sábado, 27 de janeiro de 2024

Caipirinhas, Conhecimento e a Consagração da Sensatez

 



Se bem me recordo, no texto “Será Se a Internet Foi Longe Demais?” falei brevemente sobre a incapacidade que se instala nas pessoas de refletir por um segundinho se o que elas vão falar em algum lugar é realmente necessário ser falado, ou se alguém tem qualquer interesse naquilo, e sequer se ela conhece o suficiente pra sair por aí falando sobre. Não raramente a resposta é não, e sendo bem sincero nem quem fala e nem quem dá ouvidos - ou vistas - tem muita culpa no cartório.

Isso porque a forma como a evolução da comunicação ocorreu deu a entender que todo mundo devia dar seu pitaco sobre as coisas, e isso não poderia ter sido um equívoco maior de interpretação. Você nesse momento pode estar pensando “ué, meu parceiro, mas não é exatamente isso que você está fazendo”? Possivelmente a resposta é sim, o que faz de mim um grandessíssimo hipócrita, sob um certo ponto de vista, mas acredito que exista uma diferença crucial.

Um fenômeno surgido de forma quase paralela - talvez até anterior - à internet foi a concepção de que essa querida seria a maior de todas as enciclopédias, com o conhecimento disponível incessantemente pra quem quisesse acessá-lo. Isso não deixa de ser verdade, afinal, quase qualquer coisa que você queira pesquisar pode ser encontrada. O que convenientemente não se discutiu, e talvez sequer tenha sido mencionado pelas pessoas que deveriam mencionar esse tipo de coisa, é que informação não é conhecimento.

Imagine o seguinte, você entra na dita-cuja e digita “caipirinha”, pretendendo descobrir como fazer uma, seco pra se acabar na birita num sábado irritantemente quente no final de janeiro. O que você encontra rapidamente é uma receita simples, objetiva, que indica os ingredientes e o passo-a-passo sem palestra. Perfeito, agora você pode encher a lata e capotar no sofá enquanto algum programa sabadesco rola indiferente na TV.

O que essa receita nunca te mostrou, no entanto, é que existe uma infinidade de minúcias que você poderia - e talvez até devesse - levar em consideração para, ao invés de tomar um troço que você presumiu ser uma caipirinha, de fato tomar uma. Eis aqui a grande questão dessa analogia imbecil. Você pode pensar “bom, André, a maioria das pessoas não dá a mínima pra essa baboseira toda, então por que você não vai se ocupar de escrever sobre algo relevante”?

A relevância aqui está exatamente na ideia de que a receita, pura e simples, é informação, sem filtro e sem parâmetros. Conhecimento aqui seria saber qual cachaça seria uma boa opção, e que existem boas cachaças com preços não tão distantes daquele acendedor de churrasqueira que você anda bebendo - e não se preocupe, sem julgamentos, eu também já cometi essas atrocidades -, que pressão demais no limão amarga a caipirinha e que não adianta botar mais açúcar do que o recomendado porque ele não tira acidez (essa também serve pra você que faz isso no molho de tomate achando que a nonna tá certa. Aqui eu julgo sim).

Dentre as diversas definições de conhecimento que é possível encontrar em dicionários, a que mais me chamou a atenção foi “ato de perceber ou compreender por meio da razão e/ou da experiência”. Tinha uma outra sobre recibos de bagagens aéreas e navais, mas isso é completamente irrelevante pra essa reflexão. Minha definição pessoal do termo se daria mais ou menos por “desenvolver senso crítico sobre o que se consome e correlacionar diversas informações, a fim de dar sentido às mesmas, respaldadas em algum nível de observância prática”. Acho que dá pro gasto e representa de forma convincente meu ponto.

Volto, por fim, à colocação inicial de que acredito haver uma diferença crucial entre o exercício da articulação de ideias variadas sobre temas diversos à que eu me proponho, vez ou outra com um nível questionável de qualidade - só talvez eu me cobre demais - com o que se faz por aí, gerando não-debates, não-dilemas e questionamentos que não possuem qualquer relevância.

Existe uma série de condições práticas e objetivas que me propiciaram contato com um sem-número de ideias, conteúdos, pessoas e pontos de vista, e a própria possibilidade de levantar essas questões. Essas condições nem sempre são replicáveis, por uma série de motivos que eu estaria alegremente aberto a falar sobre em outro espaço, caso interesse a alguém, mas existe uma condição que, ainda que um pouco complexa, é replicável: antes de aprender sobre algo, devemos estar abertos à possibilidade de aprender a aprender, afinal de contas somos seres dialéticos, precisamos da contradição pra dar sentido pras coisas.

Nossas formas de ensino são, de forma geral, ultrapassadas, e o tão necessário estímulo ao questionamento - e especialmente ao autoquestionamento - é deixado de lado há décadas, num processo que nos empurrou goela abaixo uma ode ao orgulho em que, caso não se saiba de algo, tente pelo menos fingir que sabe, como se o desconhecimento fosse um vacilo irremediável. O problema resultante é um tsunami de gente cheia de confiança se valendo disso pra falar o que quiser por aí, e bom, não preciso dar exemplos, você com certeza conhece, pessoalmente ou não, uma meia dúzia delas.

Meu apelo com toda essa divagação é que tentemos, de alguma forma, ser agentes de transformação desse processo. Não é uma tarefa simples, e com certeza é MUITO irritante, mas é como dizem por aí, não existe espaço vazio, então sejamos fortes pra preencher esse buraco com qualquer baldinho de sensatez que a gente tiver pra compartilhar, sem nos esquecermos, claro, que também estamos sujeitos ao mesmo processo. Se dê ao luxo de ouvir o que os outros têm a dizer.

Fiquei tentando elaborar algum pensamento final, uma forma de passar a régua nesse assunto, mas acho que seria muita presunção da minha parte achar que posso encerrar qualquer coisa, então me resigno em não fazer ideia do que mais dizer.

Até a próxima.

sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

A Música do Obsoleto



 

Tentando dar início à pequenas mudanças, aderindo ainda que um pouco contrariado ao ditado “ano novo, vida nova”, a primeira semana de 2024 marcou uma “revolução” tecnológica na minha vida: aderi ao streaming musical.

Não posso negar que, mesmo gostando da experiência, tenho receio de esquecer da conexão com a música que o hábito de pesquisar, garimpar e baixar uma a uma as faixas e álbuns que habitavam meu telefone proporcionava. Óbvio que utilizar os meios digitais não impede que ela permaneça, mas sendo uma pessoa de hábitos, estaria mentindo se dissesse que não vou pensar nisso.

Como boa parte dos jovens da minha geração, fui tomado de assalto pelo lançamento dos players de mp3. No começo, as músicas baixadas - por meios TOTALMENTE NÃO ILEGAIS, Abin, não se preocupe - eram quase sempre só aquelas que não estavam em nenhum CD ou LP que a gente tinha em casa, e como meus pais amam música tanto quanto eu, essas opções se restringiam aos gêneros que eles não tinham hábito de ouvir, o que fazia meu aparelhinho da extinta Creative - com seus insanos 1GB de armazenamento - o mais próximo que um adolescente de 13 anos poderia chegar de hard rock, metal e rebeldia.

Os anos passaram, as condições melhoraram e fui agraciado com o ápice da tecnologia de áudio portátil: iPods, esses sim os verdadeiros responsáveis pelo hobby de garimpo musical. iPods não só exigem um programa específico pra receberem arquivos como também permitiam um nível nunca antes visto de organização deles. Além dos óbvios nomes de faixa, álbum e artista, era possível inserir letras das músicas, que passavam progressivamente na tela à medida que a música corria, capas, gênero e mais uma série se informações que raramente interessam a alguém num arquivo digital.

Não raramente passava 4 ou 5 horas pulando entre páginas do YouTube, sites de compartilhamento de arquivos e versões pré-históricas de streamings - pesquise sobre o GrooveShark - pra encontrar músicas em boa qualidade ou tentando achar mais informações sobre alguma banda obscura numa internet que ainda, caso não recordem, engatinhava. Isso, inclusive, é tema pra texto num próximo momento, o quanto a internet se transformou nos últimos 10 anos. Não parece tanto, mas com certeza é bastante pra que ela tenha praticamente se tornado outra coisa. Enfim, voltemos pro tópico.

A rusticidade e dificuldade do processo eram tão grandes que ele nem sequer poderia chegar perto de substituir a mídia física, e não à toa o garimpo digital andou por anos junto com o de CDs, quando o dinheiro permitia. A extinta loja Ferrs - junto com as livrarias do Gonzaga - era uma das poucas coisas que realmente me interessavam quando vinha passear em Santos, já que a praia nem de perto me é atrativa. Passava nela quanto tempo fosse possível, e ainda hoje guardo grandes álbuns que só lá eram possíveis de serem encontrados nessa província litorânea.

Todos esses processos estabeleciam uma proximidade com a música que provavelmente o streaming nunca seja capaz de reproduzir. As horas buscando músicas específicas e álbuns que não chegavam por preços razoáveis através das importadoras e as conversas com vendedores em lojas de música quase que nos forçavam a ir de encontro também com as histórias e minúcias do que estávamos consumindo, estabelecendo um elo profundo entre consumidor, criador e criatura.

Como eu disse antes, não acredito que os serviços de distribuição digital vão acabar em definitivo com esse vínculo, até porque a música - não só ela, mas a arte de forma geral - se ocupa desde sempre de preencher as rachaduras que a solidão e outras tristezas cavucam no coração, mas também acolhe sem questionamentos os momentos felizes, e essa capacidade não é o meio que é capaz de tirar dela.

O que me deixa intrigado, muito mais do que receoso, é a possibilidade de escapar de nós toda essa cadeia de pequenos momentos e prazeres que tornavam cada descoberta única e especial, nos permitiam estabelecer vínculos tangíveis com as pessoas que orbitavam esse processo e intangíveis com cada indivíduo envolvido na criação do que quer que você estivesse conhecendo. Os algoritmos de recomendação e curadorias de sabe-se lá quem dentro dos streamings tem seu papel e lugar na prateleira de possibilidades, claro, mas sinceramente nenhum gera essa sensação fascinante de descoberta.

É certo que eles permitem a massificação do acesso à música, coisa que até não muito tempo atrás só era possível, pra um volume considerável de pessoas, através do rádio, selecionado e filtrado por quem estivesse decidindo o que seria tocado. No final das contas, então, a cobra não estaria mordendo o próprio rabo? Enfim, outro assunto pra outra hora. Acho que estou começando a dever textos demais. Pelo menos agora posso compartilhar belíssimos cards e retrospectivas de final de ano nos stories do Instagram.

Até a próxima.