A menos
que aconteça algo absurdo e inesperado, a vida da maioria de nós vai ser
completamente ordinária. “Ai, lá vem esse mala pessimista de novo”. Não, não tô
falando isso pra te desanimar ou fazer o realistão, muito menos pra te sugerir
algum tipo de conformidade com a vida.
O texto
de hoje tem outro objetivo: falar sobre a vida acontecendo no corriqueiro e
cotidiano, ou seja, nas voltas que o mundo não dá. Talvez uma forma mais
precisa de dizer seria “os ridiculamente lentos e imperceptíveis movimentos que
o mundo dá“, mas prefiro minha pequena subversão da gíria.
Belchior
inicia “Como Nossos Pais” com a frase “não quero lhe falar, meu grande amor,
das coisas que aprendi nos discos. Quero lhe contar como eu vivi e tudo que
aconteceu comigo”. Perdida entre tantas outras passagens carregadas de
significados, talvez as pessoas não se acometam que essa seja a que mais fala
sobre ele e sua obra, e porquê, mesmo depois de tanto tempo, o continuamos
ouvindo e amando.
Cantarolando
mentalmente a música, tive um lapso de clareza - pouco frequente nos últimos
tempos - sobre o peso dessa passagem e o que me faz ter tanto apreço pela
escrita de crônica e não-ficção. O mundo aqui, agora, concreto e material, é
tão cheio de contradições e interrupções dos nossos planos e projeções que
damos pouco espaço pra uma coisa crucial: observar o mundo acontecendo e a
beleza que existe nisso, afinal de contas são essas as coisas reais e palpáveis
das nossas vidas.
Não posso
deixar de dizer que isso é totalmente compreensível, considerando o ritmo e a
miríade de aspectos ideológicos que o capitalismo impõe pras nossas vidas
proletárias e que moldam nossas relações nos mais diversos aspectos,
especialmente com o tempo, e considero esse o fator determinante pra amarrar o
Belchior, meu lapso de clareza e a crônica.
A meu
ver, escrever é, acima de tudo, um exercício de observação - e claro, alguma
sensibilidade pra extrair coisas do que se observa. Sempre que defino um tema
ou tenho algum insight que gera uma frase que funciona como ponto de partida
pra um texto, a primeira coisa que busco são situações ou ambientes que possam,
de alguma forma, dialogar com aquele ponto de partida mental. Sejam pessoas com
cachorros em shoppings ou gente na ciclovia, qualquer situação corriqueira pode
ser o estopim pra uma reflexão ligeiramente mais aprofundada sobre alguma
questão - ou azedância profunda - da vida.
Vivemos
tão embrenhados no desgaste constante do cotidiano que acabamos perdendo essa
tal sensibilidade pras coisas pequenas. E quando digo pequenas não tenho a
intenção de colocá-las como desimportantes, mas de constatar que às vezes se
tornam tão corriqueiras ou periféricas à nossa rotina que as deixamos escapar
do nosso horizonte.
Apesar
dos pesares - e de ser reconhecidamente rabugento, ainda que não seja coisa pra
se orgulhar - sigo me encantando com essas coisinhas à toa que o mundo põe no
meu caminho, e prometo seguir as observando e contando como eu vivi e tudo que
aconteceu comigo. Que 2024 nos permita mais tempo pra ver as voltas que o mundo
não dá.