segunda-feira, 24 de abril de 2023

Quem Tem Medo de Folhas de Papel ou Como o QR Code Atropelou o Bom Senso

 



Tem que acabar o cardápio QR Code. Na moral, essa bosta é o vilipêndio do bom senso, o nêmesis da lógica, uma das coisas mais contraproducentes que o mundo da alimentação poderia criar. Óbvio que essa aberração é prévia aos eventos que nos acometeram nos últimos 3 anos, o que mostra que nossa falência enquanto sociedade veio muito antes dessa desgraça – e por favor, não nos esqueçamos de quem é a responsabilidade por permitir o volume gargantuano de mortes evitáveis, obrigado.

Voltemos ao ponto. Gosto de exemplificar a situação toda através dos meus pais, duas das pessoas mais sensatas que já conheci. Não digo isso por serem meus pais, mas por ser um fato observável por qualquer pessoa que conviva minimamente com eles. Por diversas vezes, em estabelecimentos variados, presenciei ambos sofrendo com esse golpe de inutilidade travestido de “inovação” que é o cardápio digital.

Veja, o ponto crucial aqui é o fato de ambos serem pessoas que estão em constante atualização. Contudo, considerando os anos de vida e trabalho sem uma dependência objetiva – ou não - das “últimas tecnologias”, a digitalização de uma coisa tão simples quanto um cardápio só adiciona uma camada de complexificação que era totalmente contornável se os donos de restaurantes decidissem que seria de bom tom higienizar seus cardápios físicos.

Recorrentemente um dos dois sai de casa sem o telefone – quase sempre meu pai, diga-se de passagem – e ambos usam óculos. Claro que o cardápio físico não faz um tratamento instantâneo da saúde oftalmológica de nenhum dos dois, mas é muito mais prático lidar com um único empecilho, seja uma pasta ou um encadernado de folhas, do que ter que pular por vários aplicativos e menuzinhos nada intuitivos numa tela pequena com mais informação do que o necessário (em algum outro momento escrevo sobre cardápios moderninhos querendo fazer graça).

Existe, pra além de sua funcionalidade objetiva – ter coisas escritas – uma certa cumplicidade com o papel. Um livro, por exemplo, se lê pegado, com as duas mãos, aninhado e envolvido pelos dedos que correm as páginas desenhando o percurso da leitura, a carrega de intimidade. O cardápio estabelece essa conexão com a comida. Antes de comê-la, você a lê, e se deixa convencer pela história que ela conta que aquele é o prato a ser pedido.

Sobrevivemos ao pior e seguimos, aos trancos e barrancos, para honrar os que se foram. É justo que agora, vacinados e preparados pro que vem daqui pra frente, consigamos restabelecer coisas pequenas que nos conectam e abandonemos a frieza tosca e solitária que a pandemia nos empurrou como numa gavage.

Por favor, eliminem o cardápio em QR code. Chegamos ao ponto em que pessoas relatam que, ao chegar em um restaurante e não conseguirem ler o código em seus telefones, foram instruídas pela equipe do local a irem embora por falta de cardápios físicos (ou qualquer boa vontade) – o que me soa mais como um livramento do que como algo a se lamentar. Espero eu que NINGUÉM ache essa tranqueira uma boa ideia. E se, porventura, você que está lendo acha, chegamos no limite da nossa capacidade de convivência. Obrigado e passar bem.


segunda-feira, 3 de abril de 2023

Bar Apocalipse

 



Depois do fim do mundo, algumas coisas continuaram existindo. Convenientemente um bar foi uma delas. Não tão convenientemente, eu também. Porra, mundo, sinceramente, nem pra acabar direito! Decreto aqui e agora, isso é uma puta palhaçada! Infelizmente não posso fazer muita coisa sobre isso além de seguir, então sigamos.

Acordei em frente a ele, ainda atordoado, e com algum senso de que deveria ocupar o meu pós-tempo com algo minimamente útil (ou não), levantei e entrei. Sem dúvida uma ótima decisão pra’quela pseudo-noite (sei lá, o mundo acabou, nem saberia dizer se ainda existe noite). Lá dentro, descobri que, além de mim, outras 7 pessoas continuaram existindo.

As pessoas – não as vivas, mas todo mundo que morreu, e totalmente por inveja – diriam que a sobrevivência daquele grupo seletíssimo de humanos não fazia sentido, mas havia um certo senso de sarcasmo universal, meio etéreo, que permeava a presença daqueles pós-existentes.

Deepak Chopra rolava no chão em silêncio, como alguém que tenta apagar um fogo que nunca existiu. Rogério Skylab pedia cigarros, confuso e sem camisa, aos outros sobreviventes. Pablo Villaça lia um roteiro em branco, à fim de elucubrar todos os não-conceitos que aquele filme nunca traria ao mundo. Um cara com uma camiseta estampada “Lambada Quente” dançava sozinho ao lado de um jukebox quebrado. O barman, com seu mise en place impecavelmente montado, secava uma taça bordeaux. Uma senhora de vestido amarelo e boné de loja de construção tomava uma cerveja enquanto olhava profundamente consternada e ligeiramente confusa pra moça de armadura medieval que bebia um mojito ao seu lado.

Como todos foram parar ali? Nunca saberemos, mas também quem se importa? Eu não. Encarei essa cena por alguns instantes, sem saber exatamente que protocolos sociais seguir, e minha única reação – e talvez a única possível – foi sentar no balcão e pedir uma dose de Martini Rosso. Beberiquei despretensioso e foi exatamente o que eu precisava pra começar a colocar as ideias no lugar: uma dose de alguma bebida esquisita pra compor com o clima meio chato de completa aniquilação da sociedade.

Não soube exatamente o que pensar sobre aquela dose de Martini. Bom, sobre o que tinha acontecido com o mundo também não, mas sentado no balcão observando aquele grupo completamente desconexo e confuso de pessoas, não tinha motivos pra me preocupar com o sentido de nada. Dei mais um gole no Martini.

Senti uma batida no ombro. Skylab me pediu uma beiçada do que eu estava tomando. Muitas coisas acontecendo ao redor de uma bebida tão insignificante, pensaria o copo, caso ele fosse senciente. Passei o dito cujo pro Rogério e voltei a encarar o bar. O barman, excepcionalmente bem vestido pro apocalipse, exclamou com muito mais eloquência do que a devastação geral exigia:

- Gostaria de dizer ao senhor que é uma honra lhe servir. Todos aqui devem suas vidas ao que fez.

Finalmente uma coisa interessante pra distrair minha desolada mente pós-apocalíptica. O que exatamente eu tinha feito? Sem relação nenhuma com a dose mediana de álcool que corria no meu sangue, minha memória estava turva como uma lata cheia de chorume. Não só ela, mas absolutamente tudo parecia pouco claro até aquele momento. Perguntei o que aquilo queria dizer a resposta que recebi foi:

- Antes de mais nada, um cafezinho.


Sendo sincero, devia ter recusado o café. Frequentei bares o bastante na vida pra saber que não seria no último balcão da existência que eu beberia um café decente. Apesar de que, convenhamos, não estava em posição de recusar um café de graça. No primeiro contato do líquido com a língua, minhas suspeitas se confirmaram: o café tinha o gosto muito próximo daquela água que os pintores usam pra lavar os pincéis. É difícil explicar como eu poderia conhecer esse gosto, mas depois do Martini, do café e, obviamente, do fim do mundo, muitas coisas seriam difíceis.

Agradeci o barman, meio à contragosto do meu subconsciente, que preferia que eu jogasse a xícara na cara daquele cordial atendente. Ele, por sua vez, mesmo percebendo que me sentia envenenado por aquele gole de tristeza, comentou, com um sorriso no rosto:

- É natural que não se lembre do que fez, senhor, afinal de contas bater a cabeça em tamanha velocidade deixaria qualquer um tonto como um cabrito.

Ora, ora, mais um mistério. Tudo que o apocalipse precisava. Minha vontade de aproveitar todo o não-tempo que eu tinha disponível era grande, mas minha curiosidade pra tentar entender alguma coisa era muito maior. A única questão em jogo era qual dos três mistérios resolveria primeiro: o que eu tinha feito, por que eu bati a cabeça em alta velocidade e o mais misterioso de todos, como tanta gentileza fazia daquele barman uma pessoa tão irritante?

 

Nota sobre o fim do mundo

O mundo acabou em silêncio. Não um silêncio terno, de paz contemplativa. Era ensurdecedor, denso e opressor. Nosso protagonista muito provavelmente ainda não havia se acometido de que não havia mais nenhum resquício de humanidade pra além daquele bar.

Possivelmente tivesse algum fio de esperança de que poderia encontrar mais sobreviventes, mas não encontraria nada. Aquele pequeno grupo de pessoas era o que havia sobrado da humanidade, uma amostra insignificante de algo que nunca mais voltaria a existir. Dali em diante, apenas vazio, silêncio e o mundo, completamente indiferente ao fim de tudo que havia existido nele. Fim da nota.

- Por favor, me acompanhe, senhor – exclamou o barman enquanto pulava sobre o balcão exatamente como naquele clipe do Rick Astley. Os outros Apocalipsersinterromperam brevemente suas não-atividades pra apreciar aquele movimento gracioso, no que ficaria conhecido por eles como o primeiro lampejo artístico após o fim da humanidade. E eu, sempre incapaz de desempenhar qualquer tipo de movimento que exigisse alguma destreza, só conseguia pensar “Ah, legal, ele TINHA que estabelecer um nível tão alto”.

Segui o barman, que foi em direção a porta. Hesitei por um segundo, ainda com medo do que poderia encontrar, mas sinceramente, o que poderia ser mais inconveniente do que o MALDITO FIM DA EXISTÊNCIA HUMANA?!

Enfim, saímos do bar. Ao retornar lá pra fora, agora menos confuso e conseguindo observar bem os arredores, o cenário era muito mais “ué, tô na rua de casa?” do que “AAAAAAH MEU DEUS CHAMAS DESTRUIÇÃO MORTE DOR E SOFRIMENTO GUERRA ENTRE ANJOS E DEMÔNIOS”. A única coisa realmente diferente naquela paisagem opressivamente corriqueira era uma empilhadeira estacionada em frente ao bar.

 

Apocalipsers1: é engraçado como a mente associa uma desgraça à outra com facilidade. Ao pensar na nossa seleção de condenados ao pós-mundo, pensei automaticamente em FariaLimers. O mundo já havia acabado bem antes dessa história.