terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

Gostava Mais de IA Quando Era Só Aquele Moleque Robô Chato

 


Um tempo atrás, navegando naquele cemitério de bom senso que chamam de LinkedIn, vi o anúncio de um curso da plataforma de ensino própria da rede social sobre produção de prompts pra IA assistente que faz parte dos diversos programas do pacote Office. Em outro post um grupo de pessoas debatia as falhas e virtudes de IAs generativas e sua capacidade de produzir imagens. A exposição à profundidade de um pires das discussões que rolam por lá me causou uma coceira horrível, e o antídoto, óbvio, era vir azedar um pouquinho por essas bandas. Antes de prosseguir, deixa eu tirar logo isso da frente: eu não sou contra o uso de “inteligências artificiais”. Mais ou menos. Vamos à explicação.

Se você acompanha meu trabalho há algum tempo - ou leu meu livro - deve lembrar de “Será Se a Internet Foi Longe Demais”. Quando o escrevi, confesso que considerei, já naquele momento, inserir o tema inteligência artificial, também, mesmo que de forma discreta, já que não era o foco. Por fim decidi deixar de fora e, em algum momento, dedicar um espaço exclusivo pra ele.

A ideia de elaborar sobre os dois tópicos num mesmo espaço me ocorreu pelo paralelo que podemos traçar entre ambos os fenômenos diante da perspectiva elaborada anteriormente: grande ferramenta, responsabilidade mínima sobre seus impactos. A gente teve a chance de entender que a internet era só uma ferramenta e fomentar o uso sensato dela e perdeu esse bonde, então por que seria diferente com IAs?

Em tempos de volumes colossais de informação bombardeando ininterruptamente nossos cérebros biologicamente projetados pra pegar fruta no mato, as pessoas estão perdendo em ritmo acelerado a capacidade crítica e de síntese de ideias - como têm demonstrado o número crescente de pesquisas sobre o tema - coisas que demandam tempo e paciência pra que se faça reflexões que considerem de verdade os diferentes aspectos e dimensões do objeto analisado, e simplesmente se entregando pros resultados toscos, rasos e muitas vezes errados que saem do ChatGPT e seus congêneres.

Pra mim isso não parece praticidade, mas o rendimento total da autonomia do pensar. E isso é sintomático do capitalismo: estamos tão cansados o tempo todo que até elaborar uma ideia mais complexa se tornou um estorvo, e o novo produto revolucionário a ser vendido (já que usá-las não só não é gratuito como, assim como em redes sociais, nossos dados são a moeda de troca) são os algoritmos que te poupam o tempo de ser um humano comum que lida com essa chaticezinha que é pensar. Junte isso a empresas bilionárias monopolizando tecnologias e direcionando a percepção acerca delas e pronto, tá feito o estrago.

Vou dar um exemplo prático do meu ponto. Estou há semanas escrevendo essa crônica. Pra falar a verdade não lembro a última vez que escrevi um texto numa tacada só, ou em alguns poucos dias. Geralmente fico ruminando o tópico, esqueço dele, relembro, escrevo mais meia dúzia de linhas, leio um pouco sobre o tema e então, depois de muito elaborar sobre o que eu penso sobre o assunto, começo realmente a organizar a ideia.

Se eu não passasse por isso escrevendo, ainda seria escrever? Sem falsa modéstia de “na minha humilde opinião”, aqui, vou ser direto e reto: não. Afirmo categoricamente que não. Se você se pergunta o porquê, a resposta é relativamente simples: criar algo não é só juntar um monte de partes através de técnica. O que diferencia um texto que eu ou qualquer outra pessoa produza de algo gerado por um algoritmo é a subjetividade - sempre ela.

Assim como quem escreve, a máquina é capaz de reunir um monte de referências e estruturar um texto a partir dos dados mais relevantes, obviamente muito mais rápido que qualquer ser humano, mas isso só poderia de fato ser considerado conhecimento ou arte passando por todos os filtros da subjetividade de uma pessoa. Hoje - no dia em que termino esse texto, no caso - vi um vídeo do mestre maior da animação, Hayao Miyazaki, criticando duramente os diretores de uma empresa de IA generativa que cria animações, dizendo que achava o resultado daquilo um insulto à vida.

O cerne dessa reflexão é exatamente esse. Boas ou ruins - nesse momento específico sem entrar no mérito do que define qualidade - expressões artísticas de qualquer natureza só são possíveis por causa dessa maravilhosa capacidade humana de interiorizar, remoer e reconstruir à imagem do seu “eu” todo o universo de acontecimentos que nos moldaram. Quando entregamos esse processo ao computador, estamos abrindo mão também desse possibilidade de autoconstrução e terceirizando nossa humanidade.

Chegando aos finalmentes, reitero: não sou contra o uso de IAs. A questão é que seu uso deveria se limitar a operações que não demandam a tal humanidade. Cálculos ultra complexos, análises estatísticas e outros tantos processamentos de dados sem dúvida nenhuma se beneficiam muito dessa ferramenta. Temos no Brasil um exemplo incrível na figura da doutoranda em Astrofísica Roberta Duarte, que pesquisa o comportamento de buracos negros usando simulações produzidas por IA.

O que não pode escapar do nosso horizonte é colocar as coisas em deu devido lugar. Como disse nosso grande neurocientista Miguel Nicolelis em entrevista à Revista Fórum,

"A inteligência é algo restrito aos organismos porque ela é uma propriedade emergente da interação de seres vivos com o seu ambiente. A inteligência resulta no processo de seleção natural, é a forma pela qual os organismos conseguem sobreviver às vicissitudes de um ambiente em contínua modificação. O termo inteligência é inapropriado porque os sistemas computacionais não preenchem a definição clássica de inteligência, nenhuma delas. E ela não é artificial porque ela é criada por seres humanos, ela não vem do nada, não cai do céu. A inteligência que existe nessa área é a inteligência dos programadores e das pessoas que geram esses sistemas".

Desde as primeiras representação de sistemas computacionais na cultura existe o medo de que um supercomputador dotado de algum nível de consciência tente destruir a humanidade ou robôs dotados de capacidades comportamentais quase indistinguíveis de seres humanos. Acho um tanto óbvio afirmar que meio que só depende da gente, enquanto sociedade, delimitar o que máquinas podem ou não fazer. Dito isso, preciso confessar: preferia falar de IA quando tudo que a gente lembrava ao ouvir isso era daquele moleque robô chato pra cacete num filme desnecessariamente longo do Spielberg. Voltemos a tempos mais simples.

 

Até a próxima.

Nenhum comentário:

Postar um comentário