrever o que eu vi, só posso dizer que não parece nem um pouco com as imagens de maior resolução que o James Webb é capaz de captar. Talvez a humanidade realmente ainda não esteja pronta pro espaço.

Deus começou a desacelerar. Aos poucos vi os indicadores de pareamento dos óculos diminuírem, até que zeraram. Estávamos nos deslocando tranquilamente em meio a asteroides. Por todos os lados, dezenas de milhares de galáxias pintavam o vazio. O carro parou. Bem em frente, um estacionamento com uma porta no meio. Sem prédio, sem nada. Uma placa inerte de asfalto com um retângulo de madeira perfeitamente emoldurado. "Chegamos". "Como assim? Isso não faz o menor sentido!".

A Morte se virou, olhou pra mim com ar de sarcasmo e comentou "A gente avisou: era bizarro e provavelmente não faria sentido pra você. E vamos logo, nosso tempo tá acabando". "Nossa, verdade! Tinha esquecido de te falar, garoto. A gente só tem 8 horas juntos, no total. A gente fez essa regra pra não se apegar demais com os visitados. Ainda temos 15 minutos, vamos logo". Saímos do carro e fomos em direção à porta. Por algum motivo, havia atmosfera no estacionamento. E por algum outro motivo, havia um estacionamento ali. Tentei aceitar aquilo da melhor forma que um ser humano comum poderia: suando muito e sentindo uma profunda ansiedade.

Chegamos na porta. Deus a abriu e nós entramos. Era uma sala em espiral. Não sei exatamente como explicar, mas imagina a concha de um náutilo com várias portas distribuídas pela parede, que continua infinitamente e de alguma forma você consegue ver tudo. No centro da estreita infinitude daquele ambiente, um aquário com um peixe-beta. A Morte sacou um relógio de bolso, bateu com a ponta do dedo no vidro, olhou pra nós e suspirou. "É, realmente é hora de ir embora". Um flash muito forte me deixou completamente desnorteado, incapacitado, cego. Não levou muito tempo pros meus sentidos retornarem ao estado relativamente normal, e logo me dei conta de que estava na sala de casa. Sem Deus, sem Morte, só eu e o silêncio. Mas como? Não é possível que aquilo tudo fosse um sonho. Pra onde iam aquelas portas? Pra quê tantas portas? E que porra um peixe-beta fazia no centro de tudo? E além disso, o que diabos um ESTACIONAMENTO COM UMA PORTA fazem flutuando no meio do Universo?

Levantei, cambaleando um pouco por causa da desorientação, com mais perguntas do que respostas, fui ao banheiro e o espelho entregou um desconforto intenso. Me via no reflexo, mas aquele não era eu. Ou melhor, parece que de um dia pro outro tinha me tornado capaz de perceber todas as marcas que sempre estiveram ali, escrevendo aos poucos no meu rosto a história de uma vida conturbada, por vezes feliz, em alguns momentos confusa e, mesmo assim, minha.

Talvez aquilo fosse pra lembrar que a única coisa que eu realmente carregaria era a história. Parei por alguns segundos pra avaliar meu rosto-crônica e me senti abraçado pelo passado, enquanto o presente que olhava pra mim no reflexo dizia que as coisas dali pra frente não seriam necessariamente mais fáceis, mas pra quem possivelmente se enfiou numa jornada cósmica com Deus e a Morte depois de uma noite de bebedeira, era certo que qualquer novidade seria acolhida com serenidade. Voltei pra sala e um relógio de bolso tiquetaqueava na mesa de centro. A Morte estava certa, eu devia voltar pra terapia. Que belo presente de aniversário.

quarta-feira, 1 de março de 2023

Crônica de Sol e Maresia




Levantar por volta das 7h, tomar um café observando a cidade acordar, sair pra andar na beira da praia, parar pra beber uma água de coco trincando de gelada, encontrar alguns amigos e estender o momento com risos, cervejas e Sol. Um belo dia de verão, né não?

Discordo em gênero, número e grau. Não me levem a mal, por favor! Certamente não foi um crime premeditado, mas essa linda e ensolarada estação me leva aos limites mais estranhos do descontentamento físico e mental. Cada momento debaixo da estarrecedora luminosidade solar é um ataque sorrateiro à minha dignidade, que se desmancha em suor excessivo, olhos cerrados e cansaço. Muito cansaço.

Não tenho uma explicação pra isso. Desde o momento mais distante que minha mediana memória consegue remontar da própria existência, meu corpo se sente instintivamente mais e mais aviltado à medida que os graus sobem.

Lembro de, ainda criança, arrastado pra praia sem muita possibilidade de argumentação, me confinar aos poucos metros quadrados de sombra e praticar um brincar descontente com o horrível tato de areia e maresia na pele. Vez ou outra, quando com alguma companhia, me punha inconformado a lidar com o desprazer daquela situação, correndo um pouquinho, jogando uma bola ou entrando naquele banheirão horrível de água salgada que os antigos já chamavam de mar. Os sacrifícios que a gente não faz pra ver um sorriso no rosto de quem amamos.

Nesse sentido, a vida adulta tem uma linda benesse: o advento da birita. Óbvio, a tecnologia pode proporcionar conforto físico, seja na forma que for, mas ter que lidar com o verão fica exponencialmente mais fácil bebendo uma caipirinha ou uma cerveja agressivamente gelada, eliminando o calor de dentro pra fora tal qual o soco de um iceberg. Coisa linda.

Fato é, acho que eu gostaria de ser dessas pessoas que ficam excessivamente felizes no verão, especialmente porque parece felicidade genuína. Tudo parece mais simples e colorido. Bom, não sou, e não gosto de "e se..". Algumas coisas são como são. E o verão é horrível. Discorda? Tudo bem. Todo mundo tem o direito de estar errado.