Estou, no momento em que
inicio esse texto, sentado sozinho na mesa de um restaurante. É segunda e
acabei de sair da sessão das 19 de Furiosa, em que mais uma vez George Miller
opera acima dos 142% pra produzir algo grandiosamente minimalista. Como eu amo
Mad Max. Apesar disso, meu foco aqui vai todo pra parte de estar sozinho.
Me lembro de um ritual
razoavelmente comum nos meus anos mantiqueiros. Morar sozinho não cria,
necessariamente, solidão. No tempo da graduação raramente ficava
desacompanhado, e nossa galera amava passar tempo junta. Na verdade, era mais
provável que estivesse com outras pessoas do que só, e não apenas no sentido
físico, pois havia um senso genuíno de coletividade e apoio entre nós. Nos fins
de semana, no entanto, era quase inevitável que não ficasse ninguém conhecido
na cidade, até porque pouca gente, como eu, morava consideravelmente longe. Foi
aí que o hábito surgiu.
Chegava a noite, eu botava
uma roupa quente, pegava meu falecido iPod - companheiro inseparável de todas
as horas - e caminhava ouvindo música até um restaurante japonês que fica
escondido no primeiro andar de um prédio no Capivari, quase alheio à profusão
de lugares genéricos que tomam conta do centro turístico jordanense. Subia as
escadas, sentava numa mesa na sacada e comia observando o movimento na rua.
Levou algum tempo até que o dono do restaurante não estranhasse minhas
refeições solitárias, e por um período considerável, assim que eu chegava,
perguntava se era “mesa só pra um, mesmo”.
Ao longo dos anos acabei
estendendo essa rotina pra outros lugares da cidade, que se tornou ela mesma
minha companhia. Vi muita gente chegar e ir embora, e no fim a solidão era
sempre inevitável, mesmo que temporária (para mais sobre esse tempo, leia “O Som
das Araucárias”). Quando chegou a minha vez de deixar a serra, um tanto dela
veio comigo. Nos curtos intervalos que fiquei na Baixada mantive o hábito de
sair sozinho, e o costume instaura a normalidade. Ao longo desse tempo a
solitude me propiciou entrar em contato com aspectos de mim mesmo que por muito
tempo ignorei, e aprendi a ficar em paz com a minha própria companhia. Eis que
chega 2020.
A transição entre as décadas
gerou uma ruptura nunca antes vista na normalidade. Pra além do impacto
objetivo de milhões de mortes que a pandemia causou, se estabeleceu desde então
um senso geral de que existe alguma coisa que quebrou e não se conserta mais,
ou que ao menos se arrasta desde então sem uma remediação completa. No meio
disso tudo, minha relação com o estar só também mudou.
Uma pandemia, um
relacionamento e um burnout depois, me vi num estado de profunda ambiguidade.
Momentos de crise, em maior ou menor escala, sempre deixam suas impressões
espalhadas por aí. E, sendo como sou, como poderia querer facilitar a situação?
Se de alguma forma sinto o peso da solidão, confesso que cada vez mais as
pessoas soam irritantes e/ou desinteressantes, e não parece um esforço muito
grande manter certa distância. Eu que lute com a minha dialética autoimposta.
Valter Hugo Mãe, escritor
angolano dos melhores que eu já tive o prazer de ler, abre seu magistral “O
Filho de Mil Homens” narrando a vida de um homem solitário. Cito aqui algumas
de suas palavras:
“Estava sozinho, os seus amores
haviam falhado e sentia que tudo lhe faltava pela metade, como se tivesse
apenas metade dos olhos, metade do peito e metade das pernas, metade da casa e
dos talheres, metade dos dias, metade das palavras para se explicar às pessoas.
Via-se metade ao espelho e
achava tudo demasiado breve, precipitado, como se as coisas lhe fugissem, a
esconderem-se para evitar a sua companhia. Via-se metade ao espelho porque se
via sem mais ninguém, carregado de ausências e de silêncios como os precipícios
ou poços fundos. Para dentro do homem era um sem fim, e pouco ou nada do que
continha lhe servia de felicidade. Para dentro do homem o homem caía”.
O tempo aos poucos dilui o
limiar entre a solitude e a solidão, e fica cada vez mais difícil saber quando
é bom e ou não estar só. Chegando aos 30 em poucas semanas me peguei
ligeiramente aflito pela questão. Talvez a leitura recente do livro tenha remexido
coisas nos compartimentos internos desse estranho e excessivamente movimentado
ambiente que chamo de minha mente, mas ao mesmo tempo, estando numa fase da
vida em que finalmente detenho certo nível de autonomia, começo de novo a
enxergar no meu tempo só o momento para me conectar comigo mesmo, sem deixar de
refletir sobre como lidar de forma menos tensa com os outros. Escrever é um
aspecto disso e me ajuda nessa mediação.
Fato é que, invariavelmente,
nunca vai ser 100%, e tudo bem. Aos poucos restabeleço minha relação com os
mundos interno e externo, e volto a dar espaço pra mim. Às vezes a gente se põe
pressão demais por coisas que não estão totalmente no nosso controle e nem nos
damos conta.
Curiosamente estou sentado
na mesma mesa do mesmo restaurante que costumava vir nas minhas folgas, às
segundas, do meu primeiro emprego como cozinheiro em Santos. Duas outras mesas
estão ocupadas e, ainda mais curiosamente, mesmo que seja o único exercendo
minha solitude, pareço ser o único desfrutando de algum lampejo de alegria. São
tempos estranhos pra estar acompanhado.
Até a próxima.
Encontrar satisfação em estar conosco mesmo é fundamental para estarmos bem com os outros. Belo texto, meu querido!
ResponderExcluirEssa é a magia de estar conosco (a melhor companhia)
ResponderExcluirConheça-te a ti mesmo e conhecerá o Universo...