quarta-feira, 31 de maio de 2023

Cardápios Moderninhos e o Golpe da Experiência

 



Quando adentrei pela primeira vez nas masmorras escuras e esquecidas pelo tempo vulgarmente conhecidas como gastronomia, nos idos de 2012, de cara me deparei com um movimento tosco e triste que ainda engatinhava: a "experiência gastronômica". Meu Deus. Na época, mesmo que ainda deslumbrado com o mundo de maravilhosas possibilidades que se apresentavam, olhei com certo receio pro que se anunciava como “a próxima grande tendência” do ramo.

Apesar disso, dei um voto de confiança pra ideia, esperançoso de que as pessoas teriam o bom senso de usar aquilo pra criar coisas realmente relevantes pra Gastronomia. Ledo engano. O que surgiu foi uma quimera louca de tudo mais cafona, infantil e puxa-saquista que se poderia criar.

Não que eu ache errado querer fazer algo que tenha por objetivo principal proporcionar momentos agradáveis pro comensal, mas no lugar disso o que se viu foi uma enxurrada de genericidades tristes, nadando de braçada em falsidade, mal feitas e que misturavam todos os piores elementos que a gastronomia poderia produzir.


Tudo isso, claro, enquanto gente escrota ria – e continua rindo – da cara das pessoas, se valendo da falta de critério e repertório da clientela pra ganhar dinheiro fácil, fruto de um país que, ainda que tenha muita gente boa fazendo boa comida de forma consciente, luta constantemente pra se livrar da rendição à lucratividade sobre qualidade e decência humana no geral. Aqui podemos incluir, naturalmente, as condições de trabalho deploráveis às quais trabalhadores do setor se veem submetidos, e basta que se converse por alguns minutos com qualquer um que já esteve empregado em A & B pra corroborar minha tese.

Um dos piores sintomas que essa patifaria proporcionou é, sem sombra de dúvida, o cardápio moderninho. Eu disse que ia falar deles. Assumindo todo tipo de forma e tamanho, esse totem de cafonice é a ferramenta suprema da gourmetização pueril da sociedade, reflexo de um movimento de infantilização geral que, sem meias palavras, é estarrecedor.

Todo item de menu tem que ter uma historinha engraçadinha, um papinho furado de como o restaurante é seu amiguinho legal e descolado, pra te dar a ideia de que você está prestes a comer algo incrível – mas que, muito provavelmente, só vai reforçar todos os seus paradigmas. Superada a tarefa de conseguir escolher alguma coisa naquela profusão insana de informação despropositada, vem a segunda prova desse biatlo alimentar - e você só queria comer alguma coisa.


Mesmo que você meio que saiba o que esperar, já que você ESCOLHEU a sua comida, é quase uma regra universal que rege a experiência gastronômica: se o cardápio fala demais, a comida entrega de menos. E não raramente por um preço excessivamente alto.

Não digo isso nem no sentido de quantidade, porque se você vai num lugar que cobra um preço elevado, mas come algo que pega seus sentidos de jeito, fica tudo certo. O problema é quando te entregam uma massaroca medíocre numa apresentação de gosto questionável e falam que é "a visão do chef" ou qualquer palhaçada do gênero. Se sentir otário com comida é uma das piores sensações que existe na vida.

A parte ruim de entender certas coisas é que você precisa constantemente se controlar pra não ficar sobreanalisando tudo o tempo todo. A parte boa, pelo menos, é saber que você tá sendo enganado.


Uso como exemplo recorrente a padaria perto da faculdade, um lugar que eu respeito muito. Esse respeito vem pela constância e coerência do serviço e da comida: é sempre ruim. Mas não tem palestra, papinho furado ou enganação, aquele lugar é o que é e se dá por satisfeito.

Não tem “a gente só trabalha com orgânicos” enquanto funcionário só recebe ultraprocessado pras refeições, “nossos vinhos são biodinâmicos” cheio de processo por assédio moral e “eu sou amigo do pescador”, mas sou contra ele ter direitos trabalhistas.

Espero ansioso pelo dia em que os cardápios-livro-infantil acabem e as pessoas cansem da “experiência gastronômica”. É muito papo pra pouco produto – e ainda menos respeito pelo processo todo.

Até lá, sigo reclamando. Consta que um pouquinho de tensão ajuda a manter o coração forte.

sábado, 20 de maio de 2023

As Vicissitudes do Propósito

 



Aconteceram coincidências curiosas na última semana. Atolado em um bloqueio criativo violentíssimo, passei os últimos 10 ou 12 dias sem fazer ideia sobre o que escrever. Os temas e as inspirações costumam aparecer com certa facilidade, mas nesse período nada parecia suficientemente interessante ou digno de nota (e tempo de elaboração).

Bloqueio criativo é um tema por si só, e ainda vou dar atenção pra essa coisinha desgraçada, mas não hoje. Voltemos às coincidências. Uns dias atrás, poucos minutos antes de sair de casa pra faculdade, recebo a seguinte mensagem: “você acha que cada um de nós tem um propósito? Tipo, que alguma força maior tenha dado uma missão pra cada ser humano?”.

Não vou dizer minha resposta agora. Acho que ela cabe no final da sequência de eventos que se sucederam, pra amarrar as pontas. E se você discordar disso, bom, escreve seu próprio texto aí, parça.

Enfim, primeira coincidência. No dia seguinte ao questionamento, pouco depois do almoço, vi o padre Júlio Lancellotti sendo entrevistado, junto com a jornalista global Sônia Bridi, pela Paola Carosella no seu programa novo. Em dado momento, Paola pergunta pra Sônia o que a move e ela responde que é sua esperança em um mundo mais justo, ou algo próximo disso, não lembro exatamente as palavras.

Padre Júlio, sempre lúcido, diz que acha a colocação dela perfeita, porque ter esperança em um mundo melhor é diferente de ter fé em um mundo melhor. Quando questionado, ele diz que a diferença entre fé e esperança é que, de certa forma, a fé é uma coisa estática, enquanto a esperança é quando você movimenta sua fé em direção a algo, relembrando o esperançar de Paulo Freire.

Em outro momento li pra uma aula os três primeiros capítulos do livro “A Sociedade do Cansaço”, do filósofo coreano radicado na Alemanha Byung Chul-Han, que trata em linhas gerais de como, na contemporaneidade, vivemos assolados pelas patologias neurais provocadas pela imposição da positividade constante, uma cobrança continua e excessiva de que as pessoas se mostrem sempre bem, felizes, em “forma”, ativas e produtivas, dando “propósito” a si mesmas através disso.

Qualquer pessoa com o mínimo de bom senso sabe que ninguém vive essa vida de verdade, e se vive, muito provavelmente é às custas da miséria alheia. Num golpe de curiosidade sobre o assunto, cometi a seguinte pesquisa: “as dimensões do propósito”. O que me apareceu foi uma coisa até que interessante, o conceito de ikigai, que traduzido de forma aproximada é algo como “razão de viver”.

O ikigai está ligado a encontrar as coisas que dão prazer e “sentido” pra sua vida e mover suas ações e pensamentos em direção a essas coisas, e foi criado em Okinawa, no Japão, região em que uma parcela considerável da população passa dos 100 anos. Muitos pesquisadores acreditam que a longevidade dos locais tem relação direta com viver sob a ótica do ikigai, o que parece bastante factível, ainda que particularmente considere as condições materiais no qual aquela população está inserida muito mais determinantes.

Bom, voltando ao ponto. Como quase tudo nesse mundo, o conceito de ikigai é mais uma coisa cooptada pela lógica neoliberal. Pra fora do conceito e sua história, me deparei com uma enxurrada de diagramas toscos que tentam mostrar que o ikigai deve passar por ser produtivo e pensar e fazer coisas que te dão dinheiro – quase aquelas merdas de “Os Segredos da Mente Milionária”.

O que sucede disso é uma montanha de cretinos vendendo livros e cursos sobre aplicar o ikigai para conquistar uma vida bem-sucedida e feliz, bem papinho de coach safado, sempre se amuletando na ideia de que isso é a solução mágica que vai te fazer ficar rico.

Ora ora, mas se não é exatamente sobre esse tipo de coisa que o sr. Chul-Han estava falando. Se alguém de fato encontra algum movimento pra própria existência nesse tipo de coisa, tudo certo. Meu problema é com o charlatanismo. Tirar dinheiro de gente que só tá perdida é muito baixo.

Essa sequência intensa de reflexões e conceitos ao redor da ideia de propósito me pegou de surpresa. Como eu disse no começo, não que eu não tenha uma concepção pessoal razoavelmente bem formulada e estabelecida sobre a questão, mas a coincidência foi tremenda. Curioso.

Aqui, enfim, insiro minha resposta. Parafraseando a mim mesmo, disse – mais ou menos – o seguinte: “a resposta curta é não. A menos curta é não, não acredito que a gente tenha um propósito determinado por algo maior, até porque não acredito em forças maiores regendo o Universo. Acho que a Existência é só fruto da sucessão aleatória de eventos ainda mais aleatórios, que aleatoriamente culminou na nossa presença aqui e agora. Contudo, é exatamente isso que é, de alguma forma, uma dádiva. Apesar de toda a loucura da entropia, estamos aqui, e isso dá significado pro existir. A gente devia aproveitar ao máximo o privilégio de existir, APESAR dessa completa aleatoriedade”.

O que eu quero dizer, na real, é que encontrar um sentido pra própria existência é uma coisa perturbadoramente difícil, simplesmente porque não dá pra ter certeza. Eu posso estar absolutamente incorreto, e talvez exista sim algo roteirizando as coisas, construindo o caminho pra que eu sirva pra alguma coisa específica. Vai saber.

Meu grande ponto é que não acho que pensar nisso faça sentido. Na maior parte do tempo isso só gera ansiedade, angústia e um certo senso de inadequação frente ao mundo, uma pressão de fora pra dentro de ter que saber qual o seu motivo de existir com o qual simplesmente não concordo. Não posso concordar.

Não existe uma regra. Algumas pessoas têm uma ideia muito clara do que querem, outras não. E tá tudo certo. A vida vai apresentando situações pra gente ao longo da existência que podem ou não servir de impulso pro encontro de algo que te movimente. Em muitos casos, nem escolha tem, é vai ou racha. E a vida meio que é assim, incerta.

Tenho alguma convicção de que a gente dá sentido e propósito pro existir. E cada um no seu tempo, dentro das suas possibilidades, vai moldando seu caminho. Escrever, militar, cozinhar pras pessoas que eu amo e compartilhar o que eu puder são algumas coisas que funcionam pra mim. Pode ser que algumas delas funcionem pra você também, vai saber. Mas não tem regra. Talvez tenha sentido, talvez não. Você só descobre se tentar.

terça-feira, 9 de maio de 2023

Manhã de Terça É Uma Viagem ou Esse É o Primeiro Dia do Resto da Sua Vida

 



Rita Lee não morreu. Não gosto dessas frases clichê de perfil de autoajuda do Instagram, mas tem uma que até que faz bastante sentido. Só morre de verdade quem é esquecido. E gente como Rita não se esquece.

Aproveito o ensejo pra prestar minhas homenagens também à Palmirinha, uma figura que, mesmo antes de eu entrar na Gastronomia, me chamava a atenção por conseguir falar de cozinhar com naturalidade e leveza, como se estivesse cozinhando do seu lado – coisa que quase ninguém consegue – e fazendo comida boa que a maioria dos chefs renega, enquanto vende comida mediana pra baixo a preços no mínimo questionáveis. Ela com certeza também não morre tão cedo.

Bom, voltemos à Rita. Hoje, logo após a notícia, um amigo mandou uma mensagem que me arrancou uma risada soltíssima no meio da consternação. “Devia ter comprado a biografia dela, já. Vai ficar mais cara, agora”. Sobre ela, duas observações. Primeiro, considerando todo o pouco que sei e vi de sra. Lee, acredito que também riria muito disso, falando algo como “tá vendo só? Demoraram pra comprar meu livro, agora os putos da editora vão meter a faca em vocês”!

Segundo, não me espantaria nem um pouco se a frase seguinte fosse “E é bom que vocês paguem mais caro, mesmo! Deu um trabalho do cacete pra escrever”. Rita é entropia pura. O que faz com que seja espantoso o que muitos veículos de mídia tradicionais – não que esperasse muito – tenham veiculado coisas como “Morre a Rainha do Rock” num tom reducionista ou, no caso mais tosco e tacanho até o momento, as chamadas da Folha querendo dar foco pra polêmicas, falar do uso de drogas com um ar profundamente moralista e outras baboseiras de gente que vive pra urubuzar a vida alheia.

O lance é que Rita é tudo isso aí, sim. Mas não só. E nunca só. Fez o que queria, como queria, e bateu de frente com as consequências porque tinha convicção das suas decisões. E isso se refletiu profundamente na sua produção artística.

Num insano transmimento de pensação, Danilo Nakamura, a. k. a. Sucrilhos, grande cronista dos pratos, dos copos e da vida – se não o conhece, recomendo que conheça – escreveu uma coisa que sempre me passou na cabeça: Rita tá no mesmo plano de David Bowie. O grande lance pros dois era um só, criar o que quisesse, no estilo que desse na telha, experimentar, inovar. Nenhum dos dois coube, cabe ou caberá na caixinha do estilo único. Eles são o estilo. E quem gostou, bate palma. Quem não gostou, paciência.

Nunca fui muito de ídolos, e acho que os artistas de que gosto também não concordariam muito com qualquer tipo de idolatria, mas agora, escrevendo esse texto, paro pra pensar que, coincidentemente, só a morte do Bowie me trouxe esse momento de consternação reflexiva, antes. Se isso não é pra ser celebrado e registrado, não sei o que poderia ser. Só espero estar fazendo uma homenagem que faça justiça a eles.

Como eu disse lá no começo, viver é ser lembrado. Quero que esse texto seja uma extensão indefinida pra vida dela, de David e tantas outras pessoas que vieram pra tirar o mundo do eixo, tendo a bondade de compartilhar com a gente o jeito de enxergar as coisas nesse ângulo novo.

  Rita escreveu um tweet, nos idos de 2013, que dizia “E eu lá sou mulher de fazer backup? Perdi tudo, foda-se eu”. Concordo com isso, até porque, convenhamos, quando alguém se grava de forma tão profunda na vida de um país, pra quê backup? Ela se basta, flutuando pelas memórias alheias, deixando um pouquinho de si em cada canto.

Rita vive.

terça-feira, 2 de maio de 2023

A Vida, O Universo e Só Mais Umas Coisinhas

 



Douglas Adams, o grande autor britânico de “O Guia do Mochileiro das Galáxias” e “Agência de Investigações Holísticas Dirk Gently”, diz em um texto presente em outro livro seu, uma coletânea de textos variados chamado “O Salmão da Dúvida” (inclusive recomendo fortemente): "[...] quero dizer ateu mesmo. Eu realmente não acredito que exista um deus – na verdade, estou convencido de que ele não existe. E há uma diferença enorme entre as duas coisas". Tenho minhas dúvidas sobre a exatidão das palavras, mas absoluta certeza de que era isso que ele queria dizer.

Boa parte das pessoas que me conhece e está lendo esse texto provavelmente sabe que eu sou ateu, mas não é de religião que eu quero falar. Nem tenho certeza se essa é uma caixa que eu gostaria de remexer em busca de assuntos pra escrever crônicas. Posso não ser dotado de espiritualidade, mas expresso sempre minha crença de que é muito bonita a fé.

Sinceramente, fiz essa introdução desnecessariamente longa nem sei por quê. Quero falar, na verdade, de crescer, envelhecer e seguir em frente. Abandonar os velhos signos e criar novos, novas memórias, novos afetos, desmontar e reconstruir o “eu”.


Recentemente, escrevendo um artigo de opinião pedido pra uma das aulas da faculdade, fiz a seguinte constatação, ao debater as colocações do sociólogo e dito entendedor de Cibercultura Pierre Lévy:

"A lista de exemplos que poderiam ser dados para colocar em questionamento a posição de Lévy é extensa, mas demonstram com clareza que a relevância de um autor para a obra se mantém, pois esta, sendo fruto de seu autor, também é fruto das condições materiais que o moldaram, delimitando que, ainda que quem produz uma certa coisa seja desconhecido, essa coisa só existe em função de tudo que formula o “eu” de quem a produz, seja um indivíduo ou um coletivo".

Apoiei essa afirmação baseado em duas figuras muito distintas, mas de igual relevância pra suas respectivas áreas: Dante Alighieri e a importância de sua atuação política e exílio na construção d’A Divina Comédia e Marc Bloch, um dos mais influentes historiadores do séc. XX, preso e torturado pelo exército nazista durante a 2ª Guerra Mundial, que escreveu sua obra mais importante, “Apologia da História”, durante esse período, ainda que não tenha tido a chance de terminá-la pois foi executado em junho de 1944. O texto é carregado, denso, mas claro no seu objetivo: Bloch queria dizer que a História é o que é, e o papel do historiador é entendê-la e registrá-la sem querer determinar o que ela é.

Mas o que diabos tudo isso tem a ver com Douglas Adams, ateísmo e seguir em frente? Bom, pelo menos algumas coisas, já que eu perdi um tempo colossal divagando por esses tópicos. Quando escrevi a introdução desse texto – como sempre no bloco de notas do celular – enviei pra minha revisora/conselheira/amiga-há-11-anos quase de imediato (oi, Manu). E como é bom ter gente que extrai coisas diferentes do que a gente faz e expande nossa perspectiva sobre o tema.

Ela respondeu o seguinte: “[...] Fé é acreditar que quando tá ruim pode melhorar. Fé é ter sentimentos bons. Doutrinas só nos ensinam com histórias de pessoas, que independentemente de acreditarmos se elas existiram ou não, tiveram fé de que poderiam evoluir e de que ajudariam a melhorar o mundo próximo delas. Você tem fé! Acreditar em um deus ou outro, já é outros 500”.

Aqui, enfim, o ponto ao qual eu queria chegar. Vejam só, há uns não muitos anos atrás eu possivelmente diria pra ela que discordava conceitualmente disso, e ela sabe bem. Eu já fui um discordador profissionalíssimo, em partes porque sentia um certo prazer em reagir de forma opositiva, em parte porque, no fundo, e é aqui que as coisas tomam seu lugar, tinha dificuldade em me desvencilhar de concepções que construí em tempos ainda mais distantes.


Superar certas coisas é difícil pra cacete. E superá-las quando parecem traços constituintes da sua existência é ainda mais. Mas, olhem só, não é preciso exatamente superar nada. Me explico. Ela também diria que eu continuo irritantemente argumentativo. Mas não mais simplesmente discordante, porque agora esse gosto por argumentar foi colocado num espaço de construção, em que o debate não é mais uma coisa a ser ganha, é um lugar de renovar a cabeça.

E pra isso funcionar, a necessidade de estar aberto ao novo é grande, assim como não tornar coisas abstratas e absolutamente sem relevância em traços de personalidade, o que até faz sentido por um certo período da vida – vide adolescência – porque enquanto seres sociais sentimos essa urgência louca de pertencimento que necessita de se agarrar em símbolos meio falidos pra funcionar, mas que te congela no seu próprio espaço-tempo, uma não-entropia do “eu”.

A galera do rock, do desenho japonês, do skate, “olha como eu faço parte”. Na boa, você já faz parte, só precisa encontrar a galera que também já entendeu que dá pra gostar dessas coisas sem parecer que seu mundo mental gira em torno disso. Não é tarefa fácil, mas viver de nostalgia ou de gostos te priva de experienciar o mundo de forma plena e de se entender plenamente enquanto parte do mundo.


Vez ou outra sinto que as pessoas andam apegadas demais a si mesmas, sem referências, sem aprofundamentos, e tenho poucas dúvidas sobre a influência da queridinha interwebs do Lévy nessa conjuntura, até porque quando ela se tornou relativamente corriqueira e acessível ninguém achou de bom tom falar dos limites, né. A velha história da mercadoria – essa eu deixo pra outra hora.

Retornando ao fio condutor, tal e qual Dante, Bloch e Adams – que estranho balaio de referências – vivenciaram uma série de eventos que os levaram à, citando novamente “O Salmão da Dúvida”, estarem convencidos de certas coisas sobre existir, expressando cada qual à sua maneira todo o conjunto de experiências que tiveram pela vida através de suas obras, elas expressam uma quantidade ainda maior de coisas sobre eles mesmos, um tipo de autorretrato que não se constrói de um dia pro outro, muitas vezes é doloroso e traz à tona aspectos de nós mesmos que preferiríamos esquecer, mas que fazem parte de nós tanto quanto as coisas que abraçamos. Alô Dorian Gray (prometo que é a última referência literária).

Enfim, não tô aqui pra cagar regra pra ninguém sobre a vida, mas estou convencido sobre todo esse emaranhado de questões, e não só porque está escrito em primeira pessoa, mas acho que esse texto fala muito sobre a pessoa que sou hoje. E acredito que se você perdeu todo esse tempo lendo, é bem provável que alguma coisa aqui também tenha te convencido (ou você só goste muito de mim. De qualquer forma, obrigado).

Não raramente me pego profundamente impaciente com o mundo ao redor, mas já fui muito mais impassível, e o processo todo de mudança só veio com o entendimento de que era necessário deixar certas coisas pra trás. Pelo menos agora consigo colocar – ainda que parcialmente, afinal de contas esse é um processo contínuo – cada coisa de mim em seu devido lugar, cada ferramenta realizando sua função. Vez ou outra ainda bato um parafuso com alicate, mas quem sabe num futuro próximo não me aparece uma parafusadeira decente.

Que péssima analogia.