quinta-feira, 29 de agosto de 2024

Retratos do Tempo Presente

 


Em 2023 me deu na telha começar um hobby novo. Temos há alguns anos uma câmera digital bastante robusta que meu pai comprou usada de um amigo fotógrafo, que um tempo depois inclusive se ofereceu pra comprar de volta, caso pensássemos em nos desfazer dela. Não só não pensamos como continuamos usando com bastante frequência, então resolvi explorar os recursos disponíveis e quem sabe, de repente, aprender um pouco sobre fotografia.

Como os algoritmos não estão pra brincadeira, mal comecei a buscar vídeos sobre iluminação, velocidade de obturador, ISO e outras particularidades desse mundo e uma enxurrada de conteúdo relacionado começou a brotar em todos os meios possíveis. Curiosamente, o que acabou por ficar mais em evidência no meio disso tudo foi um volume considerável de páginas e perfis de rede social voltados pra fotografia analógica.

Lembro que até meus 11 ou 12 anos tínhamos uma máquina cinza-prateada que nos acompanhou por anos. Não me recordo de marca ou modelo, mas praticamente toda a minha infância foi registrada através dela. Que privilégio é ter registros da própria vida. Não só as paredes de casa sustentam quadros com fotos de diversas fases do pequeno André e companhia limitada como temos uma gavetona numa estante de livros cheia de outros registros ainda mais velhos do que eu.

Pouco tempo depois migramos pras digitais, e vejam só que curioso: entre defeitos e trocas de computadores, acabamos perdendo uma quantidade considerável de imagens feitas com elas. Muita coisa ainda sobrevive num HD externo que resiste ao teste do tempo, mas muito menos do que havia antes. As fotografias reveladas, por sua vez, não, continuam aqui, com um pouco menos de nitidez do que um dia tiveram, mas ainda claras o bastante pra quase nos sentirmos novamente nos “quandos” e “ondes” registrados.

No fim das contas, até as digitais acabaram sendo aposentadas, e os telefones se prontificaram a ocupar o espaço vazio. Aí se criou, então, ou ao menos assim considero, o declínio não só do sentido do registro, mas do nosso próprio olhar sobre as pessoas, coisas, situações e paisagens. Tô falando de uma coisa geral, um blackout em massa, provocado em favor da tão desejada praticidade. Ao longo dos anos a qualidade das câmeras telefônicas evoluiu consideravelmente, e hoje não só é possível como bastante palpável a ideia de trabalhar com fotografia usando telefones, ao menos em um nível mais básico.

A transformação, no entanto, já se instalou, e com mais ou menos qualidade as pessoas se sentem quase compelidas a registrar qualquer merdinha possível. Não tô tirando o corpo fora, não, também fui pego nesse movimento, mas sempre coloquei pra mim mesmo um certo limite, na tentativa de manter o olhar menos afetado e viver com os sentidos mediados por si mesmos e não por uma máquina. Gosto muito de tecnologia, mas com todos os resguardos sobre os quais já falei - e provavelmente ainda vou falar. Me incomoda muito a ideia, por exemplo, de passar boa parte de um show com o braço travado numa posição desconfortável pra filmá-lo e poder “ver depois”. Cacete, pra quê então você pagou pra estar ali se não tá se permitindo ficar imerso na experiência?

As pessoas vão num restaurante e a primeira coisa que elas fazem? Foto da comida. Vão pro rolê e passam mais tempo tirando e postando fotos e vídeos do que interagindo com as pessoas ao redor. Poderia usar muito mais linhas pra citar exemplos que corroborem meu ponto, mas acho que já me fiz entendido. Entramos mais recentemente numa onda ainda mais estúpida de encantamento com efeitos e imagens criadas por inteligência artificial. Vou falar das IAs em outro momento, com todo o rancinho que eu guardo nesse coração direcionado pra elas, mas o ponto é que eis aí mais uma ferramenta tosca distorcendo nossa visão sobre o mundo. Óbvio, não existe visão pura, tudo na nossa percepção é moldado por diversos fatores, mas quando você a entrega pra ser filtrada por uma máquina, acho que se abre mão também da sua própria capacidade de estabelecer uma relação de troca entre o mundo e sua subjetividade.

Disse tudo isso pra, enfim, retornar ao ponto inicial. O hobby, no final das contas, não foi a câmera digital. Ela deu um piripaque e parou de funcionar no começo de 23, e só consegui alguém pra consertar recentemente. Pouquíssimo tempo antes, porém, impulsionado pelo monte de coisa que me apareceu sobre fotografia analógica, comprei uma câmera “point-and-shoot”, a famigerada “saboneteira”, simplona, sem recursos, perfeita pra um iniciante. Acho que não preciso citar todas as limitações que uma máquina movida à filme tem, mas só na eventualidade de você ter nascido num período em que analógicas já eram uma não-coisa, explico.

Você insere o filme, tira uma foto e avança até ele acabar. Se a câmera for eletrônica, com avanço e rebobinagem automática, ou totalmente manual, tanto faz, o princípio é mesmo. Será que a foto ficou ruim? Será que deu certo? A luz ficou boa? Queimou o filme? Todas essas perguntas só são respondidas depois do rolo revelado, o que te leva a tomar algum tempo pra entender os fatores que fazem ou não o filme render o máximo possível.

Eis o xis da questão. Todo esse processo, que parece contraproducente e nada intuitivo, te força a estabelecer uma nova forma não só de lidar com o equipamento na sua mão, mas também com o seu olhar pro mundo ao redor. O que vale a pena ser fotografado, registrado e ainda por cima atacar sua ansiedade com o tempo que leva entre todo esse processo e, por fim, a revelação? Acho que nisso tudo a palavra que me vem à mente é desacelerar. Diminuir o ritmo, esperar o momento certo, a melhor luz, o prédio mais bonito, o ângulo mais apropriado.

Já não tenho mais a câmera que comprei no ano passado. Depois dos primeiros 4 ou 5 filmes me senti confiante pra dar um passo a mais, descolei uma câmera com mais recursos, testei filmes diferentes e a coisa chegou num ponto em que meus amigos compraram a ideia e me agraciaram com mais câmeras, cada uma com as suas peculiaridades e possibilidades, incluída entre elas a máquina que eu tenho tatuada no braço direito. Eu tô cercado de gente incrível.

Desde que comecei, de fato muita coisa mudou. Mesmo quando uso o celular pra fotografar, a preocupação que tenho de entender o melhor possível o que quer que eu vá registrar se mantém, então em última instância acho que posso afirmar sem ressalvas que meu objetivo foi alcançado. Num dos meus livros favoritos, Como Escrever Bem, citado no texto “Cada Página Lida”, o escritor William Zinsser diz o seguinte: “Não sei quais maravilhas virão nos próximos trinta anos para tornar duas vezes mais fácil o ato de escrever, mas sei que elas não tornarão a escrita duas vezes melhor. Isso ainda exigirá o velho hábito de pensar […] e o manejo das velhas ferramentas da língua”.

Esse livro foi escrito em 1976. Passado todo esse tempo, a afirmação de Zinsser pode se traduzir quase universalmente, incluso meu objeto desse texto. Equipamentos muito mais avançados surgiram, tanto especializados quanto embarcados em outros dispositivos, o que não fez a fotografia necessariamente melhor, e afetou inclusive nosso senso de registro e memória. Me refiro, claro, ao mundano, corriqueiro e “universal”, já que prefiro acreditar que os usos artístico e profissional da fotografia se resguardam do nosso condicionado desapego às velhas formas de registro.

Também não sei o que vem por aí, mas sinto um crescimento no movimento da fotografia analógica. Se isso vai se manter já são outros quinhentos, mas independente disso espero ao menos que o cuidado com o olhar e o pé no freio pra que apreciemos o mundo com mais calma - enquanto ele ainda não foi consumido pelo fogo - continuem. Se nada disso rolar, que pelo menos sirva pra baixar o preço dos filmes. Essa merda tá cara pra cacete.

Até a próxima.


segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Cada Página Lida

 


Seguindo na onda de mudanças deste último ano, me coloquei um objetivo claro e irrevogável, retomar o hábito de leitura. Quem me conhece há mais tempo sabe que desde a infância consumir literatura é minha maior habilidade e meu maior gosto, além de ser também meu grande refúgio.

Em não raras ocasiões passava 6, 7 horas lendo ininterruptamente. Fui uma criança e um adolescente - não que hoje seja muito diferente - pouco social, por uma série de fatores que me reservo o direito de não falar sobre, só porque sim. Apesar das muitas possibilidades de entretenimento individual pra uma criança do início do século XXI - ainda que não tantas quanto hoje - foram as páginas e páginas de papel Pólen preenchidas com fonte Register que mais ocuparam meu tempo e meu imaginário até a faculdade.

Quando iniciei a graduação, vivendo numa nova cidade com todo um novo mundo de sociabilidades se abrindo, minhas atividades solitárias foram ficando cada vez mais de lado - vide “Hoje Eu Quero Sair Só” - e os livros, que até então eram de tudo quanto é tipo, foram aos poucos se convertendo em receituários, volumes sobre administração de restaurantes e calhamaços enormes sobre História da Alimentação, dos quais boa parte ainda mantenho na minha biblioteca pessoal, apesar de não atuar mais profissionalmente como cozinheiro.

Não que a temática da alimentação já não me interessasse antes, mas era natural que estudando Gastronomia o interesse aumentasse e ocupasse um espaço quase absoluto na minha vida. Uma das coisas que falo pouco sobre esse período é que a cozinha, pra além de um gosto, beirou uma certa obsessão, e o afastamento no fim das contas foi bom, já que permitiu recriar minha relação com a cozinha, ainda que continue sendo excessivamente rigoroso comigo mesmo. Enfim, a literatura.

Muitos livros me marcaram em diferentes momentos da vida, mas quatro obras tiveram um impacto considerável na forma que penso e vejo o mundo, aqui dispostos numa linha mais ou menos temporal de leitura: “O Guia do Mochileiro das Galáxias”, “A Divina Comédia”, “O Manifesto do Partido Comunista” e “Como Escrever Bem”. Vamos a eles.

O Guia, como já mencionei no “A Vida, O Universo e Só Mais Umas Coisinhas”, título inclusive inspirado na obra deste autor, é uma série de ficção científica escrita por Douglas Adams, responsável também pela bilogia do detetive Dirk Gently e o já citado “O Salmão da Dúvida”, além de ter colaborado consistentemente com a produção da - excessivamente, desculpem-me os fãs - longeva série Doctor Who e com o grupo britânico Monty Python, alicerce de muito do que se entende hoje como humor.

Apesar de fã de seu estilo humorístico, carregado de sarcasmo e nonsense, o que mais me marcou foi a forma como Adams construiu seus universos literários. Ainda que cientificamente ficcionais, tudo é muito real, na dimensão de que, se algum absurdo envolvendo burocracia entre civilizações interplanetárias ou a revelação cósmica de que de fato as perguntas sobre o sentido da vida fazem tão pouco sentido quanto as respostas, não nos espantaríamos completamente se qualquer dessas coisas acontecesse numa tardezinha gelada de domingo como a de hoje. Convenhamos, tem muita coisa pior acontecendo nesse exato momento e o mundo continua assistindo imóvel. Poderia escrever um texto exclusivamente sobre ele e sua obra, mas hoje meu intuito é ressaltar aquilo que mais me marcou em cada livro, então prossigamos.

“A Divina Comédia” foi um caso curioso. Fiz o ensino médio em uma escola construtivista, que ao longo do processo de ensino-aprendizagem desenvolvia diversos projetos com os alunos, entre eles a escrita de uma monografia. O objetivo era que estivéssemos preparados pra pesquisa e escrita científica quando seguíssemos para nossas graduações. A maioria dos meus coleguinhas - alguns deles talvez estejam lendo esse texto, então olá coleguinhas - escolheram temas bastante coerentes pra quem tem 16 anos, mas eu não. Talvez já tenha mencionado esse fato, mas fui um jovem vaidoso com a imagem que tinha da minha própria inteligência. Deus do céu, como eu era arrogante.

Essa peculiaridade colocou na minha cabeça que seria sensato, no segundo ano do ensino médio, escrever uma monografia sobre uma das obras mais complexas da história da literatura. Não tenho qualquer lembrança do trabalho em si, ainda que me recorde de ter tido certo êxito no resultado final, dadas as proporções do que um adolescente comum seria capaz de produzir. Independente disso, o ponto foi que Dante Alighieri me marcou.

Existe uma profundidade de referências e debates contidos n’A Divina Comédia que talvez, na literatura, só se encontre paralelo de relevância quando colocada frente a frente com a Bíblia. Pode ser forte fazer essa afirmação, mas a faço sem medo. Considere ainda que Dante escreveu boa parte da obra vivendo em exílio, participando ativamente das intensas movimentações políticas do que veio a se tornar o Estado italiano, em meados do séc. XIV, com poucos recursos e acesso à materiais referências, e a coisa se torna ainda mais impressionante.

Em contraste a centena de “cantos” da Comédia, por sua vez, o Manifesto do Partido Comunista me deixou uma marca pelo poder de síntese de Marx e Engels. Goste ou não dos dois, seja ou não de esquerda, o impacto causado por uma obra tão diminuta em extensão é estarrecedor e inegável. Li pela primeira vez por volta dos 14 anos a mesma cópia que ainda ocupa um espaço na minha estante de livros. Não que eu precisasse ser convencido de nada, considerando o contexto em que fui criado, mas foi meu primeiro contato com uma obra de teoria social e a porta de entrada pra busca por mais conhecimentos sobre os “comos” e “por quês” da vida em sociedade.

Torço pelo dia em que ninguém mais dirá “nossa, esse livro é tão atual”, já que o grande ponto e problema não é a atualidade do texto, mas a compreensão de que pouca coisa mudou do séc. XIX pra cá. Troque tecnologias digitais por manuais, mecânicas e analógicas e voilà, nós, proletários e pobres mortais, continuamos empurrados pelas mesmas mãos que ditavam as regras para os trabalhadores com quem Karl e Friedrich militavam, conversavam e debatiam.

Chego, por fim, ao livro que virou a chave não só na minha percepção sobre o fazer da escrita, mas também sobre como olhar o mundo e encontrar relevância no que parece ordinário. Lançado originalmente em 1976, “Como Escrever Bem” não é só um manual de redação. Como o próprio autor, o estadunidense William Zinsser, comenta em diversos momentos ao longo do texto, seu objetivo não é só levar a quem lê um conjunto de regras a serem seguidas, mas é proporcionar reflexões sobre como encontrar sua própria voz e estilo e construir uma narrativa que seja capaz de tornar até o tema mais corriqueiro em algo com o qual o leitor consiga se conectar.

Não sei exatamente com quais palavras explicar muito além disso, mas cada página lida me impulsionava ainda mais a olhar pro que eu havia produzido até então e as diversas melhorias que poderia fazer não só no material, mas na própria visão das coisas sobre as quais escrevi. Esse é um livro tanto pra quem produz literatura, seja ela do tipo e com o intuito que for, quanto pra qualquer pessoa que busque minimamente se manter atualizada e em movimento diante de suas próprias percepções frente a vida. Se puder, leia.

Outros muitos livros me marcaram, obviamente, mas os maiores impactos sem dúvida foram desses. Como falei sobre “O Guia”, não seria nenhuma provação escrever textos únicos sobre cada um, mas não me dou com a ideia de virar um resenhista ou ensaísta. Prefiro manter a vocação de palpiteiro semi-profissional e entregar impressões sucintas e nada modestas sobre o que eu entendo como bom. Seguirei lendo e acreditando que talvez, um dia, esses livros mudem. Até lá continuarei espalhando as palavras contidas aqui, dividindo um pouquinho das inspirações que me trouxeram até esse momento.

Até a próxima.