Em 2023 me deu na
telha começar um hobby novo. Temos há alguns anos uma câmera digital bastante
robusta que meu pai comprou usada de um amigo fotógrafo, que um tempo depois
inclusive se ofereceu pra comprar de volta, caso pensássemos em nos desfazer
dela. Não só não pensamos como continuamos usando com bastante frequência,
então resolvi explorar os recursos disponíveis e quem sabe, de repente,
aprender um pouco sobre fotografia.
Como os algoritmos
não estão pra brincadeira, mal comecei a buscar vídeos sobre iluminação,
velocidade de obturador, ISO e outras particularidades desse mundo e uma
enxurrada de conteúdo relacionado começou a brotar em todos os meios possíveis.
Curiosamente, o que acabou por ficar mais em evidência no meio disso tudo foi
um volume considerável de páginas e perfis de rede social voltados pra
fotografia analógica.
Lembro que até meus
11 ou 12 anos tínhamos uma máquina cinza-prateada que nos acompanhou por anos.
Não me recordo de marca ou modelo, mas praticamente toda a minha infância foi
registrada através dela. Que privilégio é ter registros da própria vida. Não só
as paredes de casa sustentam quadros com fotos de diversas fases do pequeno
André e companhia limitada como temos uma gavetona numa estante de livros cheia
de outros registros ainda mais velhos do que eu.
Pouco tempo depois
migramos pras digitais, e vejam só que curioso: entre defeitos e trocas de
computadores, acabamos perdendo uma quantidade considerável de imagens feitas
com elas. Muita coisa ainda sobrevive num HD externo que resiste ao teste do
tempo, mas muito menos do que havia antes. As fotografias reveladas, por sua
vez, não, continuam aqui, com um pouco menos de nitidez do que um dia tiveram,
mas ainda claras o bastante pra quase nos sentirmos novamente nos “quandos” e
“ondes” registrados.
No fim das contas,
até as digitais acabaram sendo aposentadas, e os telefones se prontificaram a
ocupar o espaço vazio. Aí se criou, então, ou ao menos assim considero, o
declínio não só do sentido do registro, mas do nosso próprio olhar sobre as
pessoas, coisas, situações e paisagens. Tô falando de uma coisa geral, um
blackout em massa, provocado em favor da tão desejada praticidade. Ao longo dos
anos a qualidade das câmeras telefônicas evoluiu consideravelmente, e hoje não
só é possível como bastante palpável a ideia de trabalhar com fotografia usando
telefones, ao menos em um nível mais básico.
A transformação, no
entanto, já se instalou, e com mais ou menos qualidade as pessoas se sentem
quase compelidas a registrar qualquer merdinha possível. Não tô tirando o corpo
fora, não, também fui pego nesse movimento, mas sempre coloquei pra mim mesmo um
certo limite, na tentativa de manter o olhar menos afetado e viver com os
sentidos mediados por si mesmos e não por uma máquina. Gosto muito de
tecnologia, mas com todos os resguardos sobre os quais já falei - e
provavelmente ainda vou falar. Me incomoda muito a ideia, por exemplo, de
passar boa parte de um show com o braço travado numa posição desconfortável pra
filmá-lo e poder “ver depois”. Cacete, pra quê então você pagou pra estar ali
se não tá se permitindo ficar imerso na experiência?
As pessoas vão num
restaurante e a primeira coisa que elas fazem? Foto da comida. Vão pro rolê e
passam mais tempo tirando e postando fotos e vídeos do que interagindo com as
pessoas ao redor. Poderia usar muito mais linhas pra citar exemplos que
corroborem meu ponto, mas acho que já me fiz entendido. Entramos mais
recentemente numa onda ainda mais estúpida de encantamento com efeitos e
imagens criadas por inteligência artificial. Vou falar das IAs em outro
momento, com todo o rancinho que eu guardo nesse coração direcionado pra elas,
mas o ponto é que eis aí mais uma ferramenta tosca distorcendo nossa visão
sobre o mundo. Óbvio, não existe visão pura, tudo na nossa percepção é moldado
por diversos fatores, mas quando você a entrega pra ser filtrada por uma
máquina, acho que se abre mão também da sua própria capacidade de estabelecer
uma relação de troca entre o mundo e sua subjetividade.
Disse tudo isso pra,
enfim, retornar ao ponto inicial. O hobby, no final das contas, não foi a
câmera digital. Ela deu um piripaque e parou de funcionar no começo de 23, e só
consegui alguém pra consertar recentemente. Pouquíssimo tempo antes, porém, impulsionado
pelo monte de coisa que me apareceu sobre fotografia analógica, comprei uma
câmera “point-and-shoot”, a famigerada “saboneteira”, simplona, sem recursos,
perfeita pra um iniciante. Acho que não preciso citar todas as limitações que
uma máquina movida à filme tem, mas só na eventualidade de você ter nascido num
período em que analógicas já eram uma não-coisa, explico.
Você insere o filme,
tira uma foto e avança até ele acabar. Se a câmera for eletrônica, com avanço e
rebobinagem automática, ou totalmente manual, tanto faz, o princípio é mesmo.
Será que a foto ficou ruim? Será que deu certo? A luz ficou boa? Queimou o filme?
Todas essas perguntas só são respondidas depois do rolo revelado, o que te leva
a tomar algum tempo pra entender os fatores que fazem ou não o filme render o
máximo possível.
Eis o xis da
questão. Todo esse processo, que parece contraproducente e nada intuitivo, te
força a estabelecer uma nova forma não só de lidar com o equipamento na sua
mão, mas também com o seu olhar pro mundo ao redor. O que vale a pena ser
fotografado, registrado e ainda por cima atacar sua ansiedade com o tempo que
leva entre todo esse processo e, por fim, a revelação? Acho que nisso tudo a
palavra que me vem à mente é desacelerar. Diminuir o ritmo, esperar o momento
certo, a melhor luz, o prédio mais bonito, o ângulo mais apropriado.
Já não tenho mais a
câmera que comprei no ano passado. Depois dos primeiros 4 ou 5 filmes me senti
confiante pra dar um passo a mais, descolei uma câmera com mais recursos,
testei filmes diferentes e a coisa chegou num ponto em que meus amigos
compraram a ideia e me agraciaram com mais câmeras, cada uma com as suas
peculiaridades e possibilidades, incluída entre elas a máquina que eu tenho
tatuada no braço direito. Eu tô cercado de gente incrível.
Desde que comecei,
de fato muita coisa mudou. Mesmo quando uso o celular pra fotografar, a
preocupação que tenho de entender o melhor possível o que quer que eu vá
registrar se mantém, então em última instância acho que posso afirmar sem
ressalvas que meu objetivo foi alcançado. Num dos meus livros favoritos, Como
Escrever Bem, citado no texto “Cada Página Lida”, o escritor William Zinsser
diz o seguinte: “Não sei quais maravilhas virão nos próximos trinta anos para
tornar duas vezes mais fácil o ato de escrever, mas sei que elas não tornarão a
escrita duas vezes melhor. Isso ainda exigirá o velho hábito de pensar […] e o
manejo das velhas ferramentas da língua”.
Esse livro foi
escrito em 1976. Passado todo esse tempo, a afirmação de Zinsser pode se
traduzir quase universalmente, incluso meu objeto desse texto. Equipamentos
muito mais avançados surgiram, tanto especializados quanto embarcados em outros
dispositivos, o que não fez a fotografia necessariamente melhor, e afetou
inclusive nosso senso de registro e memória. Me refiro, claro, ao mundano,
corriqueiro e “universal”, já que prefiro acreditar que os usos artístico e
profissional da fotografia se resguardam do nosso condicionado desapego às
velhas formas de registro.
Também não sei o que
vem por aí, mas sinto um crescimento no movimento da fotografia analógica. Se
isso vai se manter já são outros quinhentos, mas independente disso espero ao
menos que o cuidado com o olhar e o pé no freio pra que apreciemos o mundo com
mais calma - enquanto ele ainda não foi consumido pelo fogo - continuem. Se
nada disso rolar, que pelo menos sirva pra baixar o preço dos filmes. Essa
merda tá cara pra cacete.
Até a próxima.