Tem que acabar o
cardápio QR Code. Na moral, essa bosta é o vilipêndio do bom senso, o
nêmesis da lógica, uma das coisas mais contraproducentes que o mundo da
alimentação poderia criar. Óbvio que essa aberração é prévia aos eventos que
nos acometeram nos últimos 3 anos, o que mostra que nossa falência enquanto
sociedade veio muito antes dessa desgraça – e por favor, não nos esqueçamos de
quem é a responsabilidade por permitir o volume gargantuano de mortes
evitáveis, obrigado.
Voltemos ao ponto.
Gosto de exemplificar a situação toda através dos meus pais, duas das pessoas
mais sensatas que já conheci. Não digo isso por serem meus pais, mas por ser um
fato observável por qualquer pessoa que conviva minimamente com eles. Por
diversas vezes, em estabelecimentos variados, presenciei ambos sofrendo com
esse golpe de inutilidade travestido de “inovação” que é o cardápio digital.
Veja, o ponto
crucial aqui é o fato de ambos serem pessoas que estão em constante
atualização. Contudo, considerando os anos de vida e trabalho sem uma dependência
objetiva – ou não - das “últimas tecnologias”, a digitalização de uma coisa tão
simples quanto um cardápio só adiciona uma camada de complexificação que era
totalmente contornável se os donos de restaurantes decidissem que seria de bom
tom higienizar seus cardápios físicos.
Recorrentemente um
dos dois sai de casa sem o telefone – quase sempre meu pai, diga-se de passagem
– e ambos usam óculos. Claro que o cardápio físico não faz um tratamento
instantâneo da saúde oftalmológica de nenhum dos dois, mas é muito mais prático
lidar com um único empecilho, seja uma pasta ou um encadernado de folhas, do
que ter que pular por vários aplicativos e menuzinhos nada intuitivos
numa tela pequena com mais informação do que o necessário (em algum outro
momento escrevo sobre cardápios moderninhos querendo fazer graça).
Existe, pra além de sua funcionalidade
objetiva – ter coisas escritas – uma certa cumplicidade com o papel. Um livro,
por exemplo, se lê pegado, com as duas mãos, aninhado e envolvido pelos dedos
que correm as páginas desenhando o percurso da leitura, a carrega de
intimidade. O cardápio estabelece essa conexão com a comida. Antes de comê-la,
você a lê, e se deixa convencer pela história que ela conta que aquele é o
prato a ser pedido.
Sobrevivemos ao pior
e seguimos, aos trancos e barrancos, para honrar os que se foram. É justo que
agora, vacinados e preparados pro que vem daqui pra frente, consigamos
restabelecer coisas pequenas que nos conectam e abandonemos a frieza tosca e
solitária que a pandemia nos empurrou como numa gavage.
Por favor, eliminem
o cardápio em QR code. Chegamos ao ponto em que pessoas relatam que, ao
chegar em um restaurante e não conseguirem ler o código em seus telefones,
foram instruídas pela equipe do local a irem embora por falta de cardápios físicos
(ou qualquer boa vontade) – o que me soa mais como um livramento do que como
algo a se lamentar. Espero eu que NINGUÉM ache essa tranqueira uma boa ideia. E
se, porventura, você que está lendo acha, chegamos no limite da nossa
capacidade de convivência. Obrigado e passar bem.