O
que faz de você, você? Melhor dizendo, você seria capaz de responder, de forma
direta e objetiva, quem é você? Faça essa reflexão agora sem pensar no que você
faz profissionalmente, ou no que você estudou, ou numa coisa que você gosta.
Remova todas as coisas que compõe o seu eu exposto ao mundo exterior e tente
responder essa pergunta como se falasse consigo mesmo.
Eu,
particularmente, não tenho a mais remota ideia do que responderia. E depois de
finalmente assistir e sim, por meios totalmente legais, pode ter certeza,
Pobres Criaturas, esse questionamento ficou ainda mais complexo, quase beirando
o cômico - é meio engraçado se sentir completamente burro, incapaz de responder
uma pergunta que, penso eu, implica certa trivialidade.
Pontuo,
antes de mais nada, que a questão do cérebro de criança no filme não é apenas
uma analogia. Bella Baxter de fato recebe, recém falecida, o cérebro do bebê
que gestava. No entanto, quando pensamos no conceito “cérebro de criança”
estamos imputando conceitos apoiados no que se construiu socialmente sobre
infância, o que é ser criança e todo o escopo de décadas de pesquisa sobre fases
do desenvolvimento e blá blá blá. Lembremos que há não muito tempo atrás nada
disso existia, então sem anacronismos.
Poderia
passar um tempão mergulhando nesse ponto específico - ao menos sob a ótica da
educação e da sociologia - mas esse não é o motivo de ter querido escrever um
texto complementar, até porque a interpretação clara desde o início do filme se
mantém exatamente a mesma que coloquei em “A Pobre Criatura Chamada
Subjetividade”. Caso não tenha lido, volte duas casas.
O
motivo de estar falando sobre o assunto novamente mistura o texto anterior com
os questionamentos apontados aqui, nos primeiros parágrafos. Quando não se
possui nenhuma referência sobre nada, como estabelecer uma relação dialética
com o mundo e confrontar toda a miríade de conceitos e convenções já
estabelecidas, mesmo tendo a capacidade cognitiva para tal? Cognição
desenvolvida é suficiente pra mediar um mundo quando há ausência de
entendimento dos símbolos sociais?
O
filme não tenta responder, mas carrega o debate através das ações de Bella
sendo dotadas de profunda objetividade, ultrapassando com força pro lado de uma
simulação do que seria o estabelecimento de uma relação puramente metodológica
com o mundo. As coisas, após determinado ponto, abandonam o caráter de
descoberta, que remeteria ao fluxo comum do desenvolvimento do “eu”, e passam a
ser experienciadas analiticamente, a aproximando de se tornar cada vez mais um
reflexo do dr. Godwin Baxter, seu “criador”.
Adentrando
esse pressuposto, o questionamento que se formula, e que talvez ambas as
personagens, de formas diferentes, tentem responder, ou ao menos traçar uma
linha lógica - não eles em si, mas suas trajetórias durante a narrativa - é:
não possuir subjetividade construída de forma natural, dentro do tempo
entendido como adequado para tal e passando pelas diversas fases do
desenvolvimento da mente, possibilitaria algum nível de neutralidade real ao se
analisar um objeto?
O
tempo todo, ao longo do filme, o dr. Godwin relata as mais diversas atrocidades
que o próprio pai cometeu com ele, mutilações diversas em prol de um senso
deturpado de avanço científico e compreensão do corpo humano, o que o próprio
defende com a mesma frequência como sendo os atos corajosos de alguém capaz de
tudo pelo avanço técnico, como se tivesse experienciado uma espécie de
dissociação do próprio sofrimento como forma de suportá-lo, estabelecendo um
significado lógico, afastado de qualquer noção movida por sentimentos, para
tudo que passou.
Se a
objetividade seria para o dr. uma forma de fuga da própria subjetividade, de um
elemento constituinte do seu “eu” - o sofrimento físico e o ódio pelo mesmo ter
sido causado pelo próprio pai - para Bella esse mesmo traço anda em contraste
constante com o fato de que, por não ter se desenvolvido numa temporalidade
natural, todas as suas reações ao mundo, mesmo quando demonstra profunda
inteligência e capacidade analítica, são precedidas por atitudes totalmente
instintivas.
Quando
entende sua sexualidade, quando come um doce pela primeira vez, quando ouve um
bebê chorando, suas reações sempre são as que qualquer um tomaria se não
estivesse sociabilizado - buscaria estímulo sexual continuamente, comeria um
doce atrás do outro, reagiria com violência ao incômodo causado pelo choro. A
quebra desse padrão só ocorre a partir do momento que ela é confrontada com
duas coisas: a filosofia, que estabelece novas formas de percepção sobre o
mundo, não objetivas e conflitantes com o que parece óbvio, e o choque de se
deparar com a miséria, que desfaz sua noção de que o atendimento de seus
prazeres é natural e está disponível para todos.
Sua
resposta aos dois, sem possuir nenhum campo referencial prévio sobre ambos,
também parte de reações de certa forma lógicas: o desespero e tristeza profunda
com a filosofia implicando que nem tudo é claro como ela entendia, até então, o
que acaba por estabelecer uma ruptura paradigmática, e a tentativa de sanar a
pobreza suprindo àquelas pessoas o objeto que, em sua falta, a causaria, o
dinheiro.
Existe
espaço pra discutir uma série de outras questões sobre o filme, mas acho que,
com relação ao meu objetivo central, me fiz entender. E isso porque a ideia era
só complementar o que eu já tinha escrito. Talvez, no fim, o texto anterior
seja um complemento desse. Seria possível complementar uma ideia antes mesmo de
ela existir? Confesso que às vezes tenho medo de ser taxado de prolixo, então
chega de divagação por hoje.
Não
tenho total certeza se gostei do filme - imaginem se tivesse - mas posso
afirmar que ele me deixou intrigado. Ao longo da história fui puxado pra fora
diversas vezes, não por estar desinteressado, mas pra tentar organizar um
pensamento que me ocorria sobre algo específico e anotar pra escrever esse
texto. O ritmo da narrativa quase não te dá espaços pra sair dela, e tudo
ocorre de forma tão intensa - talvez numa tentativa de nos conectar com a
protagonista - que 2h20 parecem 3.
No
fim das contas, acho que não respondi a pergunta que levantei lá no meio, e
sendo bem sincero não sei se queria responder. O filme também não entrega nada
de bandeja e eu tive que lidar com um pouco de insônia pra organizar e escrever
o início das ideias contidas nesse texto. Talvez tenha escrito um monte de
bobajada e você perdeu um tempo tremendo pra chegar até aqui, ou então tudo fez
muito sentido e agora você deve estar se fazendo um monte de questionamentos.
Em ambos os cenários, considero que atingi meus objetivos. Se é uma derrota,
que seja compartilhada.
Até
a próxima.