segunda-feira, 29 de abril de 2024

Da Originalidade

 


Aos poucos que ainda não sabem, já que tive muito afinco na divulgação, co-criei, apresentei e vez ou outra editei um maravilhoso podcast sobre cinema de baixíssimo orçamento, discutindo filmes de qualidade quase sempre condizente com suas restrições orçamentárias e que, em alguns casos, esculpiram marcas indeléveis no meu ser e nos de todos que participaram, fixa ou esporadicamente, dos 30 episódios lançados.

Apesar dos vários chutes e voadoras de vacilo que nos atingiram em cheio, em especial ao já não tão jovem Gabriel - o Guedo, Guedollas, Gabigollum e tantos outros apelidos fofos que eu cunhei ao longo dos nossos quase 10 anos de amizade - que teve a tarefa hercúlea de editar e ajustar as trocentas horas de material que gravamos, guardamos com muito carinho todo o riso, de alegria ou nervoso, que o melhor do pior do cinema poderia nos ter proporcionado. Agora, pra surpresa de todos, não vim aqui hoje pra falar sobre o Cinemasso, mas sim das tranqueiras às quais a gente se submeteu e sobre criatividade e originalidade.

Acredito que não precise nem dar exemplos quando relembro aqui que nos últimos anos tivemos uma enxurrada de remakes e tentativas de trazer de volta franquias há muito esquecidas ou que sequer precisavam ser refeitas e continuadas, e tenho certeza de que só de ter lido isso pelo menos uns três exemplos tenham vindo à sua mente. A Disney, especialmente, em sua incansável busca pelo monopólio absoluto do entretenimento, se vale muito dessa prática, retroalimentada por uma demanda que ela mesma, junto com outros grandes bastiões da indústria - no pior sentido possível - ajudou a criar, na tentativa de manter quem consome seus produtos incessantemente engajados.

Por que não, então, unir o útil ao agradável e só requentar infinitamente o que já deu certo, correndo riscos mínimos, ao mesmo tempo que fisga a audiência com facilidade ao alimentar os anseios de afirmação de seus gostos e de pertencimento ligado ao passado, se escorando na nostalgia mais tosca possível? Eis o entretenimento no século 21. Agora, antes de continuar, quero deixar bem claro que de forma alguma eu julgo quem consome essas coisas, até porque seria de uma hipocrisia sem tamanho. Minha crítica é direcionada à quem produz. Por que isso, então, tem a ver com o Cinemasso? Explico.

Se você entrar na nossa página no seu streaming ou rede social preferida - que nesse caso só pode ser o Instagram, já que é único lugar com um perfil do podcast - não tenho dúvida de que vai lhe ocorrer algo como “meu Deus, que filmes ridículos são esses”? Não discordo, ao menos na maioria dos casos, mas existe uma coisa que os une e que, mesmo te causando estranheza, há de se concordar: são ideias muito originais.

A década de 80 talvez seja a mais frutífera nesse sentido, um período histórico em que, sim, muitas ideias eram ruins ou imbecis, mas nunca o suficiente pra serem ignoradas. Os gêneros que mais se beneficiaram disso foram a ação, a comédia e o terror, e ainda que muita gente tenha vergonha de admitir, com certeza tem um filme xodó que se enquadra em um deles e que, se fosse feito hoje, estaria relegado ao mais absoluto fracasso. Me ponho como exemplo quando afirmo, sem medo de ser feliz, que Stallone Cobra é um dos meus filmes preferidos. Se não viu, veja, pois é uma obra que exemplifica muito bem meu ponto.

Pensando seu conceito, nada muito fora do tradicional filme de ação policial estadunidense. Mocinha perseguida por um bandido implacável e protegida pelo herói improvável, renegado por grande parte de seus pares, mas que carrega consigo a chama da justiça. O que diferencia Cobra dos outros é que, apesar da ideia entregar que vai ser só mais um filme genérico e previsível - e não deixa de ser, apesar dos pesares - existe uma tentativa genuína de inserir elementos que construam aquele mundo de forma diferente do que se encontra por aí. O que começa como uma narrativa um tanto comum se torna um festival de “mas de onde veio isso?” e “por que diabos esse cara fez aquilo?”, entre outros questionamentos que tem fazem duvidar se aquele filme é o mesmo que você começou a assistir. Mas agora você precisa de mais.

Entre as muitas maluquices, as minhas preferidas são, sem dúvida, o bizarríssimo ensaio fotográfico de Brigitte Nielsen com robôs de borracharia do interior, o carro velho e pesado do Stallone, completamente deslocado daquele universo como seu próprio protagonista, seus hábitos peculiares como cortar pizzas com tesoura, mascar palito de fósforo e fazer ele mesmo o retrato-falado do vilão. É tudo fora do tom e sem sentido, mas ainda assim quanto mais a história avança, mais a sensação de estranhamento diminui, porque naquele microcosmo de policiais de sobretudo num calor de 40 graus, como tudo é exagero, nada fica realmente fora do tom.

Agora, que lugar teria um filme como Stallone Cobra em 2024? É altamente improvável que um estúdio com alguma capacidade financeira tivesse qualquer impulso de injetar dinheiro na produção de algo parecido, como a Warner fez em 86 com o roteiro co-escrito pelo próprio Sly. É aí que mora a morte da expressão artística. Definir o que é ou não arte é um debate complexo e que requer cuidado e profundidade aos quais não me proponho nesse momento, o elemento dessa discussão que quero levantar aqui é o da construção de referências. A expressão artística, mesmo quando não mediada por um ferramentário técnico complexo, pode ter um alto grau de complexidade no seu resultado, mas pra que isso ocorra é necessário que o autor tenha uma considerável bagagem referencial.

Como essa bagagem se constrói, então? A resposta mais do que óbvia é consumir cada vez mais coisas, das mais variadas perspectivas, pra que seu referencial se complexifique e a criticidade do olhar se aprofunde. Qual é o efeito, então, de estarmos num momento de produção como o atual? As mídias de massa despejam tanto conteúdo homogêneo que existe pouquíssimo espaço pra que a criatividade respire, e quem busca criar algo com algum nível de originalidade fica relegado aos espaços “underground”. E aqui não me refiro apenas ao cinema, mas a todo tipo de expressão, artística ou não.

Transporte agora esse preceito pra outro campo. Pensemos no caso da ciência política. Quanto exatamente você conhece do referencial teórico que constrói o pensamento ao redor das coisas que você critica? Extrapolando ainda mais, o quanto você tem de embasamento pra defender sua própria visão de mundo? Se todo debate ou temática está sujeito ao processo de homogeneização, não estaria então todo o referencial sujeito também ao mesmo processo?

É claro que se pode argumentar que tudo, ou ao menos parte considerável, do que foi produzido ao redor desse processo, no passado ou no presente, continua disponível, mas em quantos espaços é possível se ter acesso à essas coisas? Quando você vai a uma livraria, quais são os primeiros títulos que você encontra próximos à entrada? Quantos filmes de produtoras pequenas ou independentes estão passando no cinema mais próximo da sua casa? Que shows são divulgados nos principais veículos de mídia que você acessa? Você sequer busca transpor a barreira da produção industrial de gostos pra descobrir o que se faz além dela?

Essas são apenas algumas das perguntas que se pode levantar, e como sempre meu papel é tentar te oferecer um espaço pra se questionar. Tenho minhas respostas e convicções sobre o tema, e algumas estão contidas nas entrelinhas desse texto. Ser original ou produzir originalidade num mundo com o tanto que já foi feito não é tarefa simples, mas nunca foi, especialmente quando não havia nada sobre o que refletir ou referenciar, então, apesar de quem lucra forte com essa régua média querer estabelecer algum tipo de limite pro que é relevante ou merece atenção, acho que pra gente a coisa quase chegou de bandeja.

Tem uma frase, que provavelmente ouvi no Choque de Cultura, apesar de não lembrar em qual episódio e sequer estar disposto a procurar, que diz que se tudo fosse genial, tudo seria medíocre - aqui com seu significado correto, de mediano - e que a gente precisa das coisas que são ruins pra ter parâmetro sobre o que é bom. Mas como pode haver o ruim sem experimentação, se tudo já é produzido sob parâmetros formuláicos? O que eu quero dizer é que a gente precisa estar aberto pra todo tipo de coisa. A gente só tem certeza se é bom ou não se estiver disposto a consumir ou produzir algo sem ficar criando expectativas abstratas. Se for bom, ótimo, aquilo te entregou uma nova referência positiva. Agora, caso contrário, paciência, a vida também tá cheia de momentos de merda que a gente não pode evitar. Nessas horas é que eu costumo tirar as melhores ideias pra textos. A vida entrega originalidade o tempo todo e a gente nem se dá conta.

Até a próxima.