segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Comida e Afetos




Escrever sobre comida nunca é fácil. Ou melhor, até que é. Mas depois de 10 anos enfiado na toca desse coelho triste, bêbado e ansioso chamado Gastronomia, as perspectivas tendem a ser ligeiramente tendenciosas. Nunca abandonaria a comida, não sou capaz de anular uma das partes mais importantes da minha existência, mas quando a ideia simples de pisar novamente em solo culinário aciona descargas intensas de horror instintivo, talvez seja a hora de rever essa relação. A humanidade perde muito com a minha falta de estabilidade emocional.

Dito isso, e me apoiando indiscriminadamente na pretensa subjetividade de tudo que envolve o ato de comer, vou correr o risco de ser polêmico, apesar de os desafortunados que me conhecem há mais tempo saberem que essas palavras são profundamente plausíveis com o jeito que enxergo o mundo: cozinhar não é uma forma de amar os outros.

Bom, pelo menos não é a única coisa que cozinhar é. Particularmente tendo a pensar que outros afetos são muito mais intensos no cozinhar. Tem a expectativa de quem cozinha, vivendo a suspensão interminável do espaço de tempo entre o servir e o comer, e a do comensal, à quem foi prometido um passeio à Sodoma gustativa. Depois temos, pro cozinheiro, dois desfechos possíveis: decepção e insegurança por não conseguir entregar algo de qualidade ou algum nível de orgulho e soberba por acariciar os sentidos de quem come.

Do outro lado a coisa fica um pouco mais complexa. Quem come pode ser arrebatado pelo êxtase de uma boa refeição ou pela repulsa ao trabalho de uma cozinha que já entregou o jogo. Infelizmente temos um número maior da segunda opção, e deixo pra um próximo texto os motivos assustadoramente recorrentes do porquê um cozinheiro ou uma equipe caem no limbo da má atuação. Mas acho que você consegue imaginar os motivos.

Há ainda uma terceira possibilidade, que particularmente considero o sentimento mais vil e deplorável que um ser humano pode ter: indiferença. Ame ou odeie, mas pelo amor de Baco, não se entregue pra apática possibilidade do "tanto faz". Se alguém gosta do que você faz, ótimo, continue seguindo esse caminho. Se desgostam, bom, melhor repensar suas decisões. Como dizia Gramsci, viver é tomar partido.

Goste do que você gosta ou odeie o que odeia, mas se entregue de corpo e alma pro alimento. É um primeiro passo importantíssimo pra entender a louca profusão de afetos que a comida tem pra te oferecer e largar a mão dessa pressão baixa em que sobrevive a gastronomia.

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