Estávamos algumas semanas atrás eu e meu pai assistindo o jornal
local no horário do almoço. Como nunca acontece nada de relevante por aqui - a
não ser, claro, quando mais uma criança preta e periférica é assassinada pela
polícia - as notícias costumam girar em torno de coisas inócuas pra deixar a
população santista feliz e alegre na cidade com - consta, sabe-se lá que
recorte e parâmetros foram usados pra isso - um dos melhores índices de
qualidade de vida do país. ÊÊÊÊÊÊÊ. Chegando ao fim do ano, obviamente, o tema
da vez é Natal.
Chegou o momento de Papais e Mamães Noéis, duendes, renas,
pinheiros e caminhões cafonas de marca de refrigerante começarem a tomar conta
de tudo, e as pessoas se aglomeram em qualquer lugar onde anunciem que vai ter
uma chegada do bom velhinho. Vendo aquelas cenas de absoluto deslumbramento de
gente de todas as idades com o clima de inverno fake, entramos no seguinte
debate: será que uma criança que cresce imersa num ambiente excessivamente
fantasioso vai se tornar um adulto capaz de compreender a realidade de forma
aprofundada, considerando que a chance de ela virar uma pessoa muito alienada é
grande, se o ambiente e a cultura familiar não a levarem a refletir sobre as
coisas que ela vivencia? Adiantando minha conclusão, digo que depende, porém
explico.
Recentemente vi a participação do Guilherme Terreri, professor e
produtor de conteúdo que dá vida à drag queen Rita Von Hunty, falando em um
podcast sobre cinema como a indústria cultural ocidental criou um fenômeno
psicológico assustador, em que as pessoas não conseguem pensar o futuro do
mundo que não seja um em que, inexoravelmente, sejamos jogados num apocalipse
absoluto, pensamento elaborado de forma mais complexa pelo teórico britânico
Mark Fisher, em seu livro “Realismo Capitalista”, condensado no questionamento
“é mais fácil imaginar o fim do mundo que o fim do capitalismo?”.
Essa conversa no podcast me fez lembrar de dois filmes lançados
em datas aproximadas, se me recordo bem, durante os momentos finais da
pandemia: “Terra à Deriva”, produção chinesa, e “Destruição Final: o último
refúgio”, filme estadunidense. Antes de mais nada, os dois são bem medianos,
com “Destruição Final” sendo um tanto pior, mas segue um sinopse rápida de cada
um.
“Terra à Deriva” se desenrola num hipotético ano 2500 em que o
Sol, na iminência de se tornar uma gigante vermelha, ameaça a existência da
Terra e, obviamente, de tudo que tem nela. O mundo então se une pra desenvolver
um sistema show de propulsores que vão levar o planeta pra órbita de outra
estrela, e o filme acompanha um grupo de pessoas que precisa garantir que o
sistema funcione pra salvar todo mundo e garantir nosso futuro. Pelo menos uma
dezena de problemas relativos à física e astrofísica à parte, rola bem numa
sessão de “filmes pra não realizar uma única sinapse por pelo menos 1h30”.
“Destruição Final”, por sua vez, mostra a viagem de uma família
em busca de refúgio numa Terra relativamente contemporânea, ameaçada pelo
possível impacto de um cometa. Ao longo do caminho se deparam com uma série de
atribulações ao lidar com uma humanidade já sem qualquer esperança de
sobrevivência ao cataclisma que se aproxima. Particularmente acho meio
sofrível, mas considerando que meu filme preferido de apocalipse é “The Omega
Code 2: Megiddo”, minha avaliação sobre a qualidade aqui é completamente irrelevante.
O ponto a ser observado e que coloca os dois filmes em direções
opostas, ainda que tenham temáticas relativamente parecidas, é a visão do
possível que cada um projeta. O filme estadunidense lida com a proximidade do
fim partindo do pressuposto de que a maior parte da sociedade simplesmente
abandonaria qualquer resquício de civilidade e sucumbiria à barbárie sem pensar
duas vezes, enquanto alguns poucos selecionados - vide gente rica, militares ou
que apresentem alguma habilidade técnica específica - teriam a possibilidade de
se refugiarem em bunkers ultra seguros, claramente construídos há muito tempo
pra lidar com uma eventualidade como essa.
Filmes hollywoodianos de fim do mundo, de modo geral, só
caminham em duas direções possíveis: dor, trevas e o absoluto colapso da
sociedade ou, o que eu acho ainda pior, um único guerreirinho escolhido pelo
motivo mais esdrúxulo possível pra salvar a humanidade, com a narrativa
tentando te empurrar goela abaixo o tempo todo que ele resolve tudo sozinho
porque sim. Eu poderia citar vários - inclusive o próprio Megiddo - mas acho
que você consegue lembrar de algum que bate com uma dessas descrições com certa
facilidade.
O filmes chinês, por sua vez, aponta na direção completamente
oposta. O mundo inteiro, sabendo que a ameaça era real e não demoraria muito
pra acontecer, se junta e desempenha um esforço coletivo pra criar um sistema
global capaz de impedir o fim. Pela sinopse, acho que ficou claro que não acho
um grande filme, mas nem é isso que é relevante. Perceba aqui o ponto a que
quero chegar: a visão dos realizadores é de que dá sim pra imaginar um futuro e
um mundo onde o coletivo empenha esforços pra garantir nossa sobrevivência.
Volto então ao questionamento inicial. Acho que o fator
determinante pra que uma criança, ao crescer, desenvolva uma visão limitada de
mundo não é estar imersa demais em estímulos fantasiosos, mas como esses
estímulos são direcionados e apresentados pra ela e, ainda mais importante, que
haja cuidado para que eles não se tornem mais do que boas lembranças e essa
criança não se torne o adulto que as transforma em traço de personalidade -
vide minha crônica “A Vida, o Universo e Só Mais Umas Coisinhas” - passa horas
defendendo empresa bilionária na internet por causa de filme de super-herói -
os também chamados “filmes de hominho”.
A fantasia é necessária pra que a criança seja capaz de imaginar
e vislumbrar um futuro que, pra maioria das pessoas, é constantemente negado,
algo inclusive abordado na conversa os escritores - respectivamente angolano e
moçambicano - José Eduardo Agualusa e Mia Couto que ocorreu pouco mais de um
mês atrás na Tarrafa Literária. É necessário que sejamos capazes de sonhar com
um mundo pra além da violência, medo e desesperança que nos empurram goela
abaixo diariamente em cada noticiário transmitido em um canal de TV. É
necessário que sejamos capazes de sonhar com o fim de um sistema que se
fortalece com nosso esgotamento. Sendo então capazes de sonhar, que estejamos
preparados pra atuar na construção desse mundo, pra que no futuro, mesmo que
não o vejamos, nenhuma outra criança vire notícia por causa da bala que
atravessou suas costas.
Até a próxima.