Se tem uma coisa que eu posso chamar de falha de caráter enquanto escritor e amante de literatura é minha consciente displicência com a leitura de clássicos. Claro que li alguns dos mais conhecidos, especialmente durante o ensino médio, como meu amado “A Divina Comédia”, que ainda figura entre meus livros favoritos, mas sempre tive uma certa dificuldade de me conectar ou me atrair pelas grandes obras, nacionais ou não.
Essa conexão é, pra
mim, o parâmetro mais importante de uma leitura. Por melhor escrito,
tecnicamente apurado e com temáticas bem desenvolvidas e aprofundadas que seja,
se o livro não dialogar em algum nível com o leitor, por mais que se insista, é
grande a chance de a leitura ser lenta, arrastada e pouco proveitosa.
Claro que uma pessoa
com hábito de leitura consegue contornar essas questões com alguma destreza,
mas pra quem ainda está construindo essa relação, se forçar na leitura de uma
obra com a qual a pessoa não se conecta costuma ter um efeito negativo. Confia
em mim, tá tudo bem parar um livro que você achou chato no meio, o mais
importante é não achar que a leitura “tem que” alguma coisa, ou que precisa ser
mais uma coisa medida, registrada e quantificada como muito imbecil que gosta
de incentivar essa nóia por produtividade costuma espalhar por aí. Leitura tem
que ser prazerosa.
Agora, encerrando
mais um capítulo da minha tradição de escrever introduções excessivamente
longas, por que diabos entrei nessa reflexão? A resposta, direta e reta, é por
causa dos dois últimos livros que li, “Sobre os Ossos dos Mortos” e “A
Vegetariana”, ambos escritos por autoras que ganharam o Nobel de Literatura.
Sobre ele falo um pouco mais pra frente, mas antes faço uma breve sinopse sobre
os livros e faço algumas considerações do porquê escrevi esse texto.
“Sobre os Ossos dos
Mortos”, da polonesa Olga Tokarczuk, narra os eventos ao redor de três
assassinatos, todos aparentemente resultado da ação de animais selvagens, sob a
perspectiva de Janina Dusheiko, professora aposentada e astróloga amadora -
fato que, confesso, me ejetou da leitura algumas vezes porque não consigo
deixar de achar astrologia uma grande bobajada - que vive nos arredores de uma
cidadezinha já bastante isolada.
Colocado de lado seu
inegável primor técnico, existe algo de previsível na narrativa, o que torna a
reviravolta final entre zero e pouco chocante. O desfecho, na verdade, soa como
a coisa mais provável por toda a história, e o que me prendeu na leitura foi
exatamente a expectativa pela quebra dessa previsibilidade, pela constatação de
que, de fato, haveria algo de sobrenatural operando naquele lugar. Gostei do
livro, ao contrário do que possa parecer, mas senti falta de algo que
provocasse um senso um pouco mais profundo de mistério e dúvida sobre as
possibilidades.
“A Vegetariana”,
assim como “Sobre os Ossos”, é impecável num sentido técnico, talvez até mais,
além de ter uma dinâmica incrível que me fez, mesmo pouco entusiasmado com a
narrativa, não conseguir parar de ler e terminá-lo em 3 dias. Nele, a coreana
Han Kang narra o desenrolar da vida de uma mulher que, após um pesadelo, decide
parar de ingerir quaisquer alimentos de origem animal, o que gera
desdobramentos radicais e inesperados em todos da sua família, explorando
questões como controle sobre o corpo e desejo feminino, culpa, saúde mental e
exploração animal.
O que me incomodou
na leitura, nesse caso, foi exatamente o que em tese me parece um artifício de
metalinguagem para abordar essas temáticas: a história é contada sob a
perspectiva do marido, do cunhado e da irmã da protagonista, meio que em
segunda pessoa - talvez, não sei, desculpem minha ignorância e esquecimento
nesse sentido, mas passei a última década não estudando teoria literária - o
que, ao menos pra mim, gerou um descolamento das situações e desdobramentos
subsequentes à revelação do vegetarianismo para a protagonista. Você simpatiza
com ela, mas mais porque as pessoas ao redor estão o tempo todo tentando
conduzir sua vida do que pela construção da personagem.
Reitero, essas
percepções são puramente pessoais e singulares da minha experiência com ambos
os livros, inclusive recomendo a leitura dos dois, até porque não recomendaria
algo que não me fizesse pensar por pelo menos alguns dias sobre, como é o caso,
mas é aí que, por fim, me vem a pergunta: o que premia, de fato, um prêmio? O
que faz um clássico ser um clássico? Não tenho dúvida de que o conhecimento
prévio de que ambos foram escritos por autoras premiadas com o Nobel teve um
impacto significativo na experiência. A expectativa de que estaria adentrando
narrativas superlativas movimenta conceitos altamente subjetivos sobre o que é
ser superlativo, e mesmo tendo alguma capacidade de entender o primor técnico
das obras, é impossível não ter uma certa decepção quando as expectativas não
são atendidas.
Coincidentemente
termino de escrever essa crônica pouco tempo depois de Fernanda Torres receber
o Globo de Ouro de Melhor Atriz em Filme de Drama por sua atuação em “Ainda
Estou Aqui”. Toda a discussão ao redor do filme à parte, me chamou a atenção a
fala dela, assim como a de Selton Mello em algumas entrevistas, de que já
estavam muito lisonjeados simplesmente por estarem ali, dividindo o espaço com
outros grandes nomes da indústria e levando o cinema brasileiro para o mundo, e
que isso por si só já era um grande prêmio.
Talvez meu ponto
aqui seja esse. Existe uma ânsia bizarra do mundo em colocar as coisas em
comparativo conflitivo e alguém precisa nos dizer qual o melhor. É claro, como
já coloquei em algum texto anterior, existem certos parâmetros objetivos pra se
estabelecer qualidade, mas quando esses parâmetros e a técnica se sobressaem ao
conteúdo, o que fica é uma linda casca vazia: se vê a beleza, mas ela é
preenchida por nada.
Voltando aos “Ossos
dos Mortos” e “A Vegetariana”, não posso afirmar que esse seja o caso. Existe
sim muito que se tirar de ambas as obras, mas ao refletir sobre elas sob a
perspectiva de terem grande relevância na consagração de suas autoras com o
Nobel de Literatura, me pergunto o que exatamente foi considerado pra além das
metáforas elusivas que são colocadas na justificativa pública no site do
Instituto Nobel - e que você pode conferir no link - pra estabelecer o
ganhador. Tenho muitos tópicos elencados pra responder essa pergunta - questões
geopolíticas, históricas, enfim, temas que demandariam muito mais que uma
crônica pra desenvolver - mas que ainda assim não parecem conseguir montar o
quadro completo.
É fato que ter seu
trabalho reconhecido é extremamente gratificante, mas esse reconhecimento não
passa necessariamente por uma premiação institucional, ou ao menos não deveria.
Em alguma dimensão, o prêmio talvez seja mais importante para quem premia e quem
observa do que para o próprio premiado, por alguns dos motivos citados acima.
Não é meu objetivo aqui chegar a uma conclusão nem dizer o que deveria ou não
guiar suas escolhas para o que você consome, é só te dar aquela cutucada pra
estar sempre aberto a refletir o motivo de fazer as escolhas que você faz e
colocá-las sob perspectiva, além de, claro, não se fechar para o novo, seja
contemporâneo ou clássico.
Dito isso, não se
engane, também escrevi esse texto pra mim mesmo, como um lembrete pessoal de
que preciso me manter atento pra não cair no erro de deixar passar obras que
podem enriquecer meu próprio fazer literário. Infelizmente não posso passar
cada segundo do meu dia lendo, então sigo nessa missão no ritmo do possível e
não do desejado.
Até a próxima.
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