terça-feira, 11 de junho de 2024

Hoje Eu Quero Sair Só

 


Estou, no momento em que inicio esse texto, sentado sozinho na mesa de um restaurante. É segunda e acabei de sair da sessão das 19 de Furiosa, em que mais uma vez George Miller opera acima dos 142% pra produzir algo grandiosamente minimalista. Como eu amo Mad Max. Apesar disso, meu foco aqui vai todo pra parte de estar sozinho.

Me lembro de um ritual razoavelmente comum nos meus anos mantiqueiros. Morar sozinho não cria, necessariamente, solidão. No tempo da graduação raramente ficava desacompanhado, e nossa galera amava passar tempo junta. Na verdade, era mais provável que estivesse com outras pessoas do que só, e não apenas no sentido físico, pois havia um senso genuíno de coletividade e apoio entre nós. Nos fins de semana, no entanto, era quase inevitável que não ficasse ninguém conhecido na cidade, até porque pouca gente, como eu, morava consideravelmente longe. Foi aí que o hábito surgiu.

Chegava a noite, eu botava uma roupa quente, pegava meu falecido iPod - companheiro inseparável de todas as horas - e caminhava ouvindo música até um restaurante japonês que fica escondido no primeiro andar de um prédio no Capivari, quase alheio à profusão de lugares genéricos que tomam conta do centro turístico jordanense. Subia as escadas, sentava numa mesa na sacada e comia observando o movimento na rua. Levou algum tempo até que o dono do restaurante não estranhasse minhas refeições solitárias, e por um período considerável, assim que eu chegava, perguntava se era “mesa só pra um, mesmo”.

Ao longo dos anos acabei estendendo essa rotina pra outros lugares da cidade, que se tornou ela mesma minha companhia. Vi muita gente chegar e ir embora, e no fim a solidão era sempre inevitável, mesmo que temporária (para mais sobre esse tempo, leia “O Som das Araucárias”). Quando chegou a minha vez de deixar a serra, um tanto dela veio comigo. Nos curtos intervalos que fiquei na Baixada mantive o hábito de sair sozinho, e o costume instaura a normalidade. Ao longo desse tempo a solitude me propiciou entrar em contato com aspectos de mim mesmo que por muito tempo ignorei, e aprendi a ficar em paz com a minha própria companhia. Eis que chega 2020.

A transição entre as décadas gerou uma ruptura nunca antes vista na normalidade. Pra além do impacto objetivo de milhões de mortes que a pandemia causou, se estabeleceu desde então um senso geral de que existe alguma coisa que quebrou e não se conserta mais, ou que ao menos se arrasta desde então sem uma remediação completa. No meio disso tudo, minha relação com o estar só também mudou.

Uma pandemia, um relacionamento e um burnout depois, me vi num estado de profunda ambiguidade. Momentos de crise, em maior ou menor escala, sempre deixam suas impressões espalhadas por aí. E, sendo como sou, como poderia querer facilitar a situação? Se de alguma forma sinto o peso da solidão, confesso que cada vez mais as pessoas soam irritantes e/ou desinteressantes, e não parece um esforço muito grande manter certa distância. Eu que lute com a minha dialética autoimposta.

Valter Hugo Mãe, escritor angolano dos melhores que eu já tive o prazer de ler, abre seu magistral “O Filho de Mil Homens” narrando a vida de um homem solitário. Cito aqui algumas de suas palavras:

“Estava sozinho, os seus amores haviam falhado e sentia que tudo lhe faltava pela metade, como se tivesse apenas metade dos olhos, metade do peito e metade das pernas, metade da casa e dos talheres, metade dos dias, metade das palavras para se explicar às pessoas.

Via-se metade ao espelho e achava tudo demasiado breve, precipitado, como se as coisas lhe fugissem, a esconderem-se para evitar a sua companhia. Via-se metade ao espelho porque se via sem mais ninguém, carregado de ausências e de silêncios como os precipícios ou poços fundos. Para dentro do homem era um sem fim, e pouco ou nada do que continha lhe servia de felicidade. Para dentro do homem o homem caía”.

O tempo aos poucos dilui o limiar entre a solitude e a solidão, e fica cada vez mais difícil saber quando é bom e ou não estar só. Chegando aos 30 em poucas semanas me peguei ligeiramente aflito pela questão. Talvez a leitura recente do livro tenha remexido coisas nos compartimentos internos desse estranho e excessivamente movimentado ambiente que chamo de minha mente, mas ao mesmo tempo, estando numa fase da vida em que finalmente detenho certo nível de autonomia, começo de novo a enxergar no meu tempo só o momento para me conectar comigo mesmo, sem deixar de refletir sobre como lidar de forma menos tensa com os outros. Escrever é um aspecto disso e me ajuda nessa mediação.

Fato é que, invariavelmente, nunca vai ser 100%, e tudo bem. Aos poucos restabeleço minha relação com os mundos interno e externo, e volto a dar espaço pra mim. Às vezes a gente se põe pressão demais por coisas que não estão totalmente no nosso controle e nem nos damos conta.

Curiosamente estou sentado na mesma mesa do mesmo restaurante que costumava vir nas minhas folgas, às segundas, do meu primeiro emprego como cozinheiro em Santos. Duas outras mesas estão ocupadas e, ainda mais curiosamente, mesmo que seja o único exercendo minha solitude, pareço ser o único desfrutando de algum lampejo de alegria. São tempos estranhos pra estar acompanhado.

 

Até a próxima.


2 comentários:

  1. Encontrar satisfação em estar conosco mesmo é fundamental para estarmos bem com os outros. Belo texto, meu querido!

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  2. Essa é a magia de estar conosco (a melhor companhia)
    Conheça-te a ti mesmo e conhecerá o Universo...

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