Um tempo atrás,
navegando naquele cemitério de bom senso que chamam de LinkedIn, vi o anúncio
de um curso da plataforma de ensino própria da rede social sobre produção de
prompts pra IA assistente que faz parte dos diversos programas do pacote
Office. Em outro post um grupo de pessoas debatia as falhas e virtudes de IAs
generativas e sua capacidade de produzir imagens. A exposição à profundidade de
um pires das discussões que rolam por lá me causou uma coceira horrível, e o
antídoto, óbvio, era vir azedar um pouquinho por essas bandas. Antes de
prosseguir, deixa eu tirar logo isso da frente: eu não sou contra o uso de
“inteligências artificiais”. Mais ou menos. Vamos à explicação.
Se você acompanha
meu trabalho há algum tempo - ou leu meu livro - deve lembrar de “Será Se a
Internet Foi Longe Demais”. Quando o escrevi, confesso que considerei, já
naquele momento, inserir o tema inteligência artificial, também, mesmo que de
forma discreta, já que não era o foco. Por fim decidi deixar de fora e, em
algum momento, dedicar um espaço exclusivo pra ele.
A ideia de elaborar
sobre os dois tópicos num mesmo espaço me ocorreu pelo paralelo que podemos
traçar entre ambos os fenômenos diante da perspectiva elaborada
anteriormente: grande ferramenta, responsabilidade mínima sobre seus impactos.
A gente teve a chance de entender que a internet era só uma ferramenta e
fomentar o uso sensato dela e perdeu esse bonde, então por que seria diferente
com IAs?
Em tempos de volumes
colossais de informação bombardeando ininterruptamente nossos cérebros
biologicamente projetados pra pegar fruta no mato, as pessoas estão perdendo em
ritmo acelerado a capacidade crítica e de síntese de ideias - como têm
demonstrado o número crescente de pesquisas sobre o tema - coisas que demandam
tempo e paciência pra que se faça reflexões que considerem de verdade os
diferentes aspectos e dimensões do objeto analisado, e simplesmente se
entregando pros resultados toscos, rasos e muitas vezes errados que saem do
ChatGPT e seus congêneres.
Pra mim isso não
parece praticidade, mas o rendimento total da autonomia do pensar. E isso é
sintomático do capitalismo: estamos tão cansados o tempo todo que até elaborar
uma ideia mais complexa se tornou um estorvo, e o novo produto revolucionário a
ser vendido (já que usá-las não só não é gratuito como, assim como em redes
sociais, nossos dados são a moeda de troca) são os algoritmos que te poupam o
tempo de ser um humano comum que lida com essa chaticezinha que é pensar. Junte
isso a empresas bilionárias monopolizando tecnologias e direcionando a
percepção acerca delas e pronto, tá feito o estrago.
Vou dar um exemplo
prático do meu ponto. Estou há semanas escrevendo essa crônica. Pra falar a
verdade não lembro a última vez que escrevi um texto numa tacada só, ou em
alguns poucos dias. Geralmente fico ruminando o tópico, esqueço dele, relembro,
escrevo mais meia dúzia de linhas, leio um pouco sobre o tema e então, depois
de muito elaborar sobre o que eu penso sobre o assunto, começo realmente a
organizar a ideia.
Se eu não passasse
por isso escrevendo, ainda seria escrever? Sem falsa modéstia de “na minha
humilde opinião”, aqui, vou ser direto e reto: não. Afirmo categoricamente que
não. Se você se pergunta o porquê, a resposta é relativamente simples: criar
algo não é só juntar um monte de partes através de técnica. O que diferencia um
texto que eu ou qualquer outra pessoa produza de algo gerado por um algoritmo é
a subjetividade - sempre ela.
Assim como quem
escreve, a máquina é capaz de reunir um monte de referências e estruturar um
texto a partir dos dados mais relevantes, obviamente muito mais rápido que
qualquer ser humano, mas isso só poderia de fato ser considerado conhecimento
ou arte passando por todos os filtros da subjetividade de uma pessoa. Hoje - no
dia em que termino esse texto, no caso - vi um vídeo do mestre maior da
animação, Hayao Miyazaki, criticando duramente os diretores de uma empresa de
IA generativa que cria animações, dizendo que achava o resultado daquilo um
insulto à vida.
O cerne dessa
reflexão é exatamente esse. Boas ou ruins - nesse momento específico sem entrar
no mérito do que define qualidade - expressões artísticas de qualquer natureza
só são possíveis por causa dessa maravilhosa capacidade humana de interiorizar,
remoer e reconstruir à imagem do seu “eu” todo o universo de acontecimentos que
nos moldaram. Quando entregamos esse processo ao computador, estamos abrindo
mão também desse possibilidade de autoconstrução e terceirizando nossa
humanidade.
Chegando aos
finalmentes, reitero: não sou contra o uso de IAs. A questão é que seu uso
deveria se limitar a operações que não demandam a tal humanidade. Cálculos
ultra complexos, análises estatísticas e outros tantos processamentos de dados
sem dúvida nenhuma se beneficiam muito dessa ferramenta. Temos no Brasil um
exemplo incrível na figura da doutoranda em Astrofísica Roberta Duarte, que
pesquisa o comportamento de buracos negros usando simulações produzidas por IA.
O que não pode
escapar do nosso horizonte é colocar as coisas em deu devido lugar. Como disse
nosso grande neurocientista Miguel Nicolelis em entrevista à Revista Fórum,
"A
inteligência é algo restrito aos organismos porque ela é uma propriedade
emergente da interação de seres vivos com o seu ambiente. A inteligência
resulta no processo de seleção natural, é a forma pela qual os organismos
conseguem sobreviver às vicissitudes de um ambiente em contínua modificação. O
termo inteligência é inapropriado porque os sistemas computacionais não
preenchem a definição clássica de inteligência, nenhuma delas. E ela não é
artificial porque ela é criada por seres humanos, ela não vem do nada, não cai
do céu. A inteligência que existe nessa área é a inteligência dos programadores
e das pessoas que geram esses sistemas".
Desde as primeiras
representação de sistemas computacionais na cultura existe o medo de que um
supercomputador dotado de algum nível de consciência tente destruir a
humanidade ou robôs dotados de capacidades comportamentais quase
indistinguíveis de seres humanos. Acho um tanto óbvio afirmar que meio que só
depende da gente, enquanto sociedade, delimitar o que máquinas podem ou não
fazer. Dito isso, preciso confessar: preferia falar de IA quando tudo que a
gente lembrava ao ouvir isso era daquele moleque robô chato pra cacete num
filme desnecessariamente longo do Spielberg. Voltemos a tempos mais simples.
Até a próxima.