Escrevo esse texto
para falar sobre um tema muito difícil, não porque tenho um problema em tratar
dele, mas por tudo que uma sociedade fundada em preceitos cristãos e que tem
parte majoritária das pessoas professando algum tipo de fé e exercendo sua
espiritualidade acredita sobre isso. Em nível pessoal, é difícil por um motivo
relativamente simples, mas exatamente por todas essas crenças serem fundantes
do pensamento “ocidental”, camadas de complexidade se sobrepõem ao tema.
Você já deve
imaginar, mas me refiro à morte. Qual é essa dificuldade, afinal? Bom, sendo
ateu, acho que não há dúvida sobre eu não acreditar que exista algo depois da
morte. Se não me falha a memória já tratei da questão em alguma crônica no
passado, possivelmente para falar que acredito que é exatamente aí que se
encontra a preciosidade da vida, na sua singularidade. O que sempre me deixa
reticente diante da questão é que, apesar de ser, no meu entendimento, uma
visão positiva, ela raramente condiz com o que pessoas pensam sobre isso, e na
busca de tentar ser sensível ao lidar com momentos de perda e luto, uma
pergunta me acompanha desde a minha primeira recordação sobre vivenciar a morte
de alguém: como ser de fato acolhedor quando sua percepção sobre o fim pode não
soar reconfortante?
Ao longo dos meus 30
anos vivenciei um número considerável de lutos. O mais recente deles é pelo meu
avô, que nos deixou no dia 31 de março desse estranho ano de 2025,
coincidentemente o dia que nomeia um dos bairros dessa Cubatão que ele tanto
amou.
Tenho, desde então,
tentado elaborar os sentimentos e o tema em si, o luto. Há uma frase no livro
mais recente do Jefferson Tenório, “De Onde Eles Vêm”, que diz que o luto é
como uma amputação: um pedaço de você é arrancado e não tem essa de substituir.
Pode até ser que uma prótese seja posta no lugar e cumpra, de alguma forma, a
mesma função, mas o vazio daquela ausência é eterno. A questão é que a gente se
adapta. Vai ser difícil, a princípio, e vai doer por muito tempo, mas cada dia
um pouco menos.
Somos levados a
acreditar que só o que conta são grandes feitos, a vida majestosa, e passamos
nossa existência aflitos por não sermos os protagonistas de um épico. Mas a
vida não é isso. Nunca foi, nem daqueles que, entre muitas aspas, nos olham de
um suposto topo. Acho que talvez venha daí uma das grandes aflições sobre
pensar e lidar com a morte: confrontar a ideia de que sua vida ou a de quem
você ama não tenha o significado ou impacto que acreditamos que deveria ter.
Mas será mesmo?
Para falar sobre
isso, penso na vida do meu avô. Cresci ouvindo dezenas de histórias sobre ele.
A mais emblemática talvez tenha sido sua recusa ao convite de jogar no Santos,
já que sempre foi corinthiano, o que abriu espaço pra que o time convidasse um dos
maiores jogadores de sua história, o Pepe, pra ocupar a posição que seria dele.
Seu Nico não se
tornou um jogador mundialmente renomado, mas viveu e vive como um dos maiores
na memória daqueles que o viram jogar, assim como na de dezenas de pessoas que
aprenderam com ele o ofício da marcenaria durante o período que ensinou na
extinta Fábrica da Comunidade e na de tantas outras que cruzaram seus caminhos
com os dele. Pra mim bastaria dizer que foi um avô gentil e afetuoso. Isso já
não é grandeza?
Fiquei - e continuo
- triste por sua morte, bem como pela de todos os familiares e pessoas amadas
das quais tive que me despedir irrevogavelmente ao longo da vida, mas a
felicidade de tê-los conhecido e a singularidade de suas existências é tão
maior que não consigo me apegar à dor. Retornando à questão do início, sobre
como ser acolhedor, acredito não ter uma resposta muito concreta.
Tentar sempre que
possível estar presente é um ótimo começo. Subestimamos - e muito - a
importância da presença. Quanto ao que dizer, bom, eis uma resposta muito mais
difícil. Essas são palavras que provavelmente vou continuar perseguindo pelo
resto da vida. Se algum dia as encontrar ficarei feliz em compartilhar. No meio
tempo sigo me fazendo presente.
Nesse malfadado dia
31, durante o velório, vendo a serra e a cidade encobertas do prenúncio de
temporal, só conseguia pensar que chorava a Rainha das Serras por um de seus
filhos ilustres. Entre o choro e o riso das pessoas, todos os afetos ali
presentes celebravam a vida de Seu Nico. Torço pra que todos os lutos encontrem
esse afago.