domingo, 31 de dezembro de 2023

As Voltas que o Mundo Não Dá

 



A menos que aconteça algo absurdo e inesperado, a vida da maioria de nós vai ser completamente ordinária. “Ai, lá vem esse mala pessimista de novo”. Não, não tô falando isso pra te desanimar ou fazer o realistão, muito menos pra te sugerir algum tipo de conformidade com a vida.

O texto de hoje tem outro objetivo: falar sobre a vida acontecendo no corriqueiro e cotidiano, ou seja, nas voltas que o mundo não dá. Talvez uma forma mais precisa de dizer seria “os ridiculamente lentos e imperceptíveis movimentos que o mundo dá“, mas prefiro minha pequena subversão da gíria.

Belchior inicia “Como Nossos Pais” com a frase “não quero lhe falar, meu grande amor, das coisas que aprendi nos discos. Quero lhe contar como eu vivi e tudo que aconteceu comigo”. Perdida entre tantas outras passagens carregadas de significados, talvez as pessoas não se acometam que essa seja a que mais fala sobre ele e sua obra, e porquê, mesmo depois de tanto tempo, o continuamos ouvindo e amando.

Cantarolando mentalmente a música, tive um lapso de clareza - pouco frequente nos últimos tempos - sobre o peso dessa passagem e o que me faz ter tanto apreço pela escrita de crônica e não-ficção. O mundo aqui, agora, concreto e material, é tão cheio de contradições e interrupções dos nossos planos e projeções que damos pouco espaço pra uma coisa crucial: observar o mundo acontecendo e a beleza que existe nisso, afinal de contas são essas as coisas reais e palpáveis das nossas vidas.

Não posso deixar de dizer que isso é totalmente compreensível, considerando o ritmo e a miríade de aspectos ideológicos que o capitalismo impõe pras nossas vidas proletárias e que moldam nossas relações nos mais diversos aspectos, especialmente com o tempo, e considero esse o fator determinante pra amarrar o Belchior, meu lapso de clareza e a crônica.

A meu ver, escrever é, acima de tudo, um exercício de observação - e claro, alguma sensibilidade pra extrair coisas do que se observa. Sempre que defino um tema ou tenho algum insight que gera uma frase que funciona como ponto de partida pra um texto, a primeira coisa que busco são situações ou ambientes que possam, de alguma forma, dialogar com aquele ponto de partida mental. Sejam pessoas com cachorros em shoppings ou gente na ciclovia, qualquer situação corriqueira pode ser o estopim pra uma reflexão ligeiramente mais aprofundada sobre alguma questão - ou azedância profunda - da vida.

Vivemos tão embrenhados no desgaste constante do cotidiano que acabamos perdendo essa tal sensibilidade pras coisas pequenas. E quando digo pequenas não tenho a intenção de colocá-las como desimportantes, mas de constatar que às vezes se tornam tão corriqueiras ou periféricas à nossa rotina que as deixamos escapar do nosso horizonte.

Apesar dos pesares - e de ser reconhecidamente rabugento, ainda que não seja coisa pra se orgulhar - sigo me encantando com essas coisinhas à toa que o mundo põe no meu caminho, e prometo seguir as observando e contando como eu vivi e tudo que aconteceu comigo. Que 2024 nos permita mais tempo pra ver as voltas que o mundo não dá.