quinta-feira, 15 de junho de 2023

A Memória É Dicionário de Nós Mesmos

 



Não sei qual é minha lembrança mais antiga. Na profusão de imagens que vêm à minha mente, nenhuma reside em um ponto concreto do passado, mas ainda assim a clareza é estarrecedora. Um pouco porque as fotografias que decoram as paredes de casa carregam os fragmentos dessa clareza, e passar por elas diariamente impede que as imagens se desfaçam na minha mente.

Outro tanto porque felizmente fui criado em um ambiente em que se ensina que o passado não é só uma foto envidraçada num porta-retrato empoeirado. A memória, tal qual um dicionário de nós mesmos, serve pra ser consultado sempre que o significado das coisas não parecer mais tão claro.

Os filmes que a memória projeta pra mim são curtos, mas todos carregados de significado. Uma moto de pedal preta, vermelha e amarela cruzando o quintal ainda sem azulejos, eu e minha prima-irmã derretendo os ovos de Páscoa na luz do Sol, com medo de usar o micro-ondas e causar um acidente, olhar minha mãe por detrás do balcão mexendo a cobertura do bolo de cenoura e andar na beira do rio com o meu pai, procurando e catando caranguejinhos, pra depois soltá-los e ir beber Tubaína numa náutica próxima.

Essas memórias, ainda que provavelmente sejam as mais antigas, tem uma nitidez estarrecedora. O que será que determina quais lembranças vão se instalar de forma mais sólida? Não sei se tem uma razão. Mas aqui reforço uma questão que sempre coloco na mesa: não acredito que deva haver uma razão específica. Algumas coisas são como são, e a gente acaba direcionando energia demais tentando abstrair sobre questões que fogem da capacidade humana de entendê-las plenamente. Talvez algum dia isso mude, mas é isso que temos pra hoje, melhor nos acostumarmos.

Além do mais, nem toda memória é positiva. A vida também é carregada de imagens do luto, da perda, dos erros cometidos, das desculpas não dadas e dos amores não demonstrados. Às vezes é meio barra-pesada estar vivo. E tudo bem não estar em paz com as recordações. A gente vive numa sociedade tão impregnada de uma falsa ideia de felicidade constante que esquecemos que, sendo humanos, os sentimentos negativos também são perfeitamente naturais e a gente precisa conviver com eles. A sujeira empurrada pra debaixo do tapete continua lá, se acumulando, atacando sua rinite e criando um calombo pra você tropeçar.

Acredito que a memória seja muito mais sobre gerenciar a falta de paz que ela eventualmente nos proporciona do que se apegar à alguma dimensão dela e acreditar que as coisas são exatamente como a gente acha que se lembra. Se você perguntar pra alguém sobre um momento que viveram juntos, é provável que os eventos sejam narrados de forma completamente diferente do que eram na sua cabeça. Recordar é muito mais sobre sensações e sentimentos do que sobre concretude, e é natural que cada um sinta os momentos de forma única.

No fim das contas, acho que o ponto não seja exatamente ficar em paz com as lembranças, mas entender como gerenciar a falta dela. As coisas ruins deveriam nos ensinar tanto quanto as boas, e talvez elas também precisem estar emolduradas e penduradas nas paredes da nossa mente, como placas que nos direcionam pra sala onde bate a luz do Sol, cheia de retratos dos dias mais leves.

Entre carregar os fardos mais pesados e as alegrias mais raras, a memória vai se escrevendo pra nos permitir entender e abraçar o agora, sem abrir mão de estarmos preparados pro que vem pela frente, afinal, agora pode até ser noite, mas o dia sempre chega. É melhor estar pronto pra luz não te cegar.

 

quarta-feira, 7 de junho de 2023

Histórias que Me Contam ou Como Aprendi a Ler o Mundo

 



Assisti um bom filme, recentemente. Não é nem de longe um filme grandioso. Mas é bom. Muito bom. O nome original é “The Tender Bar”, e veio pra cá como “Bar, Doce Lar”. Amo traduções brasileiras. Enfim, o filme. O enredo é baseado na história real do escritor J.R. Moehringer. Você provavelmente nunca ouviu falar dele, e tudo certo, isso não é uma questão, aqui, muito menos o ponto desse texto.

Aí te pergunto, quem é esse cara? E pode deixar, eu mesmo respondo. Em resumo, Moehringer ganhou um Pulitzer escrevendo artigos pra jornais, trabalhou como escritor-fantasma da biografia de algumas “celebridades” e lançou dois livros próprios, um romance e sua autobiografia, The Tender Bar.

É, eu sei o que você tá pensando, “e por quê diabos esse cara é interessante”? Também não fiquei tão interessado assim em explorar as facetas dessa figura nada emblemática, mas o filme, esse sim me pegou.


A estrutura da história é razoavelmente simples, e mostra a vida do autor desde o dia em que ele se muda pra casa dos avós junto da mãe, passando por diversos momentos relevantes de sua vida, a ida pra faculdade, primeiro grande amor, primeiro emprego escrevendo. Mas a estrutura não é o importante, aqui, e talvez nem o próprio Moehringer, apesar de ser o personagem central, seja.

O que faz esse filme não ser nada ordinário é a construção das relações. A ligação com a mãe, quase simbiótica, com um nível de compreensão que beira o telepático entre os dois. O tio, que é a voz da cabeça e abriu pra ele a porta que dava no mundo, é o grande incentivador da leitura que o instigou a se tornar escritor.

Cada relação com os familiares, amigos e pessoas aleatórias que passaram pelas cenas da vida dele é carregada de sentido e preenche a narrativa de sutilezas que abraçam quem assiste. Não quero falar demais da narrativa pra não estragar a boa surpresa que ele pode ser. De repente é possível que essa história não fale com você como falou comigo, e tá tudo certo. Não é nenhum crime não gostar de um filme, independente do status que ele recebe. Têm pra todo mundo. Agora me deixa falar do porquê ele me pegou tanto.


Tenho refletido muito sobre a minha relação com essas duas artes, literatura e cinema. Minhas memórias mais antigas são profundamente atreladas às duas. Houve um tempo que eu diria sem pensar duas vezes que essas lembranças eram sobre comida, e não tenho dúvida sobre o quanto soaria clichê um cozinheiro dizer isso, mas quando paro pra pensar no assunto com calma, uma enxurrada de páginas e cenas me passam na cabeça. Comida, talvez, esteja em segundo lugar, porque as duas definitivamente empatam no topo desse pódio.

Primeiro a leitura. Meus pais sempre leram muito pra mim, antes mesmo de eu sequer entender qualquer coisa. Meus primeiros livros não tinham palavras, e nem precisavam. Antes de me ensinarem a lê-las, os dois já me ensinavam a ler o mundo. E desde muito cedo, quando comecei a ensaiar os primeiros passos na compreensão das palavras, li sem parar. Às vezes mais, às vezes menos, mas é uma coisa que simplesmente não para.

Não tenho dúvida de que isso serviu de estopim pra querer criar meus próprios escritos, e talvez essa seja a parte que mais intriga na literatura, de qualquer gênero que seja: como alguém cria uma coisa “do zero”? O que passava na cabeça de Dante enquanto escrevia “A Divina Comédia”? Por quê será que Kafka transformou Gregor Samsa em um inseto e não em outro animal? Quantos cortiços Aluísio Azevedo visitou antes de imaginar o seu?

Acho que escrever é minha própria maneira de tentar responder essa pergunta. Não sei se vai haver resposta, mas seguirei tentando. Quem sabe o processo não é a resolução desse enigma? Sinceramente, espero nunca descobrir.


Pulando de uma arte pra outra, falemos do cinema. As primeiras lembranças que tenho dele são de assistir Mulan, Tarzan e O Homem Bicentenário – um grande filme que eu só fui entender mais de uma década depois. Se já tinha ido antes, não saberia dizer, mas tenho alguma clareza das imagens e sensações de estar naquele lugar. Me encantava aquela coisa de estar totalmente imerso no filme, e ainda me encanta do mesmo jeito.

Meu fascínio com o cinema é o mesmo da literatura, e acho que por isso essas memórias se enlaçam tanto. Do filme mais refinado, cheio de complexas sutilezas, explorando e discutindo os mínimos detalhes da vida até a tranqueira mais ridícula que alguém teria a coragem de gravar, todos me interessam.

Foi o que deu vida ao Cinemasso – em hiato momentâneo, eu espero – e continua abastecendo minha paixão pelas histórias. Quero saber os porquês, e talvez os diretores, assim como eu escrevo textos, produzam seus filmes tentando encontrar suas próprias respostas.


Essa questão, talvez, revele o grande esquema das coisas, aqui. Gosto de histórias. Reais, irreais, até surreais, todas me interessam. Das pessoas, das coisas, do tempo, do nada, pra todo canto que eu olho tento imaginar as narrativas que regem tudo ao alcance dos meus olhos ou dessa carne eletrificada que, aparentemente, filtra e conta todas pra mim. Que privilégio é ter um cérebro.

Há não muito tempo escrevi sobre propósito, e não sei se isso se enquadra nesse ponto, exatamente, mas se tem uma coisa pra qual eu pretendo viver é poder testemunhar quantas histórias forem possíveis, afinal, acho que é assim que vou construindo a minha. Enquanto isso também vou criando outras, tentando dar meu próprio charme e elegância pra essa bizarrice incessante que alguns ousam chamar de realidade.