Estive na Festa
Literária Internacional de Paraty, a Flip, pela primeira vez em 2017, com
alguns textos não acadêmicos já escritos, mas absolutamente sem nenhuma
pretensão de me tornar um escritor. Sendo sincero, em 2017 eu não fazia ideia
do caminho a seguir, mas deixo esse assunto pra outra hora, já que falar sobre
isso requereria um tempo considerável, então voltemos.
Relatei muitas vezes
meu amor pela leitura, então não é difícil imaginar que estar imerso num
ambiente onde - quase - tudo gira em torno da literatura me causa uma comoção
enorme, assim como o fim do evento gera uma certa melancolia, quase na mesma
proporção. Quase porque esse não é o tipo de coisa que se vivencia e logo se
esquece, e hoje, aos 30, muito mais maduro e compartilhando do ofício
literário, o retorno à Flip ganhou uma outra dimensão: ouvir tantas pessoas que
fazem da palavra sua ferramenta reafirmou minha vontade de continuar e me
trouxe novas perspectivas sobre o escrever.
Esse, inclusive, foi
o grande tópico informal dessa edição, recorrente em quase todas as mesas e
debates que assisti, o fazer literário. Algo bastante natural, diga-se de
passagem, considerando que a obra é, de formas variadas, uma extensão do
artista e seu jeito de organizar a realidade, tanto pelo que se registra quanto
pelo que se omite. Como dizem na música, o silêncio também é parte da
composição.
Poder ver ao vivo
alguns de meus autores e autoras favoritos da atualidade, como Carla Madeira,
Jefferson Tenório, Socorro Acioli e Mohammed Sarr falando sobre seus processos
criativos, o que move suas escritas, referências e, acima de tudo, de sua paixão
pelos livros não foi apenas combustível pro eu-presente, escritor, mas também
um aceno pro Andrézinho que se refugiava em livros incansavelmente, ainda sem
saber que aquilo tudo serviria de base pro que estava por vir, mas sempre ávido
por transitar entre páginas e palavras, imaginando como seria o mundo se elas
transbordassem pro real.
Eis aqui a dimensão
da literatura que mais conversa com a pessoa que me tornei. O imaginar não se
restringe apenas ao exercício de abstração sobre outras realidades, mas
acreditar que a realidade pode ser outra. Não vejo nada como utópico, apenas
colossalmente difícil, em muitos casos, e exatamente por isso requer que nos
empenhemos, na medida e da forma que forem possíveis a cada um, em construir as
condições que propiciem a mudança. Estar lá só reafirmou minhas convicções e,
como sempre, reiterou o quanto a literatura pode ser transformadora.
Seria atestar o
óbvio, contudo, dizer que nada é perfeito, e a Flip também carrega suas
contradições. Já que é um evento literário, começo falando exatamente sobre os
protagonistas: os livros. Sabemos que os comprar nunca foi exatamente barato,
mas o que se espera de um espaço que visa debate-los e incentivar seu consumo é
que estejam disponíveis, ao menos, com valores mais convidativos, e o que se
viu foi exatamente o contrário.
Paraty é uma cidade
turística e sofre com as mesmas coisas que qualquer outra cidade que carregue
esse fardo sofre, então quem vai até lá já espera que os custos sejam
singulares, sendo bastante gentil. Existe, no entanto, uma característica muito
própria da Flip que é a grande presença de pessoas - turistas ou locais - que
trabalham com arte e educação. É certo que existem exceções, mas em ambas as
categorias a realidade é a de que, no geral, docentes e artistas não levam uma
vida de abundância e grande estabilidade financeira. Participar de um evento
como esse, em muitos casos, exige muito planejamento e antecipação, reserva de
estadia muitos meses antes, pra pagar em suaves prestações e algum estudo da
cidade pra saber onde comer e o que fazer sem comprometer economicamente sua
vida depois de voltar pra ela.
Ao menos no centro
histórico da cidade, onde ocorrem a maior parte das atividades da festa,
cria-se uma bolha de quase absoluto isolamento da realidade social de Paraty
como, novamente, em boa parte das cidades que dependem do turismo pra
sobreviver. Vi por muitos anos essa mesma discrepância em Campos do Jordão, em
que assim como lá não é necessário se afastar muito do epicentro turístico pra
começar a se deparar com a materialidade que rege a vida das pessoas naquele
espaço. A inacessibilidade do que move a cidade pra quem sustenta essa dinâmica
é de uma crueldade assustadoramente recorrente.
Falando em
inacessível, essa é uma questão ambígua. É difícil falar sobre acessibilidade
quando a própria constituição física e arquitetônica da cidade não proporciona
condições pra que ocorram mudanças significativas na estrutura de acesso de
pessoas com mobilidade reduzida, seja por portarem alguma deficiência física ou
em função da idade, por exemplo. Caso essa informação lhe escape, o centro da
cidade é tombado como patrimônio histórico pelo IPHAN, o que não permite obras
que a descaracterizem, como a pavimentação de vias que permitissem e
facilitassem o acesso.
Vejo algumas
iniciativas ocorrendo pra que isso seja sanado, como o projeto de uma rota de
acessibilidade de um aluno de mestrado do IPHAN ou a expansão de atividades e
eventos ocorrendo em pontos fora do centro histórico, mas ainda é muito pouco.
São 22 edições e 21 anos de existência, me parece tempo o suficiente pra que
soluções fossem pensadas.
Enquanto pensava
sobre como relatar o que vivi nos 4 dias de evento, li alguns textos sobre a
FLIP. Todos são muito bem escritos, flutuando entre elogios e figuras de
linguagem num mar de exaltações às virtudes da festa. Não os nego, claro, acho
que já deixei bem claro o quanto acho importante que eventos como esse existam,
mas me incomoda o pouco que se fala sobre suas contradições. Escolhi
deliberadamente não falar sobre a programação em si porque disso se encontra
artigos aos montes pelas vielas esburacadas da internet, muito mais competentes
em analisar as obras de palestrantes e entrevistados do que eu.
Tento me ater à
ideia de que ressaltar essas contradições adiciona uma outra camada ao que é
vivenciar um evento como a Flip. Às vezes nos foge o fato de que momentos como
esse são reflexos e parte constituinte do tempo em que se inserem, e para
entender seu impacto - não só da literatura, objeto central da feira - se faz
necessário olhar pra suas contradições e colocá-las em perspectiva, à fim de
entender por quê e pra quem são realizados. Se as reflexões e impactos de uma
festa literária se dissolvem com seu fim ou nas mentes de uma classe que pouco
se importa que cheguem em quem mais poderia se beneficiar de sua realização,
que diferença faz existir?
Até a próxima.